Em Goiás, a agricultura familiar não apenas resiste, mas prospera. O setor se fortalece por meio do cooperativismo, modelo que reúne mais de 50 cooperativas de agricultura familiar em todo o Estado. Esse formato de organização tem ampliado as fronteiras da produção rural, promovendo diversificação, agregação de valor, geração de renda e sustentabilidade.

Na Região do Entorno do Distrito Federal, o município de Formosa é exemplo desse avanço. Ali, o produtor rural Cláudio Lopes Gonçalves, de 55 anos, transformou sua trajetória marcada pela luta pela reforma agrária em uma história de sucesso, impulsionada por investimentos na produção agrícola.

Outro destaque é a Fazenda Ouro Azul, em Planaltina de Goiás, propriedade de Marlene Mendes, 52 anos. Ela se tornou referência em inovação com o cultivo de mirtilo, fruta ainda pouco explorada no Estado, mas que vem ganhando espaço e agregando valor à produção goiana.

Conquista de espaço

Aninhado no Vão do Paranã — região que abrange o extremo norte de Formosa e faz divisa com municípios do Norte e Nordeste goiano —, Cláudio e sua esposa Leidemeire encontraram espaço junto aos movimentos sociais que lutam pela terra e pelos direitos dos pequenos produtores rurais.
“Sempre gostei da roça, mas nunca tive a oportunidade de ter uma terra minha. Por volta de 2000, um colega me convidou para participar do assentamento da fazenda Água Viva”, relembra Cláudio.

Cerca de dez anos depois, em 2010, Cláudio foi beneficiado em uma das primeiras desapropriações sociais realizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Vão do Paranã. Na época, decidiu ceder a escritura a um amigo e adquirir uma chácara na área desapropriada da Fazenda Fartura, que, em agosto daquele ano, deu origem ao Projeto de Assentamento Fartura (PA Fartura). Segundo ele, a compra foi viabilizada por meio de um empréstimo do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), o que possibilitou dar continuidade ao sonho de viver da própria terra.

Em sua nova morada, o produtor remonta os 10 anos de desafios para a estruturação do novo território com a criação de gado a partir de investimentos próprios, sem o uso de recursos externos. “Você, sozinho e sem recurso, fica patinando e não sai do lugar.”

Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Com o passar do tempo, Cláudio percebeu a necessidade de gerar renda de forma sustentável para se manter em meio ao ambiente competitivo do agronegócio. Para isso, recorreu às linhas de crédito rural como estratégia para ampliar sua produção.

Ele relata que uma das primeiras foi no valor aproximado de R$ 150 mil, destinada inicialmente à melhoria da infraestrutura para a criação de gado. No entanto, optou por dividir o investimento, direcionando parte dos recursos para novos empreendimentos rurais, com o objetivo de diversificar as fontes de renda além da pecuária.

Contudo, esse não foi o único recurso obtido. Cláudio também foi beneficiado por iniciativas voltadas ao fortalecimento da produção familiar, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), viabilizado por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Sistema de produção

Com os novos recursos em mãos, a propriedade passou por uma transformação significativa nos últimos cinco anos. Cláudio deixou a pecuária de lado e investiu na implantação de uma agrofloresta diversificada, que hoje abriga cultivos de mandioca, milho, melancia, gergelim, açaí, acerola, graviola, moringa e baru.

Paralelamente, ele mantém uma plantação de maracujá, uma criação de tilápias e 45 colmeias de abelhas, entre espécies africanizadas e nativas do Cerrado, consolidando um modelo produtivo sustentável e integrado.

Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Com essa gama de produção, Cláudio afirma que tudo é usado e reutilizado em um sistema cíclico, análogo a um ecossistema em miniatura. “Reaproveito praticamente tudo aqui. Nós não jogamos nada fora”, disse.

A gente tem as camas das galinhas, o esterco dos porcos e a água e os resíduos da tilápia, que usamos para fazer a compostagem do adubo em bioinsumos. Com isso, não preciso comprar fertilizante. […] As plantas e as flores nativas da agrofloresta servem de alimento para as abelhas produzirem o mel. Ao mesmo tempo, elas fazem a polinização e o reflorestamento.

