Darcy Ribeiro, vice de Brizola, admite que Lula pode ganhar no 1º turno

01 outubro 2025 às 17h37

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Darcy Ribeiro é um dos personagens mais curiosos da política e da vida intelectual brasileira. Na quarta-feira, 22, ao conceder uma entrevista na redação do Jornal Opção, mostrou-se a metralhadora giratória de sempre. Atira para todos os lados — menos contra o companheirinho Leonel Brizola.
No fim da entrevista, um jornalista lhe deu o livro JângaIa: Complexo Araguaia, do mineiro-goiano Carmo Bernardes e, brincando, exigiu “O senhor vai levar o livro, mas com uma condição — deve resenhá-lo para o Jornal Opção”. Rindo, Darcy respondeu: “Pode deixar. Vou escrevê-la. Anote telefone e endereço”. O jornalista frisou: “Como o senhor é político, nós vamos fingir que vai mandar a resenha”. Darcy virou-se devagar e, ironicamente, perguntou: “E você acha que sou mesmo político?”
Realmente, como político Darcy é um romancista razoável (pouco ou nada inventivo) e um antropólogo reconhecido internacionalmente. Não é um político tradicional — embora acompanhe um político absolutamente tradicional, o nacionalista Leonel Brizola, o dono do PDT. Darcy adora Brizola — o político que lhe deu luz política — e é seu candidato a vice-presidente da República.

Aos 72 anos, Darcy está velho, mas raciocina como jovem (em alguns momentos, ele se parece com o brilhante Francisco de Britto, que, com mais de 80 anos, escreve belos artigos no Diário da Manhã). Ao editor executivo José Maria e Silva, ele sugeriu que fizesse panelaços em vez de ficar na redação escrevendo. Para Darcy, o verdadeiro cidadão é aquele capaz de indignar-se permanentemente. Darcy recusa a fama de maluco, disperso e prolixo, mas não economiza palavrões.
Irônico, ele não poupou críticas a Lula e, sobretudo, a Fernando Henrique Cardoso, que ele chama de “o príncipe da sociologia”.
Na redação do Jornal Opção, ele chegou escoltado pelo ninja Luiz Okamoto. O candidato a deputado estadual não abriu espaço para Haroldo Duarte, seu principal inimigo no PDT. Okamoto apóia Maguito Vilela e Duarte, Lúcia Vânia. Okamoto capitalizou Darcy, habilmente.
Euler Belém — Por que, quando o senhor fala de Lula, demonstra ironia?
O quê? (espantado)
Euler Belém — O senhor é irônico com Lula.
Eu gosto muito do Lula.
Euler Belém — Mas o senhor é irônico. Lula é moreno, tem cabelo de negro e é de origem pobre…
(cortando) …Negro nada. Ele é um caboclo (risos). Mas eu não falo mal do Lula, não. Falo bem. Do meu modo. (risos generalizados). Primeiro, não é uma grande coisa que um líder operário possa chegar à Presidência da República? A Alemanha teve vários líderes sindicais que foram presidentes da República. No Brasil, é formidável e se deve à personalidade do Lula, à capacidade dele. Por outro lado, ele foi capaz de fazer uma síntese inverossímil: tomar a Igreja mais progressista de um lado, o que chamo de socialismo de sacristia, e de outro lado pegar o sistema sindical brasileiro e mundial e fazer disso um partido político, que é admirado.
Sou contra Lula porque ele não é do PDT. Nós estamos no mesmo campo, e o PT deveria se fundir conosco. A gente ganharia a eleição no primeiro turno (risos). Sou contra também porque o Lula é muito bisonho. A vez do Lula deve ser na próxima eleição ou na seguinte. Esta é a do Brizola, que já está velhinho (72 anos). Brizola é o mais competente, e o Lula tem que votar no Brizola. E uma falta de patriotismo correr o risco de entregar o Brasil ao Fernando Henrique.
