Drauzio Varella defende que Brasil siga modelo dos transplantes para criar lei de morte assistida
24 novembro 2025 às 10h10

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O médico e escritor Drauzio Varella, 82, passou a integrar o movimento Eu Decido, que reúne mais de cem profissionais de diversas áreas em defesa da legalização da morte assistida no Brasil.
A participação do oncologista coincide com a entrada do país na World Federation Right to Die Societies, entidade que articula nações que já aprovaram, ou discutem, leis sobre autonomia no fim da vida.
Para Varella, a discussão no Brasil está atrasada diante do sofrimento prolongado de pacientes sem expectativa de recuperação. “Prolongamos sofrimentos que não fazem sentido. Precisamos enfrentar esse dilema”, afirma o médico, em entrevista à Folha de S.Paulo.
Hoje, diferentes modalidades de morte assistida são permitidas em 16 países e 11 estados americanos; outros quatro países estudam propostas semelhantes. O oncologista sustenta que o princípio da autonomia deve abranger também o fim da vida.
“Toda pessoa adulta e capaz tem o direito de decidir seus cuidados de saúde e, em casos extremos de sofrimento insuportável, determinar como e quando deseja morrer”, diz.
Para ele, o Brasil já possui experiência em legislações complexas e sensíveis, como o sistema de transplantes, que podem servir de referência. “Conseguimos estabelecer um sistema justo e muito bem conduzido. Isso tem que existir também para a decisão sobre a morte.”
O envelhecimento acelerado da população e a alta de diagnósticos de demências tornam o tema ainda mais urgente, afirma. “Chega um ponto em que a pessoa está viva porque os órgãos funcionam, mas perdeu a condição humana. Nessas situações, quem manda é o outro.”
Memória pessoal e trajetória profissional moldaram a defesa da causa
Varella conta que convive com a morte desde a infância, quando perdeu a mãe aos quatro anos e a avó poucos anos depois. Na idade adulta, a medicina ampliou esse contato, especialmente durante a epidemia de Aids e no trabalho com detentos no Carandiru.
“Nem sei quantos corpos eu vi esfaqueados no Carandiru. Esse convívio me fez pensar profundamente sobre o sofrimento, o limite da medicina e a responsabilidade diante da morte”, afirma.
O médico relata que pacientes pedindo para morrer foram raros em sua carreira, cerca de dez, entre milhares. Todos, segundo ele, agiram com plena lucidez. Ele cita o caso de um amigo íntimo, com metástase na bacia.
“Ele dizia: ‘tenho dor o tempo inteiro. Morfina me deixa sonolento e perco o contato com as pessoas. Estou escravizado não pela doença, mas pela dor’.” Na avaliação de Varella, o avanço das demências dá novo peso à discussão.
“Quando a memória desaparece, você está vivo porque os órgãos funcionam, mas perdeu a condição humana. A partir daí, os outros decidem por você”, afirma. Para evitar esse destino, ele defende que a legislação permita que cada pessoa estabeleça limites antecipados.
“Se eu deixar de reconhecer minha família e perder o controle do corpo, não quero que prolonguem isso.” O médico argumenta que o país já demonstrou capacidade de criar regras claras, técnicas e justas para situações sensíveis, como a morte encefálica e a fila de transplantes.
“Nós conseguimos legislar. Há regras, critérios, uma fila organizada. Não é bagunça”, diz. A mesma estrutura, afirma, deve valer para o fim da vida. Sobre críticas vindas de setores religiosos, ele é direto:
“A religião não existe para aumentar o sofrimento humano, mas para aliviá-lo. Prolongar artificialmente o sofrimento não pode ser entendido como gesto cristão.” Varella também defende que a ampliação dos cuidados paliativos deve caminhar ao lado da discussão sobre morte assistida.
“Uma pessoa com dor quer morrer porque não aguenta a dor. Se você tira a dor, muitas vezes ela aguenta mais um tempo”, diz. Para ele, no entanto, as decisões precisam ser tomadas enquanto há lucidez para evitar dilemas cruéis às famílias.
“Tenho meu testamento vital há anos”
Questionado se gostaria de decidir sobre a própria morte, Varella é categórico: “Totalmente. E já sei exatamente quais condições eu colocaria. Tenho meu testamento vital há anos.” Ele compara a preparação ao encerramento de uma festa.
“Você quer sair enquanto ainda está legal, não quando está sendo carregado na pior situação possível.” Ao comentar a decisão do poeta Antonio Cicero, que recorreu à Suíça para ter acesso ao suicídio assistido, ele considera a situação injustificável.
“Não tem cabimento tirar a pessoa do país em que vive, da família, dos amigos, para buscar uma legislação mais civilizada. É uma violência. Ele tinha todo o direito de não querer mais viver.”
Para Varella, o país ainda não tem maturidade para aprovar uma lei imediatamente, mas o caminho está aberto. “A maturidade virá com a discussão, como aconteceu com os transplantes. No começo havia medo e resistência, mas a informação organizou o debate.”
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