Mesmo com a diversidade de cultivos e atividades, o mel continua sendo o principal produto da propriedade. Ele serve de base — em combinação com outros ingredientes — para a fabricação de própolis, sabonetes, hidratantes, xampus, velas, perfumes e protetores labiais, além do próprio mel in natura.

Todos esses produtos são elaborados artesanalmente por Leidemeire, com preços que variam entre R$ 10 e R$ 60. Segundo Cláudio, o trabalho conjunto do casal garante uma renda anual média de cerca de R$ 80 mil, assegurando estabilidade e sustentabilidade ao empreendimento.

Apoio cooperativo

Apesar da conquista, ele diz que nada disso seria possível sem o apoio da Cooperativa Fartura (CoopFartura), que conta com 50 pessoas cadastradas no sistema, incluindo Cláudio como tesoureiro.

Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Fundada em meados de 2019, às vésperas da pandemia de Covid-19, a cooperativa nasceu com o propósito de organizar os pequenos produtores do Vão do Paranã, permitindo-lhes competir no mercado interno e escoar maiores volumes de produção — um dos principais desafios enfrentados pela agricultura familiar em Formosa.

A entidade também atua na estruturação logística, fundamental diante da distância de cerca de 80 quilômetros entre a região e o centro urbano do município.

A cooperativa entra como um processo natural de evolução. Precisamos dela para estruturar uma agroindústria na região.

Entre os principais benefícios do sistema cooperativo estão as parcerias estratégicas firmadas com instituições públicas e privadas. O Sistema OCB presta consultoria de gestão há dois anos, contribuindo para o fortalecimento organizacional. Já entidades como o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural de Goiás (Senar), a Agência Goiana de Assistência Técnica, Extensão Rural e Pesquisa Agropecuária (Emater) e a Prefeitura de Formosa apoiam a cooperativa com capacitação técnica, assistência e suporte à produção, consolidando um modelo sustentável de desenvolvimento rural no Vão do Paranã.

Mirtilo: o famoso blueberry

Outro exemplo de inovação em solo goiano é encontrado no município de Planaltina de Goiás, na Fazenda Ouro Azul, de propriedade de Marlene Mendes, de 52 anos, que protagoniza o plantio de mirtilo no Estado. A planta, conhecida como blueberry, foi fruto de uma pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para adaptação ao Cerrado em 2019 pelo professor e pesquisador Osvaldo Yamanishi, da Universidade de Brasília (UnB).

No ano seguinte, Marlene e sua família buscavam novos horizontes de empreendimento após ficarem desempregados por conta da pandemia. Inicialmente, pensavam em produzir e comercializar água de coco, mas logo se voltaram para o mirtilo devido à promessa de um cultivo mais simplificado. 

A gente não queria nada que fosse só o dinheiro pelo dinheiro. Queríamos algo que envolvesse a família, que a gente gostasse de fazer. Foi aí que o meu marido viu uma reportagem falando dessa variedade de mirtilo adaptada ao clima do Cerrado.

Assim como uma muda, a Fazenda Ouro Azul passou por um processo de plantio e crescimento, exigindo solo fértil e investimento para o fortalecimento das raízes. Em 2020, com um terreno próprio de três hectares na zona rural de Planaltina de Goiás, próximo ao Lago Formosa, iniciou o cultivo.

Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Com 2 mil mudas plantadas e um investimento inicial superior a R$ 120 mil, o empreendimento de Marlene Mendes prosperou logo no primeiro ano, alcançando uma produção de mais de duas toneladas de mirtilo, das variedades Emerald e Biloxi. O retorno veio rapidamente, impulsionado pela venda direta ao consumidor final, especialmente em Brasília, o que permitiu recuperar o investimento já no primeiro ciclo produtivo.

