Da patrulha moral aos robôs do ódio: a engrenagem da violência digital contra mulheres
16 dezembro 2025 às 12h19

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Para entender a natureza da violência digital, que, como já informado pelo Jornal Opção, atingiu uma em cada dez mulheres brasileiras com 16 anos ou mais nos últimos 12 meses no Brasil, a reportagem conversou com a antropóloga e especialista em segurança pública Jacqueline Muniz, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em primeiro lugar, Muniz define o conceito. “A violência digital é um termo amplo que se refere a qualquer tipo de violência ou abuso que ocorre no ambiente digital, através de redes sociais, fóruns, aplicativos de mensagens privadas e outros espaços”. No entanto, ela avança além da definição técnica para descrever a essência do fenômeno. Segundo a especialista, trata-se de uma forma de agressão violenta que busca destituir a pessoa, destruir sua reputação e induzi-la a situações traumáticas.
Ela detalha ainda o amplo espectro de ações que caracterizam o ataque digital, afirmando que a violência se manifesta de várias formas. Muniz cita o bullying digital, a perseguição e o patrulhamento moral, destacando que tudo vai além de ofensas e desrespeito.
A professora inclui nessa categoria os mecanismos invasivos de vigilância, a sabotagem de perfis, a alteração de fotos e imagens, com ou sem uso de inteligência artificial, com o propósito de desqualificar. Em sua análise, todas essas são formas de desqualificação, destituição, ataque à dignidade e, portanto, violação de direitos.
Posteriormente, Jacqueline Muniz enfatiza um componente que diferencia e potencializa a violência online: a mediação de ferramentas automatizadas e a sensação de impunidade do agressor. “É uma forma deliberada de violência, sim. E de uma violência covarde. O agressor não está diante do agredido. Ele está à distância, promovendo ataques. Ele se sente seguro, protegido pela distância digital”. E adverte: “Os ataques são diretos, mas a presença dessa pessoa, inclusive, pode não existir. Ela pode ser simplesmente um robô, um perfil falso”.

Consequentemente, essa arquitetura de ataque gera um ciclo de vitimização perverso, que a antropóloga descreve como uma espécie de ‘bom dia, boa tarde e boa noite [macabro]’, recebidos cotidianamente pela vítima. Ela explica que, por ser uma programação, o algoritmo ou robô, sem consciência, segue reproduzindo mecanicamente o ataque no horário para o qual foi configurado. “Ele foi programado para todo dia, a tal hora, mandar uma mensagem horrorosa”.
Naturalmente, os impactos psicológicos são severos e mensuráveis. “Isso impacta deliberadamente a vida das pessoas. Está de forma dramática, de forma grave, levando a casos de depressão, a indução de suicídio, a autodestruição, a baixa estima, todas as formas de transtorno e traumas a que pessoas que experimentam ataques digitais de maneira sistemática estão expostas”.
Ao analisar o perfil das vítimas, a professora da UFF traça um panorama com base no monitoramento do fenômeno. “Primeiro que qualquer um de nós pode vir a ser vítima, alvo de ataques deliberados. Mas, em especial os jovens, que são aqueles que estão mais na internet”.
Em seguida, ela identifica os grupos socialmente mais atacados: os grupos em situação de vulnerabilidade ou minorizados, que acabam revelando os preconceitos da sociedade em seus ataques. Nesse sentido, ela aponta especificamente as mulheres, sobretudo as negras, e a comunidade LGBTQI+.
Muniz então elabora uma tese para entender a motivação dos ataques. “Os grupos sob ataque são aqueles que mais deliberadamente lutam pela igualdade em direitos. Veja que os ataques se dirigem a lutas e espaços de avanço civilizatório e de reconhecimento da igualdade”. Dessa forma, a violência digital aparece como uma reação a transformações sociais progressistas.
Um capítulo específico dessa violência é a chamada violência política de gênero. “O maior destaque são sempre, sim, as mulheres. É como se as mulheres ‘estivessem no lugar errado’. É como se as mulheres não pudessem estar no espaço público, como se as mulheres não pudessem exercer o lugar de autoridade”, analisa.
Como exemplo, cita casos nacionalmente conhecidos. “A Manuela d’Ávila sofreu uma patrulha, ataques sistemáticos por anos. Isso, evidentemente, implicou em uma redefinição de rotas dela. Porque os ataques não eram dirigidos exclusivamente a ela só, mas a toda a sua família. As patrulhas digitais saíram do mundo digital e foram para as ruas”.
Outros nomes públicos também são citados, como a filósofa Márcia Tiburi, alvo de ataques deliberados, e a antropóloga Débora Diniz, que precisou deixar o Brasil devido à intimidação constante. A própria Jacqueline Muniz relata viver sob essa tensão. “Eu estou sob ataque, por ser uma intelectual, uma pesquisadora que questiona, que tem conhecimento num tema que é considerado um monopólio masculino. Sendo eu mulher, ‘eu estou num lugar errado’”.
Ao descrever os perpetradores, a antropóloga faz um retrato que contraria a expectativa comum. “Quem vai me atacar? O cidadão e a cidadã ‘de bem’. Que se veem ameaçados no seu status quo. Que querem viver um monopólio no exercício da sua visão de mundo, destituindo outros modos de ser”.
Ela explica a dinâmica psicológica por trás disso. “O ódio, a desqualificação, a raiva, dá mais engajamento, dá mais likes, e produz mais sucesso nas redes sociais. Porque o ódio e a raiva tem como fundamento o medo. Odiar quer dizer que você demarcou uma fronteira, colocou um muro, então agora você está protegido e junto com você, muitos outros. Por isso, para eles, falar mal das pessoas é falar bem de si”.