Tenho dito o seguinte: o Lula acha que é sagaz, mas não é. Como educador, estou sempre dizendo isso: o Lula é um nordestino, que foi alimentado no Nordeste para chegar a São Paulo com vigor. No Nordeste ele aprendeu a ler, escrever e contar. Podia já ter sido presidente da República e pode vir a ser. E será um bom presidente. Isso é a prova de que nada mais profissionalizante, nada mais importante para um brasileiro do que aprender a ler, escrever e contar. Se o Lula não soubesse isso, ele ficaria limpando chão na porta da fábrica. Quem aprende ler, escrever e contar vai dar certo na vida. A merda é que metade das crianças brasileiras não aprende isso. Essa é uma referência que eu faço, mas faço com respeito. Gosto pessoalmente do Lula.
‘Lula pegou os socialistas de sacristia (a igreja progressísfa e o sistema, sindical e Fez um partido político. E uma síntese inverossímel”
Euler Belém — O senhor não acha que ele pode ganhar a eleição no primeiro turno?
Acho que ele até pode ganhar. E isso é o diabo. Porque preciso que o Brizola ganhe no segundo (turno). O Brizola não pode ganhar no primeiro.
Euler Belém – Por que o Brizola está tão mal nas pesquisas?
O Brizola está mal nas pesquisas porque elas ainda não são de opinião. São de palpite. Nessas pesquisas, a mídia joga com objetivos eleitoreiros, sem muito critério. É um menino ou uma menina que chega diante de alguém fazendo papel de jornalista e conversa com o entrevistado. Numa pesquisa muito cuidadosa feita em Minas Gerais, entrevistando as pessoas, verificou-se o seguinte: é avaliável em 24,5% o número de pessoas que sabe em quem vai votar no dia 3 de outubro. Chova ou faça sol, desses 24,5% os votos do Lula são 12 por cento e uns quebrados. Essa é a votação que o Lula tem segura. Ou você acredita que a televisão tem influência — e os programas ainda não começaram e quando começarem eles vão fazer a cabeça das pessoas — ou não acredita. Se a televisão tem influência, ela vai ser exercida sobre o eleitorado. A partir de primeiro de agosto, nós temos a única coisa boa da eleição brasileira, que é a nova lei eleitoral. Agora, o candidato tem que mostrar a própria cara, usar seus próprios argumentos, dizer a que veio. E o Brizola é muito bom de televisão. E o mais maduro, dos estadistas brasileiros. E o mais brilhante, tem uma experiência formidável.
Euler Belém — Mas em que ele é melhor que Lula?
Em tudo. Primeiro, tem uma cabeça de estadista. Foi eleito em dois Estados (como governador no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro), o que nunca ocorreu com nenhum outro brasileiro. Ele escolheu o Estado em que queria ser reeleito. Podia ser reeleito no Rio ou no Rio Grande do Sul. Por outro lado, eu vi, por exemplo, a desenvoltura do Brizola no mundo. Andei com ele na Europa, na Internacional Socialista. As pessoas se impressionam, vibram. Brizola só fala português e, mesmo assim, ficou amigo de Willy Brandt (líder alemão-ocidental já falecido, foi chanceler do país na década de 1980 e um dos principais caciques da social-democracia europeia), e de (François) Mitterrand (presidente da França). Ou seja, o Brizola é uma pessoa de cabeça muito madura, com uma grande sabedoria. Ele também aprendeu muito no exercício político.
FHC é a nova cara da direita.
Tem muito intelectual boboca, meus companheirinhos, que pensa que quem leu três ou 100 livros sabe alguma coisa e acha que o Brizola não leu e sabe menos que ele. Um homem como Iris (Rezende Machado) ou como Brizola, alguém pode achar que não é tão intelectual como um professorzinho Jeca da Silva — que está aqui dando aula de geografia, porque o jequinha leu 50 livros; mas a verdade é que há uma sabedoria do político que não é menor do que a sabedoria do intelectual acadêmico. É diferente. Ele sabe outras coisas. Mas o que ele sabe é muito mais importante para o destino do país.
O Brizola é um homem de enorme sabedoria política. Tem o tal carisma. A melhor definição para o carisma é grega. Tem carisma aquele que tem uma estrela na testa. E visível, todo mundo vê. E a outra definição, mais bonita, é que tem carisma aquele que, quando entra no templo, enche o templo. Vi isso em Brizola, Jango, em doses menores, Getúlio e JK. Convivi com quem tem carisma. Quando chega, é visível. As pessoas sabem que chegou alguém.

