Descumprimento de cotas e desigualdade no fundo partidário limitam eleição de mulheres, aponta pesquisa
20 setembro 2025 às 21h00

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O descumprimento das cotas de gênero e a desigual distribuição de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FFC) continuam sendo fatores decisivos na sub-representação feminina na política brasileira.
Dados da pesquisa do De Olho nas Urnas mostram que apenas 18,2% das eleitas em 2024 foram mulheres, evidenciando que, apesar da legislação, o caminho para o poder segue desigual.
Em entrevista ao Jornal Opção, a doutora em sociologia Najla Frattari destacou que “há uma associação positiva, estatisticamente significativa, entre o percentual de candidatas mulheres lançadas por um partido e o percentual de mulheres efetivamente eleitas. O financiamento tem um peso muito grande: o aumento de um real no financiamento de uma candidatura feminina aumenta em 0,60 ponto percentual a chance dessa mulher se eleger”.
Para a pesquisadora, o problema está na prática. “Quando as cotas não são cumpridas, muitas vezes vemos candidaturas fantasmas ou fictícias, e os recursos que deveriam ser destinados às mulheres acabam sendo repassados para homens. O cumprimento das cotas e da distribuição do financiamento caminham juntos e são fundamentais para a eleição das mulheres”, afirmou.
O estudo também mostrou que a desigualdade no acesso ao Fundo Partidário e ao FFC reforça barreiras históricas, culturais e estruturais.
“Os papéis de gênero desempenhados na família e na esfera pública tornam mais custosa, tanto simbólica quanto materialmente, a decisão de uma mulher se candidatar. Isso limita não apenas o número de candidaturas, mas também a taxa de sucesso das mulheres no cenário eleitoral”, explicou Najla.
Além do financiamento, a especialista destacou outros obstáculos ligados às cotas. “Monitorando o horário político eleitoral, percebemos que ele não é cumprido. As mulheres acabam prejudicadas: um aumento de apenas 10 segundos no horário nobre poderia aumentar em 12 pontos percentuais a chance de eleição de uma candidata”, disse.
Segundo Najla, partidos que respeitam integralmente as cotas de gênero e a distribuição de recursos apresentam índices mais altos de eleição de mulheres. “Enquanto algumas legendas cumprem integralmente essas exigências, outras apresentam retrocessos, mantendo a desigualdade estrutural”, afirmou.
Eficácia
Segundo Frattari, a eficácia das cotas de gênero e a distribuição justa de recursos são determinantes para transformar candidaturas em mandatos efetivos. A análise dos dados das eleições municipais de 2020 e 2024 revela que, embora o número de candidaturas femininas tenha aumentado, a efetiva participação política das mulheres ainda encontra resistência dentro das legendas partidárias.
“Quando a gente analisa os espectros políticos e ideológicos, vai ver muitas discrepâncias. De fato, os partidos que mais descumprem essas cotas são os partidos de direita”, afirma Najla Frattari.
A pesquisadora explica que o descumprimento não se limita ao tempo de televisão: “Foi verificado tanto para o tempo de televisão quanto para o cumprimento das cotas de financiamento, das cotas da participação das mulheres nas eleições. Isso tem a ver com a questão dos posicionamentos político-ideológicos desses partidos.”
Segundo Frattari, partidos de esquerda mostram maior receptividade às mulheres, oferecendo condições mais concretas para suas candidaturas.
“Esses partidos que cumprem essas cotas de maneira substantiva tendem a demonstrar um compromisso mais consistente com a promoção de candidaturas e eleitos. Eles vão além do mero atendimento formal à legislação, oferecendo condições materiais e simbólicas para a competitividade das mulheres.”
Entre os fatores que favorecem a inclusão feminina, a pesquisadora destaca a presença de lideranças femininas consolidadas, políticas internas de promoção da diversidade e uma distribuição mais justa de recursos e visibilidade nas campanhas. “Ao analisar as legendas, percebemos que alguns setores partidários continuam comprometidos com a manutenção de estruturas patriarcais”, acrescenta.