Muniz também alerta para o fato de que essa violência frequentemente transborda do ambiente digital. Ela afirma que as milícias digitais, muitas vezes, migram para as ruas, para as portas das escolas, convertendo-se em espancamentos, julgamentos e rituais de tortura.
Ela exemplifica: “Se você está num restaurante, como fizeram comigo, vão lá, te fotografam e mandam todo mundo para ir atacar. Eles aparecem na porta de um estabelecimento e tentam impedir as pessoas de entrarem”.
Questionada sobre a efetividade da legislação atual, como a Lei Carolina Dieckmann, a especialista é enfática sobre a necessidade de avanços. “É preciso melhorar. A ideia não é demonizar as ferramentas tecnológicas. Porque nenhuma ferramenta é neutra. Ela está sempre a serviço de uma vontade”.
Ela aponta o cerne do problema: a regulação das Big Techs. “A briga é uma briga de cachorro grande. Porque a briga é com as big techs e com as big techs não adianta o Brasil brigar sozinho. O território da internet é um território translocal”.
Muniz critica ainda o modelo de negócios que sustenta as plataformas. “Ali, a grande mercadoria a ser vendida são as pessoas”, diz. Ela explica que para às Big Techs, manter o engajamento alto muitas vezes significa alimentar conteúdos que mobilizem emoções fortes, como o ódio e a ira.
Por isso, segundo ela, as respostas atuais são insuficientes. “Os caminhos principais hoje são entrar na justiça. Mas, para isso, você tem que ter dinheiro. Você tem que ter advogado. Você tem que suportar esse processo. Mas a destruição da reputação é em tempo real, então, as ações também teriam que estar mais próximas disso”.
Jacqueline Muniz reflete ainda sobre o significado mais profundo desses ataques. “As pessoas não se incomodam com as práticas sexuais, e sim com a identidade sexual. As pessoas não se incomodam com a mulher em si, e sim com a identidade de gênero. É disso que se trata. O que importa é destituir o outro de identidade. Por isso, o ódio à identidade. Porque a identidade é aquele lugar que sintetiza a nossa história, a nossa trajetória, a nossa maneira de exercer a nossa vida no cotidiano”.
Como funciona a violência cibernética na prática?
Paralelamente à análise da especialista, o Governo Federal, por meio da Secretaria da Informação e Cibernética, produziu um Manual de Segurança Digital focado na “Violência cibernética contra as mulheres”. O documento detalha as diversas formas de abuso, que englobam uma ampla gama de práticas abusivas e nocivas:
- Assédio online: Caracterizado por condutas abusivas através de palavras, textos e comportamentos que causam danos à integridade física ou psíquica. Inclui body shaming, envio de mensagens de conotação sexual sem consentimento e compartilhamento de informações não autorizadas por terceiros.
- Perseguição (Stalking / Cyberstalking): Previsto na Lei 14.132/2021, é a perseguição e assédio constante de alguém na internet. Exemplos são a criação de perfis falsos para envio de mensagens e monitoramento da vítima, instalação de spyware no celular para rastrear localização e o uso de softwares espiões.
- Sextorsão: Crime que envolve a extorsão de uma pessoa com a ameaça de exposição de fotos ou vídeos sexuais na internet. Pode ocorrer após uma conversa de cunho sexual com mútua exposição, com o criminoso cobrando valores sob ameaça de divulgação; por invasão de dispositivos e contas para roubo de conteúdo íntimo; ou por ameaças onde o criminoso finge ter posse de conteúdos íntimos para chantagear a vítima.
Como se proteger?
O manual destaca ainda um plano de proteção preventiva. Algumas práticas recomendadas incluem:
- Segurança das senhas: Ter senhas fortes com letras maiúsculas, minúsculas, números e caracteres especiais, utilizando a autenticação de dois fatores. Mudar a senha periodicamente e não utilizar a mesma senha em diferentes contas.
- Educação digital: Entender a dinâmica das redes sociais, conhecendo suas configurações de privacidade e sabendo usá-las, limitando o acesso às informações pessoais.
- Cuidado com as informações: Evitar compartilhar informações pessoais como documentos, endereço, telefone particular, etc.
- Cuidados com aplicativos de mensagens: Usar sempre aplicativos de mensagens criptografados (WhatsApp, Signal, Telegram), mantendo cuidado com o compartilhamento de fotos e vídeos íntimos com terceiros.
- Atualizações de segurança: Manter dispositivos e aplicativos atualizados, pois essas atualizações geralmente incluem correções de segurança.
O que fazer ao sofrer um ataque?
Sofrer um ataque de violência cibernética pode ser uma experiência traumática. É importante saber como reagir e quais passos tomar para se proteger e buscar justiça.
- Manter a calma e avaliar a situação: Não reagir impulsivamente e responder o agressor de imediato. Avaliar a natureza e a gravidade do ataque (assédio, vazamento de informações, etc.). Utilizar as ferramentas de bloqueio nas redes sociais e outras plataformas para impedir o contato do agressor.
- Documente o ataque: Registre evidências referentes ao ataque: faça capturas de tela, mantenha cópias de e-mails, conversas de chat, postagens e qualquer outro registro relevante.
- Busque apoio oficial: Encaminhe as evidências coletadas a uma delegacia local e registre um boletim de ocorrência. Siga monitorando suas contas e sua atividade online para garantir que o agressor não esteja atacando por outros meios.