Euler Belém — O senhor é admirador de Iris Rezende?
Conheço o Iris há muitos anos e acho que ele tem muito futuro político. O Iris fez um trabalho muito bom no Ministério da Agricultura, aqui fez um bom governo. Iris é um homem admirável.
Eu pensava que ele tivesse dado um fora certa vez. Contei uma história sobre o Iris, mas ele me dizia que não era ele. Estive aqui em 1962 para inaugurar uma escolinha do primário. O governador era Mauro Borges. O secretário da Educação era o padre Luiz. E havia alguém que eu achava que era o prefeito. Aconteceu uma coisa muito engraçada, que já contei no mundo inteiro. O tal prefeito tinha que saudar o cardeal, o arcebispo. E disse: “Reverendíssimo senhor cardeal”. Para o governador, falou: “Excelentíssimo senhor governador do Estado”. Chegou a minha vez, e ele teria que dizer “Magnífico reitor”. Engasgou, não se lembrou da saudação e disse “esplêndido reitor” (risos). Eu sempre achei que foi o Iris que tivesse feito essa bobagem, que é uma bobagem engraçada. Lamentavelmente, não foi ele e por isso eu não posso falar mal do Iris (risos).
“O candidato do PSDB fala em Estado mínimo. O Estado brasileiro já faliu, não poderia ser mais mínimo”
Afonso Lopes — O senhor disse que corre-se o risco de entregar, numa falta de patriotismo, o governo para Fernando Henrique Cardoso. Por que o senhor tem essa prevenção em relação ao ex-ministro?
Não tenho nenhuma. Gosto dele, da mulher dele, a Ruth (Ruth Cardoso, também antropológa). Sou amigo dele há muitos anos. Acho o Fernando uma simpatia. Muita gente vê aquele riso dele como debochado. Não é. É normal. Ele tem aquela boca cheia de dentes e o riso (Darcy imita a boca de Fernando Henrique). Ele é assim mesmo. É o príncipe da sociologia, meu colega, dos mais eminentes. Só eu tenho mais livros de ciências sociais traduzidos do que ele.
O problema é que Fernando Henrique emprestou a cara e a coragem para o PFL. O Pefelê, a direita mais deslavada. Ele representa essa gente que fala do Estado mínimo. O Estado brasileiro já está falido, não poderia ser mais mínimo. A ditadura acabou com o Estado brasileiro. Os serviços médicos não prestam mais. Eram muito melhores no passado. A educação era muito melhor. A previdência social… O salário da professora primária, do oficial do Exército ou de um funcionário qualquer, como o médico, é três vezes menor do que era.
Toda a política da ditadura, que enriqueceu tanto os ricos, que criou essa diferença tão grande na distribuição de renda, tão vergonhosa, esses bancos que se enriqueceram tanto, todo eles se aproveitaram do Estado e do povo brasileiro. Querer empobrecer mais é uma coisa de uma desonestidade total. Quando o Fernando Henrique se alia a essa gente, é muito mal. Se eles ganham a eleição no Brasil, não sei qual será o caminho de volta. Fazer uma virada, só com revolução. Se essa gente ganha vai agravar mais ainda o desemprego, a miséria da população, os menores abandonados, porque essa é a política deles, a política de distribuir o bolo quando tiver o bolo.

Afonso Lopes — Mas o sistema brasileiro é presidencialista. Fernando Henrique seria um presidente com poderes quase de imperador. O senhor acha que ainda assim o PFL irá mandar no governo dele?