Frattari ressalta que a formalização das candidaturas não é suficiente para garantir equidade. É necessário um conjunto de medidas: fiscalização rigorosa, responsabilização dos partidos descumpridores, redistribuição justa dos recursos e combate à violência política de gênero.
“Hoje, por exemplo, analisamos 18 processos que claramente identificavam violência política de gênero e nenhum citou a lei. Isso porque ainda há uma naturalização dessas práticas, como se fizesse parte de um jogo natural da política”, explica.
A especialista também critica medidas recentes que enfraquecem os princípios de ações afirmativas. “A Emenda Constitucional nº 183, de 2024, chamada PEC da Anistia, concedeu anistia a partidos que, em eleições anteriores, descumpriram as contas mínimas de recursos destinados a candidaturas de mulheres e pessoas negras. Situações como essa tornam ainda mais difícil alcançar equidade de gênero na política.”
Apesar das barreiras, houve avanços tímidos. A taxa de sucesso feminina passou de 5,5% em 2020 para 7,2% em 2024, enquanto a dos homens aumentou de 15,2% para 17,6%. O descumprimento das cotas caiu de 4% para 2% nesse período.
“Embora o cumprimento da cota tenha se expandido, o aumento das candidaturas foi de apenas 1,3 ponto percentual. Ainda é muito lento. É preciso fiscalização e ações concretas para garantir inclusão e equidade”, conclui Frattari.

Números da pesquisa
O projeto De Olho nas Urnas, coordenado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), divulgou em setembro o relatório final sobre candidaturas femininas e igualdade de gênero nas eleições municipais de 2024.
Os dados confirmam que a presença das mulheres na política brasileira segue muito aquém da representatividade social: apenas 18,2% das eleitas em 2024 foram mulheres, contra 81,7% de homens.
O estudo, intitulado “Desigualdade de gênero nas eleições proporcionais de 2020 e 2024: fatores associados ao desempenho eleitoral das mulheres”, mostra que a proporção de candidaturas femininas teve leve alta, passando de 34,6% em 2020 para 35,3% em 2024.
Entretanto, a taxa de sucesso eleitoral manteve-se desigual: mulheres eleitas cresceram de 5,5% para 7,2%, enquanto homens saltaram de 15,2% para 17,6%. A pesquisa foi conduzida ao longo de dois anos por 50 especialistas brasileiros e estrangeiros, sob liderança da reitora da UFG Angelita Pereira de Lima.
Os números revelam contrastes importantes entre as regiões. O Piauí apresentou a maior taxa de sucesso de mulheres eleitas em 2024, com 17,8%, seguido pelo Rio Grande do Norte (15%). Já o Rio de Janeiro teve o pior índice, apenas 2%, acompanhado por Espírito Santo (3,4%) e São Paulo (4,8%). A tendência repete o cenário de 2020: Nordeste à frente, Sudeste nas últimas posições.
O relatório utiliza o Índice de Equilíbrio de Gênero (IEG), que mede a presença feminina em relação à masculina. O indicador vai de valores negativos (predominância masculina) a positivos (maioria feminina).
Em 2024, o IEG para candidaturas permaneceu em -0,3, enquanto entre eleitas houve ligeira melhora, de -0,7 para -0,6. O Rio de Janeiro apresentou os piores índices (-0,35 entre candidatas e -0,82 entre eleitas). O Amazonas teve os melhores resultados, embora ainda negativos (-0,21).
A lei de cotas de gênero no Brasil foi criada em 1995, inicialmente reservando 20% das vagas a mulheres. Em 1997, a regra evoluiu para o atual modelo, que exige no mínimo 30% e no máximo 70% de candidaturas de cada sexo. Em 2009, a legislação foi reforçada, obrigando de fato o preenchimento das vagas.
Mesmo assim, a prática mostra resistência. Em 2020, 30 partidos descumpriram a regra em 1.656 municípios. Em 2024, houve redução, mas ainda significativa: 25 partidos cometeram infrações em 535 cidades. Alguns, como UP, PCB, PCO e PSTU, cumpriram integralmente a cota, enquanto outros recuaram, caso do Novo, que passou a registrar irregularidades em 1% dos municípios.