Segundo Marlene, as mudas são obtidas por micropropagação em laboratório, garantindo qualidade e padronização. Ela explica que o mirtilo é uma cultura ideal para o pequeno produtor, por ocupar pouco espaço — cerca de 1 m² por muda — e exigir cuidados semelhantes aos de outras frutas tradicionais.

Atualmente, o cultivo conta com 8 mil plantas, sendo 4 mil adquiridas em parceria com o Governo Federal, por meio do Programa Rota da Fruticultura (RIDE-DF), do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). Com essa expansão, Marlene conquistou produtividade e renda estável, mas mantém o sonho de ampliar ainda mais a produção e fortalecer a presença do mirtilo goiano no mercado nacional.

Valor agregado

Porém, a conquista surgiu da necessidade de gerar renda com produtos de valor agregado do plantio, sendo a geleia resultado de um acidente com o sistema de refrigeração de um congelador. Segundo a produtora, este engano causou a perda de 80 kg de mirtilo, o que levou Marlene a aprender a fazer geleia para manter produção. Hoje, a produtora celebra esta memória, sendo a geleia um produto de sucesso e reconhecida pelo selo Goiás Original do Sebrae.

Empreender é um desafio, é como ter que matar um leão a cada segundo. […] Estou numa fase de fortalecimento da minha empresa.

Os primeiros resultados vieram com a produção de geleias de mirtilo, seguida pela venda de sorvetes italianos da fruta e embalagens com o fruto in natura. A fazenda também investe em turismo rural com passeios guiados e na venda das chamadas Bags de Cultivo, sacolas com mudas para o plantio caseiro.

Mesmo assim, Marlene pretende expandir o local e sonha em ter uma agroindústria com câmara fria para captação da produção de parceiros. Além disso, mantém um pequeno meliponário de abelhas sem ferrão para polinização das plantas e investe no cultivo de framboesas, que devem integrar a cadeia produtiva.

A Cooper Berries

Ao mesmo tempo em que investe na própria fazenda, Marlene destaca a necessidade de parcerias para alavancar a cadeia do mirtilo. Integrante da cooperativa Cooper Berries, afirma que a entidade nasceu com a visão de protagonizar o cultivo das berries em solo goiano — plantas correspondendo ao mirtilo, framboesa, morango e amora.

Marlene Mendes produtora rural
Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Apesar de criada em agosto de 2022 e já formalizada, a cooperativa ainda não opera efetivamente devido à falta de produtores com cultivo ativo no ramo, existindo apenas no nome e mantendo uma renda mínima. O atraso também se deve, de acordo com a produtora, ao fato de o cultivo do mirtilo ser uma cultura nova e cara, com mudas que custam de R$ 50 a R$ 60 cada.

Segundo Marlene, a gestão aguarda que os produtores atinjam o estágio de colheita para a cooperativa poder operar plenamente e se fortalecer no mercado, tendo atualmente cinco produtores ativos — incluindo a Ouro Azul.

Ramo que mais gera emprego

Diante desses cenários, a agricultura familiar em Goiás vive um momento de fortalecimento e modernização, impulsionada pelo modelo cooperativo, que garante maior acesso a capital, organização e competitividade no mercado.

De acordo com o Panorama Cooperativo de 2025, elaborado pelo Sistema OCB, das 86 cooperativas do setor agrícola vinculadas à organização, cerca de 50 são formadas por grupos da agricultura familiar — o que representa aproximadamente 60% de todas as cooperativas do agronegócio goiano.

Em comparação com outros modelos, a agricultura é o ramo que mais gera emprego, com um número aproximado de 7.000 pessoas empregadas na área e quase 50 mil cooperados. Da mesma forma, é o setor recorde de faturamento, com um valor de R$ 16,1 bilhões das 86 entidades, cerca de 50% de todo o faturamento das outras cooperativas goianas e R$ 1 bilhão destinado para os cooperados de todas as unidades.

Para o presidente da OCB, Luís Alberto, as cooperativas do agro e da agricultura familiar necessitam de diversificação na produção e de valor agregado, como evidenciam os produtos à base de mel de Cláudio e as mercadorias de mirtilo de Marlene. “As cooperativas de agricultura familiar têm que se organizar, agregar valor à sua produção para melhorar a renda dos seus cooperados e também a sua inserção no mercado”, disse, ao Jornal Opção.