Um governo é uma corporação de interesses, de pessoas. E uma representação de um certo corpo de interesses. Ninguém pensa que ele pode ir lá e enrolar. Ninguém pode pensar que o Fernando Henrique se elege com o Pefelê e vai fazer a política do PT. Não vai. Nós temos que optar no Brasil: ou queremos prosseguir com a política da ditadura, que é a privatização, a diminuição do Estado, mais desemprego e promessa de que você come amanhã o feijão que não comeu hoje, ou você diz que essa política tem que ser passada a limpo, tem que reconhecer que o fundamental é o sagrado direito de cada pessoa ter um emprego em que ele possa progredir. Isso é sagrado. Quem não tem emprego tem até direito de ir para o crime. Quando meninas, aos milhares, vão para a prostituição não é por urna opção moral. E a miséria que faz isso. Então, enquanto existir esse desemprego, existirá a base da violência no Rio de Janeiro, em São Paulo e aqui.
A questão é: ou se reconhece que a prioridade número um é o desemprego e tem que se criar emprego, ou se admite que é uma vergonha total ter tanto menor abandonado. Goiás não tem nenhum bezerro abandonado. Vocês conhecem algum? Nenhum cabrito. Nem frango.Frango começou a correr de casa, o dono vai cuidar dele. Mas meninos têm muitos. Não é uma vergonha? Goiás deveria morrer de vergonha por ter tantas crianças abandonadas. O Rio morre de vergonha. A única forma de não ter criança abandonada é ter escola como tem no mundo inteiro. Escola em que a criança passa o dia inteiro. Se um policial no Japão, na Indochina, em qualquer país encontrar uma criança em idade escolar, ele diz: “Meu filho, onde é a sua escola?” E ele a leva para a escola. Na terceira vez, a diretora não aceita mais, e o policial tem que levar para o juiz. A escola em que ele passa o dia todo é onde estuda. Nós temos que fazer isso também. A situação chegou num ponto em que é preciso fazer. Ninguém cuida da criança que está solta. O país, o Estado, o governo não têm a responsabilidade de saber que o fundamental é cuidar da criança agora para ela viver amanhã.
Afonso Lopes — Se o Brizola não fez isso no Rio, qual a garantia de que ele fará isso no Brasil?
Fez sim. Fiz 500 Cieps (escolas de tempo integral criadas pelo então governador Leonel Brizola, no Rio de Janeiro). Cada um deles tem mil crianças de dia e mil à noite. Essas não vão ser criminosas. No Rio de Janeiro, um preso custa 56 dólares. No Ciep, uma criança custa 40.
Afonso Lopes – Professor, o governador Luiz Antonio Fleury Filho, de São Paulo, tem uma mancha na sua história política: o massacre na penitenciária do Carandiru.
(cortando) — O Brizola não tem.
Afonso Lopes — O massacre da Candelária não é uma mancha?
De jeito nenhum. Veja só a diferença. Todos os policiais culpados estão presos. Estão presos mais 200 — a chamada polícia mineira (milícia). Eles eram contratados para matar. Há duzentos e tantos policiais presos. Mais: todos os donos do jogo do bicho estão presos. Aqui eles estão presos? Em São Paulo estão presos? Não tenho nada contra o bicho, mesmo não fazendo nenhuma fezinha. No entanto, os bicheiros se meteram com a droga e a criminalidade. Todos estão presos há muito tempo e vão continuar presos.
O Brizola expulsou da polícia 60 oficiais, coronéis e majores. Da Polícia Civil e da Polícia Militar. Onde é que isso ocorreu? Em nenhum outro lugar. No Rio se combate a criminalidade muito mais. O Rio, é claro, tem violência, como tem no Brasil inteiro, que é conseqüência do desemprego. A imprensa toda, principalmente o doutor Robertinho (Roberto Marinho, dono das Organizações Globo, que inclui a Rede Globo de Televisão, jormal O Globo e o Sistema Globo de Rádio), fez tanta propaganda da violência que ensina os meninos a brigar. Ele é culpado também. Mostra tantas agressões sexuais, que, cada vez que um menino estupra no Rio, a gente devia processar o Roberto Marinho também, como cúmplice (risos).
José Maria e Silva — O senhor condena as alianças de Fernando Henrique com o PFL, mas o Brizola e o PDT fazem alianças com o PFL em vários Estados do Brasil. O partido de Brizola defendeu a prorrogação do mandato do general João Figueiredo na Presidência da República. A prática de Brizola não á tão fisiológica quanto a dos demais partidos?