A legislação também exige que 30% do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) sejam destinados a candidaturas femininas. Em 2024, houve avanço: os repasses às mulheres cresceram de 28,9% para 42,5% (FP) e de 29,6% para 43,9% (FEFC).
Quando partidos tentam burlar essa regra, por exemplo, lançando candidaturas femininas fictícias, com pouca ou nenhuma campanha, há jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que isso configura fraude à cota de gênero, o que pode levar à cassação de toda a chapa, anulação dos votos da legenda (DRAP), substituição de cadeiras já ocupadas e outras consequências.
No entanto, partidos de direita mantiveram a maior taxa de descumprimento (27,3%). O relatório apontou ainda desigualdade na propaganda eleitoral: candidatas receberam menos tempo em horários nobres e tiveram espaço reduzido nas semanas finais de campanha. PSOL e Rede adotaram a prática contrária, ampliando gradualmente a exposição feminina.
Desafio além das urnas
Para a pesquisadora Aline Hack, especialista em gênero e política, além de coordenadora técnica da pesquisa do De Olho nas Urnas, esses números revelam um desafio que vai além das urnas.
“Há vários fatores históricos e estruturais que impedem o acesso das mulheres ao ambiente político. A começar de que as mulheres sempre foram destinadas aos ambientes privados, enquanto os espaços públicos, inicialmente, não lhes eram destinados. Isso se deve à condição patriarcal que foi imposta ao longo dos anos”, explica Hack.
Ela destaca ainda que o machismo que questiona a capacidade feminina de liderar ambientes públicos contribui para a desigualdade: “Tudo isso acaba prejudicando negativamente as candidaturas de mulheres no Brasil e fora dele também.”
Apesar do aumento na participação feminina nas candidaturas, a taxa de sucesso ainda é menor em comparação aos homens. Para Hack, o processo é lento e envolve mudanças culturais.
“O aumento da participação das mulheres é gradual porque depende da conscientização da população sobre a importância de termos mulheres nesses espaços e da mudança de cultura para vencer preconceitos a respeito delas.”
Hack avalia que fatores históricos e populacionais podem explicar a diferença regional. “A primeira mulher eleita no Brasil foi na região Nordeste, em especial no Rio Grande do Norte. Além disso, a região Nordeste possui uma densidade populacional menor, o que torna mais fácil conscientizar grupos menores e disputar espaços políticos de forma mais capilarizada.”
O descumprimento das cotas de gênero, mesmo com legislação clara, continua sendo um problema. Segundo a pesquisadora, isso impacta diretamente a distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do FEFC.
“O cumprimento das cotas fortalece a democracia e a inclusão de mulheres, promovendo políticas públicas mais plurais. É fundamental que os fundos sejam distribuídos de forma a ampliar a participação feminina.”
Internamente, os partidos também influenciam a efetividade das cotas. “A maior participação das mulheres na diretoria dos partidos é essencial para valorizar o cumprimento das cotas e a presença feminina na política”, afirma Hack.
Além da cota, outras medidas são fundamentais para aumentar a participação das mulheres. A pesquisadora cita educação política, programas de liderança feminina, combate à violência política de gênero e conscientização social como ferramentas essenciais.
“Na sociedade, é preciso educação participativa e inclusiva. Nos partidos, programas de treinamento interno e incentivo à liderança feminina são essenciais, assim como o cumprimento das cotas e a distribuição adequada do Fundo Partidário e do FEFC.”
Hack também destaca barreiras sociais e culturais que limitam a participação feminina: “A primeira barreira é o medo de participar, de ser julgada ou sofrer violência. A sociedade ainda julga mulheres que desejam ser líderes. A segunda é institucional, relacionada ao acolhimento nos partidos e à punição de quem descumpre regras que deveriam proteger as mulheres nesses espaços.”
O incentivo financeiro, segundo Hack, é determinante para criar um ambiente político mais inclusivo: “Sem dinheiro não há campanha, não há deslocamento para os espaços, impressão de material publicitário ou contratação de pessoal. Portanto, sem recursos, a mulher não é vista e, consequentemente, não é votada.”
