Nem mesmo as plataformas de transporte por aplicativo, como a Uber e a 99, conseguiram se livrar das ações de criminosos cibernéticos. Grupos de bandidos têm usado redes sociais como Facebook, Telegram e WhatsApp para vender e divulgar o aluguel de contas falsas em nome de terceiros para que condutores expulsos das plataformas voltem a trabalhar de forma ilegal. 

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Por três semanas o Jornal Opção acompanhou, negociou e conversou com clientes e criminosos a fim de entender como funciona a prática, tida como estelionato, falsidade ideológica e falsa identidade pela Polícia Civil de Goiás (PC). Durante as conversas com cibercriminosos de cinco estados, incluindo Goiás, o repórter chegou a negociar contas para motociclistas e motoristas de app. 

Para facilitar a comercialização das contas nas plataformas, os estelionatários possuem diversas faixas de preço, que variam entre R$ 150 a R$ 900. Porém, afirmam: “tem que aproveitar porque tá na promoção. Depois vai passar de R$ 1 mil”. Caso o veículo do comprador esteja atrasado ou possua uma idade maior do que o limite estipulado pelas plataformas, de 10 anos, é cobrado mais R$ 200 para “legalizá-lo”. Ou seja, burlar o sistema.

Se o motorista não ter verba suficiente para arcar com a compra, ele pode optar pelo aluguel semanal. Tanto o aluguel quanto a venda possuem um brinde: um período de “degustação” para provar a eficiência da inscrição falsa, além da remoção do sistema de segurança. 

“Pronta estou tendo só de carro. Se você quiser uma do zero é R$ 900. Tenho umas on-line aqui que estão mais de ano logadas. É tudo em nome de terceiros, tenho só que colocar seu veículo e a sua foto de perfil e, então, é só meter marcha. Se você quiser eu dou uma conta para você rodar e você me manda o dinheiro. A conta bancária é você que coloca”, afirmou o criminoso de Goiânia, que se identificou como Bambino.

O tempo de espera para criar o espaço de trabalho nas plataformas com documentos roubados pode chegar a uma semana. Segundo os criminosos, o período leva em conta o tempo em que os estelionatários levam para criar a conta e a mesma ser aprovada pela Uber ou 99.

Perguntados se o repórter poderia correr algum risco ao usar as contas falsas, a resposta foi unânime: “Se você trabalhar certo, pode ficar sossegado”. Alguns dos estelionatários, inclusive, escancaram que trabalham há anos falsificando contas e ainda alertaram o repórter, que se passou por um motorista em busca de contas em nomes de terceiros.

“Mano, eu tenho 270 pessoas no meu grupo e nunca deu B.O [problema]. Lógico, tem coisas que você precisa evitar, como ter muita avaliação ruim. Se for contar da 99 eu consigo até retirar a facial dela, entendeu? Te dou até uma garantia de um mês”, contou Tio Patinhas, cibercriminoso de São Paulo.

Contas variam de R$ 150 a R$ 900 | Foto: Pedro Moura

“É de confiança”

Para ganhar a confiança do repórter, Tio Patinhas chega a pedir para buscar referências no grupo “Contas do Tio Patinhas”. Segundo ele, “o trabalho é certo” e que não quer levar prejuízos para ninguém: “Sem crise, pai. Se quiser perguntar se esse cara é ‘dá hora’, pode perguntar”.

Nos espaços compartilhados por pessoas das cinco regiões do País, que chegam a mais de 3 mil membros, se misturam vídeos de supostos clientes em meio a enxurrada de anúncios e pessoas em busca de contas. Nas mensagens via vídeo e escrita, os falsos motoristas de app afirmam que compraram as contas falsificadas e que trabalham de forma normal, sem preocupações. 

“Eu sou Alan aqui de Recife, Pernambuco. O cara é desenrolado mesmo, trampa. Se vocês precisarem de alguém para desbloquear a conta da Uber, 99, InDrive, podem chegar nele. Ele é desenrolado, cara trampa mesmo. Valeu pela parceria, meu irmão. Passei muito tempo parado, sem rodar, mas agora estou aí de novo”, afirmou o pernambucano se referindo ao criminoso Lucas Martins.

“Fiz uma compra de uma conta com o Lucas Martins. Me surpreendi com o cara, me entregou no prazo, tudo certinho. A conta é ótima, estou usando, dando tudo certo graças a Deus. Vai no cara que ele é brabo, desenrola mesmo”, reforçou Alexandre, outro suposto cliente de Lucas. 

Motoristas podem ser penalizados 

O delegado de Polícia Civil de Goiás Wellington Ferreira explica que o motorista que compra a conta, assim como o cibercriminoso, também pode ser preso por estelionato, falsidade ideológica e falsa identidade. As penas chegam a 10 anos de prisão.

Isso porque, ao comprar a conta, o motorista também está cometendo um crime. As penas, porém, são aplicadas conforme o contexto fático. Ou seja, a conduta de cada criminoso.

“O combate a esse tipo de crime ocorre de forma preventiva, como em abordagens policiais de rotina da polícia ostensiva. O meio digital dificulta a atuação da polícia, porém, há ferramentas e meios específicos de investigação para a identificação dos infratores”, contou Wellington 

Contas falsas são comuns 

Mesmo ilegal, a atuação de motoristas de app usando contas em nomes de terceiros são comuns, de acordo com o vice-presidente da Associação dos Motoristas por Aplicativo de Goiás (Amago), Rodrigo Vaz. Há sete anos “rodando”, Rodrigo diz que já se deparou com muitas situações onde um motorista usa a conta de amigos para trabalhar após ser banido das plataformas.

Atualmente, Goiás possui mais de 40 mil motoristas e motociclistas por app. Para ele, a atuação dos trabalhadores ilegais prejudica a categoria, fazendo os passageiros optarem por outros meios de transporte devido ao medo. 

“Às vezes o passageiro entra com medo, mas a gente também corre perigo assim como eles. Muitas vezes esses motoristas não são bandidos. Está certo que eles trabalham de forma errada, mas muitos motoristas fizeram dívidas para trabalhar e acabaram banidos”, explicou.

O banimento das plataformas, de acordo com Rodrigo, ocorre principalmente devido às más avaliações – normalmente feitas por direção perigosa e devido ao estado em que se encontra o veículo. Ele diz que alguns motoristas, por meio de ações judiciais, conseguem voltar ao app.

“É impossível manter o carro sempre limpo e isso pode gerar uma avaliação ruim. A gente não ganha muito e para manter o carro impecável gasta muito dinheiro com lava jato, cheirinho. Não andamos apenas em regiões nobres, também vamos para locais onde o carro acaba sujando.

O Jornal Opção procurou a Uber, 99 e InDrive para que se posicionassem, mas não obteve retorno. A reportagem também tentou posicionamento da empresa Meta e Telegram, mas não conseguiu contato com as empresas.

Grupos são abastecidos com anúncios | Foto: Pedro Moura