A direita não pensa como você. Tem medo é do Brizola (risos). Com o Brizola não dá (risos). Agora, é claro que nós queremos os votos dos eleitores do (Paulo) Maluf (prefeito de São Paulo). Queremos os votos dos eleitores do Quércia e de quem quer que tenha voto. Nós queremos ganhar a eleição. Agora, não tem acordo nenhum. Todo acordo que nós fazemos é com base no programa do partido.
Nós somos o único partido que tem um programa que não é novidade. Tem 50 anos. Desde a Revolução de 30. Nós fizemos a legislação do trabalho, a jornada de oito horas, o direito de sindicalização (direitos trabalhistas introduzidos no governo de Getúlio Vargas, em 45, pela CLT, Consolidação das Leis Trabalhistas, ainda em vigor embora com modificações determinadas pela Constituição de 1988), o voto da mulher. Nós somos os continuadores dessa linha. Somos os mais velhos políticos brasileiros.
Euler Belém — Se no segundo turno ficarem Lula e Fernando Henrique, o senhor fica com Lula?
Quem é que te disse?
Afonso Lopes — As respostas anteriores do senhor.
O Brizola diz que vota em branco. Tenho que admitir que nesse caso vou ficar muito danado. (risos)
Euler Belém – Quanto o senhor ganha como aposentado?
Como (professor) universitário?
Euler Belém – É.
Não sei. Eu ganho no Senado. Eu sou é senador. No Senado, uns quatro mil dólares.
Euler Belém — O senhor não é aposentado como professor?
Sou professor aposentado pela universidade do Rio, mas não sei quanto recebo. Estou sempre sem dinheiro, meu caro (risos. A assessora comenta: “Esse é o lado mineiro dele”). O que ganho é muito pouco, menos do que preciso (risos).
José Maria e Silva — O senhor tem uma bibliografia muito vasta e também uma atividade política muito intensa…
– (cortando) … Acordo todos os dias às 7 horas da manhã. Vivo muito para o serviço. Minha ex-mulher — mudo de mulher de vez em quando — tinha a capacidade de dizer que não estava pensando nada (risos). Ela era capaz de ficar sem fazer nada. Eu sou incapaz. Se fico sem fazer nado, vou ler. Ontem, como estava sem fazer nada, escrevi uro artigo e fiz um conto.
Os meninos de hoje foram induzidos a abrir mão do país. O país não é deles. Não têm orgulho do tamanho do país, da luta que custou e o sacrifício tremendo que foi fazê-lo
Euler Belém — Alguns intelectuais, como Gilberto Freyre, tentaram fazer uma síntese do Brasil. Há gente produzindo estudos importantes hoje?
Tem, mas não vou destacar uma só pessoa. A minha dor mais funda é ver uma juventude que não herdou o Brasil. E um efeito terrível da ditadura. O pior efeito. Há 30 anos, a juventude se entregava às causas sociais, disposta a se oferecer ao fio da bala. Tinha pátria. Hoje, os meninos foram induzidos a abrir mão do país. O país não é deles. Não têm orgulho do tamanho do país, da luta que custou e o sacrifício tremendo que foi fazê-lo. Não valorizam a luta política nossa. Passam a se vender como empregados de uma multinacional. Isso é muito ruim.
A minha pregação, em grande parte, é isso. Quero ver se desperto na juventude a sua qualidade principal, que é ter raiva. Um livro meu é dedicado aos jovens. Quero pessoas indignadas. O cabra que não está indignado com as pessoas passando fome não está indignado com nada. Ele deveria ficar com muito mais raiva. Se ele ficasse com raiva, iria viver, fazer a carreira política. Não é por vaidade, não. É porque ele iria brigar, fazer um escândalo. Bater panelas e gritar: “Tem menino com fome, tem menino com fome”. Ele nunca fez isso, porra…
Euler Belém — Por que as produções intelectuais brasileiras têm pouco espaço. As resenhas, por exemplo, de jornais como a Folha de S. Paulo são pequenas. Já os autores americanos ganham resenhas e mais resenhas.