Quanto à perspectiva futura, a pesquisadora acredita que mudanças graduais podem reduzir o desequilíbrio de gênero: “Investimento em educação, conscientização nos meios de comunicação e ambientes institucionais já podem trazer um maior equilíbrio de gênero ao longo dos anos. Sem conscientização, não há mudança.”
Apesar dos desafios, Hack aponta tendências positivas observadas nas eleições de 2024: “Mesmo que pequena, há maior participação feminina. Houve a promulgação da lei que tipifica a violência política de gênero, o que fortalece a apuração judicial desses casos. Além disso, o cumprimento das cotas e a distribuição do fundo partidário melhoraram. As mudanças podem parecer pequenas, mas ao longo dos anos virão em maior escala.”

Em Goiás
Pesquisa recente permitiu confirmar vários casos em que chapas foram efetivamente cassadas ou mandatos foram perdidos por descumprimento da cota de gênero em Goiás, especialmente em Goiânia:
| Município em Goiás | Partido / Chapa | Ano da Eleição | O que ocorreu |
|---|---|---|---|
| Goiânia | PMB — Pastor Wilson e Edgar Duarte | Eleições 2020 | O TSE cassou a chapa do PMB por fraude à cota de gênero. Os suplentes Markin Goyá e Bill Guerra retornaram à Câmara. |
| Goiânia | PRTB — Santana Gomes e Bruno Diniz | Eleições 2020 | Chapa cassada por descumprimento de cota. Mandatos foram retirados. |
| Goiânia | PTB — Léo José | Eleições 2020 | Em decisão monocrática, ministro Nunes Marques do TSE cassou a chapa do PTB por fraude à cota de gênero; Léo José perdeu o mandato. |
| Planaltina (GO) | José Dias dos Santos Júnior (DEM) | Eleições 2020 | O TRE-GO manteve cassação de mandato por fraude à cota de gênero. |
| Aparecida de Goiânia | Cristiano Zói (Avante) | Eleições proporcionais (município) | Cassação confirmada pelo TRE-GO — anulação dos votos da chapa proporcional do partido por fraude à cota. |
Além desses, há casos em que decisões já confirmadas pelo TSE alteraram a composição da Câmara de Goiânia, com posse de novos vereadores após cassações. Por exemplo, Fabrício Rosa, Bill Guerra e Markim Goyá tomaram posse em abril de 2024 depois da cassação das chapas do PMB e do PTC.
Também há investigações ou ações pendentes. Uma AIJE (Ação de Investigação Judicial Eleitoral) que pede a cassação dos mandatos de quatro deputados federais de Goiás: Gustavo Gayer, Professor Alcides, Daniel Agrobom e Magda Mofatto por suposta fraude à cota de gênero nas eleições de 2022.
Para deputado estadual e federal em 2026, cada partido ou federação pode lançar até 100% das vagas em disputa mais 1. Com a ampliação da Câmara dos Deputados para 531 cadeiras, isso significa que cada partido ou federação poderá registrar até 532 candidaturas.
Com 42 cadeiras em disputa em Goiás, isso significa que cada partido ou federação poderá registrar até 43 candidaturas. Como salientado anteriormente, do total de candidaturas, 30% devem ser do sexo feminino.
Ou seja, se um partido lançar 40 nomes, 12 deles devem ser de mulheres. Na Câmara dos Deputados, serão 18 cadeiras, com cada partido podendo lançar 19 nomes. Caso uma sigla opte por 10 candidatos, 3 devem ser mulheres.
Desde 2020, estima-se que 206 vereadores foram destituídos por fraudes (em todo o Brasil) relativas à cota de gênero. Goiânia é uma das cidades mais afetadas por essa movimentação institucional de contestação e cassações.
A pesquisa confirma que a correção do descumprimento das cotas e a distribuição adequada dos recursos são determinantes para ampliar a presença feminina na política, mostrando que legislar não basta. É preciso fiscalização e aplicação efetiva.
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