Uma coisa é uma cooperativa de familiar vender, por exemplo, a laranja do jeito que ela foi colhida com um valor. Outra coisa é ele fazer isso com a polpa de fruta, um suco e vender no mercado. Ela vai ter muito mais valor e abrangência, podendo ser vendidas até para supermercados.

Da mesma forma, o presidente da organização comenta que as organizações necessitam de uma gestão profissional que inclui a contabilidade e a apuração de resultados, além da contratação de pessoas qualificadas em cada posição.

Foto: Gustavo Soares / Jornal Opção

Com essas bases, Luís afirma que o modelo cooperativista pode transformar a vida dos cooperados.
“Todas as cooperativas possuem um valor social muito grande, porque tiram pessoas da pobreza e do baixo rendimento, transformando-as em empresários. Cada cooperado é, em si, um empresário, com a oportunidade de aumentar a renda e melhorar a qualidade de vida.”

Nova face do cultivo sustentável

Além da capacidade de geração de renda, a agricultura familiar pode ser a chave para uma produção mais sustentável, como aponta a pesquisa “Mapeando a agricultura familiar no Centro-Oeste do Brasil: Avaliando fatores socioeconômicos e ambientais para aumentar a segurança alimentar regional”, por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP).

O estudo observou os efeitos socioeconômicos e ambientais que a agricultura familiar provoca no Centro-Oeste, como variáveis positivas e negativas no Produto Interno Bruto (PIB) per capita, na concentração de terras, na segurança alimentar e nas emissões de gases de efeito estufa.

O artigo também mostra que, em regiões de maior expansão da soja, a agricultura familiar foi menos presente. Nessas áreas, dominadas por monoculturas, observou-se maior emissão de gases de efeito estufa.

Sobre o tema, o especialista e coautor da pesquisa, Lucas Moura, explicou ao Jornal Opção que o estudo, desenvolvido por oito pesquisadores, aponta a agricultura familiar como a nova face do cultivo sustentável, justamente por seu menor impacto ambiental. “Nossa pesquisa mostra que a agricultura familiar provoca um impacto ambiental significativamente menor, contribuindo, por exemplo, para a redução das emissões de gases de efeito estufa”, destaca Moura.

Segundo a pesquisa, a agricultura familiar apresentou uma relação negativa com indicadores que demonstram importante impacto ambiental, sugerindo um maior potencial do desenvolvimento de uma agricultura sustentável do ponto de vista ambiental. 

Pesquisador Lucas Moura | Foto: Arquivo pessoal

Entre os achados está o Índice de Moran Global bivariado (GMIb), que afirma que, quanto maior for a proporção de terras utilizadas para a agricultura familiar nos municípios, menores são os valores de emissão de gases do efeito estufa (provenientes da atividade agrícola e da mudança de terra) em sua vizinhança. 

Além disso, as estimativas de regressão confirmaram que o aumento das emissões totais está associado a uma diminuição na proporção de terras utilizadas para a agricultura familiar. Isso reflete que áreas com maior industrialização ou intensificação da produção agrícola em larga escala, que geram mais emissões, têm menos espaço dedicado à agricultura familiar. 

Este resultado também está associado ao trabalho e produção em menor escala incluem a diversificação e a integração das atividades vegetais e animais. De igual modo, aponta que os agricultores familiares contribuem para a preservação dos recursos naturais e promovem o desenvolvimento sustentável do país, utilizando práticas agrícolas menos nocivas à natureza, como as agroflorestas e o sistema de reaproveitamento de Cláudio.

Este fato também se encontra no cultivo de Cláudio e Marlene, que não utilizam agrotóxicos em troca de manter a qualidade e a sustentabilidade da produção, além da reutilização dos recursos. “Nunca utilizei um agrotóxico sequer na minha plantação”, diz o produtor rural Cláudio Gonçalves.