Eu me formei estimulado a ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado… Como é que um jovem pode saber o que é bom ler se só jogam nele os suplementos culturais tolos, os best-sellers? Porque recebem dinheiro para isso. E impossível levar o jovem a ler literatura brasileira, que é uma coisa gozosa. Nos países do mundo todo, os meninos chegam, como o francês, a conhecer a língua e a literatura. Aqui é preciso fazer isso também. Se você pega por exemplo, o caderno Idéias do Jornal do Brasil, o caderno de cultura de O Estado de S. Paulo, tem entrevista de qualquer filho da puta que fez um livrinho qualquer, que foi best-seller em qualquer lugar, mas de brasileiro não tem. Vocês têm aqui um escritor formidável, o Bernardo Élis. Parece que ele morreu, sumiu. Ninguém — nem vocês — faz entrevista com ele.
Euler Belém (cortando) — O Jornal Opção não só faz matérias sobre Bernardo Élis como também sobre muitos autores brasileiros, toda semana.
Fazem vocês muito bem. (Darcy Ribeiro recebeu o exemplar da semana passada do Jornal Opção, que traz entrevista com Ledo Ivo, um das maiores poetas da língua portuguesa).
Euler Belém — Os livros do senhor foram traduzidos para o alemão?
Meus quatro romances foram traduzidos para o alemão e já temos edições e reedições. Eles gostam.
Euler Belém — Eles não entenderam Guimarães Rosa. O tradutor foi obrigado a explicar Grande Sertão: Veredas.
Mas apreciam muito o Guimarães Rosa. O alemão é um bom leitor. E um leitor que lê obras do mundo inteiro. Para eles, o Brasil é uma coisa como a India ou a Cochinchina. Eu tenho um livro, O Mulo (de 1981), que conta a história de um goianão, um mineiro meio goiano, que vem aqui para o Vão do Paranã fazer um fazendão. Ele é meio safado. E a história de um fazendeirão que está envelhecendo, esperando a morte e que detesta os padres que conhece. Ele resolve escrever urna confissão em carta para pedir perdão por seus pecados. Conta todos os seus pecados. Como alguns são eróticos, ele conta com detalhes, gozando os pecados eróticos. Escreve essa confissão para o padre e todo o tempo fica subornando-o, dizendo que vai deixá-lo como herdeiro de sua fazenda, do gado, de tudo que ele tem. Tenta subornar o padre e subornar Deus (risos). O romance O Mulo fez um sucesso muito grande na Itália porque é uma confissão inusitada. Dei entrevistas sobre o livro. Ganhei uma viagem para a Itália só para conversar sobre a edição de O Mulo. Na verdade, a gente nunca sabe como os leitores vão reagir diante de um livro. Na Alemanha, na Itália e em outros países, os meus livros são editados e reeditados.
Euler Belém — Aos Trancos e Barrancos não foi editado lá fora?
Não, não foi traduzido.
Euler Belém — O senhor não pretende ampliar esse livro?
O editor está pedindo porque vai de 1900 a 1980. Mas se o leitor aprender a história até 80 já é muito bom. Você usa o livro, não usa? Todo mundo usa. Porque se o leitor pega qualquer pessoa — por exemplo, Roberto Marinho e Tom Jobim — vai conhecer tudo de importante que ela fez. É a história brasileira do ponto de vista da esquerda. E tem mais uma outra coisa boa. É a maior antologia de caricaturas, com mais de trezentas. E bom de ver também. E um livro tão brasileiro que quiseram fazer na Argentina, mas não deu certo. A idéia era misturar a história argentina com a brasileira. Mas ficaria muito grande, as histórias são diferentes. E o tom do livro é brincalhão, mas o argentino não é assim.
O meu último livro, grandão, tem 1.500 páginas. A Fundação do Brasil foi publicado aqui pela Vozes, saiu na Biblioteca Ayacucho, a mais importante das Américas. Quando foram comemorar os 150 anos da batalha de libertação da América Latina, foi votada uma verba de um milhão e quinhentos mil dólares para fazer um monumento e alguém teve uma boa ideia. Em vez de fazer um monumento de bronze, que se fizesse uma biblioteca básica da América Latina. Até agora, já tem quase 300 volumes. Só tem clássicos. O melhor da literatura, da poesia, da ensaística, da filosofia. Os livros já saem, na primeira edição, vendidos, porque todas as grandes bibliotecas do mundo compram. São edições primorosas, bem encadernadas. Antes de A Fundação do Brasil, já havia saído outro, As Américas e a Civilização. Um livro muito lido nas universidades daqui (de Goiás).
Euler Belém – O senhor deixou a antropologia de lado?
Eu sou antropólogo porque minha visão de mundo e minha forma de dizer as coisas são as de um antropólogo. Os índios me reeducaram. Passei dez anos, depois de formado, com os índios e aprendi a ver gente, a amar gente, a gostar de gente. A antropologia tem muita influência em mim. Sou antropólogo nas coisas que faço. Penso como antropólogo, e as experiências que a antropologia me deu fizeram com que eu fosse um intelectual atípico.
Não pareço com meus colegas de Minas, de São Paulo ou do Rio, onde estudei. Eles estavam muito mais nos bares, na boa vida. Então, sou um sujeito meio raro. Eu entendo é do fundo de Goiás. Posso me lembrar quando vim aqui em Goiás Velho, de lá passei pelo Araguaia, parti para o Rio das Mortes. Isso tudo ficou impresso em mim. Uma visão do fundo do Brasil, uma visão do Brasil pioneiro, dessa gente que vai para o oeste, do índio que está lá resistindo. Fiquei amigo de muitas tribos indígenas.
Euler Belém – O senhor é visto como meio maluco no país…
Não. Tenho uma boa imagem. Sou respeitado. Tenho um orgulho muito grande.
No livro A Fundação do Brasil, tento reconstruir como o povo brasileiro foi feito. Como explicar que a gente tenha tanta terra, que o país seja tão grande. Portugal foi a primeira nação do mundo a se organizar como Estado nacional. Isso aconteceu grande deste país do ano 900 ao 1000. Portugal viveu mil anos com medo de ser absorvido pela Espanha, que comeu os catalães, os galegos e os bascos; o normal seria que Portugal tam bém fosse incorporado. O país ficou mil anos resistindo.
O português tem tanto sentimento de fronteiras que, em 1680, fez uma fortaleza na frente de Buenos Aires, para marcar o ponto. Depois fez uma fortaleza de granito ao longo do rio Paraguai, do rio Madeira, na fronteira com a Colômbia, na fronteira com o Equador. Nós devemos essa noção de fronteira aos portugueses. Por outro lado, a construção do Brasil me interessou muito. Como é que surge o brasileiro? O Brasil foi feito com muito poucas mulheres brancas. Uma centena que vieram, talvez, no primeiro século. A mulher que pariu o brasileiro é indígena. Suponho que duzentas mil foram apresadas. Eram poucos portugueses que pregavam as mulheres indígenas. Alguns tinham 40 ou 80 mulheres. A criança que aquela mulher pariu, quem é? Não é índio, mas só sabe falar a língua indígena. Até 1750 ele só pode falar a língua indígena, o guarani. Então, de um lado, ele sabe a cultura indígena.
Por isso pode ser bandeirante do Brasil. Ele anda. A cultura indígena é saber viver no trópico. O português não podia saber. Ele queria ser igual ao pai, mas era rejeitado como fruto da terra. Era um ninguém. Só poderia sair da “ninguendade” que era inventando o brasileiro. A mesma coisa aconteceu com o filho da negra. Para cada quatro negros, traziam uma negrinha bonitinha, que alcançava preço muito alto, para os usos do patrão. Nenhum negro tinha oportunidade de “comer” aquela negra. Quem cobria era o patrão, depois o capataz. O menino que essa negra pariu, o mulato, também é ninguém. Não é africano, ainda que seja escuro, e não é português. Quem é ele? É outro ninguém. Com esses dois ninguéns é que se constrói o povo brasileiro. A partir de sua negação, encontra uma própria afirmação como tal. Tanto que a palavra brasileiro vai surgir com os inconfidentes mineiros. Eles é que procuraram a palavra já na luta pela independência do país, na floração do círculo de mineração de Ouro Preto. Eles é que começam a usar a palavra brasileiro.