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Entre 2020 e 2024, 2.021 meninas de 10 a 14 anos deram à luz em Goiás, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES-GO). O número, que poderia ser apenas mais um dado frio em uma planilha, carrega uma brutalidade jurídica e humana incontornável: pela legislação brasileira, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é automaticamente considerada estupro de vulnerável. Isso significa que, por definição legal, todas essas meninas foram vítimas de violência sexual. Não há exceções, relativizações ou “consentimento” nesse contexto. A gravidez, nesses casos, é mais um desdobramento de um crime.

Apesar dessa realidade, o acesso ao aborto legal — previsto há décadas no Código Penal para casos de estupro, risco de morte da gestante e, por decisão do STF, anencefalia — continua sendo um privilégio restrito a pouquíssimas. Dados do Hospital Estadual da Mulher (HEMU), unidade de referência em Goiás para interrupção legal da gestação, mostram que, entre 2020 e 2024, apenas 24 procedimentos foram realizados em meninas menores de 18 anos em decorrência de violência sexual. Mesmo que se considere vítimas de todas as idades abaixo de 18 anos, trata-se de um número ínfimo diante das 2.021 crianças de 10 a 14 anos que engravidaram no mesmo período.

A disparidade revela mais do que falha de acesso: evidencia um sistema que, na prática, abandona meninas estupradas à própria sorte. De um lado, a lei garante o direito à interrupção da gestação; de outro, burocracias, preconceito, desinformação, objeção de consciência e decisões políticas tornam esse direito quase inalcançável. No fim da linha, o que se vê são crianças obrigadas a atravessar uma gestação de altíssimo risco físico e emocional como se fossem adultas, em um país que formalmente se diz comprometido com a proteção da infância.

Enquanto isso, Brasília legisla contra as vítimas

Em vez de ampliar mecanismos de proteção, garantir acesso à informação e fortalecer a rede de atendimento, a Câmara dos Deputados decidiu avançar em outra direção. No início deste mês, a maioria dos parlamentares aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/2025, que anula a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) sobre atendimento humanizado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual na rede pública de saúde.

A resolução não criava um “novo direito”, tampouco “liberava” aborto. Apenas atualizava orientações para que serviços de saúde pudessem acolher vítimas de forma segura, garantindo acesso ao aborto legal nos critérios já previstos em lei, sem exigir boletim de ocorrência ou autorização da família — medida essencial em situações em que o agressor é o pai, o padrasto, o avô ou quem detém o poder sobre a criança. Ao derrubar essa resolução, o Congresso lança as vítimas de volta à lógica da desconfiança, da humilhação e da revitimização.

No plano nacional, os números dão a dimensão do problema. Entre 2013 e 2023, o Brasil registrou mais de 232 mil nascimentos de mães com até 14 anos, todas em idade inferior à de autorização sexual. São, portanto, gestações decorrentes de estupro. Apesar disso, em 2023, apenas 154 meninas conseguiram acesso ao aborto legal em todo o país. A discrepância não é uma estatística abstrata: ela representa, a cada ano, milhares de meninas forçadas a manter uma gravidez fruto de violência, muitas vezes em contextos de extrema vulnerabilidade social.

O movimento legislativo não é isolado. Em 2024, a Câmara já havia sido palco de forte reação social com o Projeto de Lei 1.904/2024, que equiparava o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio simples, inclusive em casos de estupro. Se aprovado, o texto poderia levar à prisão por até 20 anos tanto médicos quanto mulheres que realizassem o procedimento. A proposta foi amplamente criticada por juristas, médicos e entidades de direitos humanos, que classificaram a iniciativa como violência institucional e tortura.

Em paralelo, decisões como a resolução do Conselho Federal de Medicina que tentou restringir procedimentos em gestações avançadas e projetos estaduais que obrigavam mulheres a ouvir batimentos cardíacos fetais antes da interrupção — como o que foi aprovado em Goiás e posteriormente considerado inconstitucional — reforçam um padrão: em vez de construir políticas para reduzir a violência sexual e apoiar as vítimas, cria-se uma engrenagem normativa voltada a controlar seus corpos.

Bancada goiana escolhe o lado do retrocesso

A atuação da bancada federal de Goiás na votação do ‘PDL da Pedofilia’, como ficou conhecido, ajuda a entender por que o cenário local é tão grave. Dos 17 deputados federais do estado, três não estavam presentes na votação: Flávia Morais (PDT), Marussa Boldrin (MDB) e Adriano do Baldy (PP). Dos 14 que participaram, apenas dois — Delegada Adriana Accorsi (PT) e Rubens Otoni (PT) — votaram contra o projeto, em defesa da resolução do Conanda e do atendimento humanizado às vítimas.

Os demais parlamentares goianos votaram a favor da anulação da resolução, contribuindo para dificultar ainda mais o acesso ao aborto legal em casos de estupro, inclusive de crianças. Entre os que apoiaram o projeto estão deputados de diferentes partidos e espectros, muitos deles alinhados com a pauta religiosa conservadora. Nenhum desses parlamentares tem histórico consistente de apresentação de projetos que ampliem a proteção às crianças, como fortalecimento de conselhos tutelares, expansão de abrigos, criação de programas de apoio psicológico, prevenção à violência sexual ou educação sexual nas escolas.

Na prática, a mensagem é contraditória: legisla-se sobre o corpo de meninas estupradas, mas não se aprova leis com a mesma força para garantir segurança, acolhimento e futuro para essas mesmas crianças. O foco recai sobre a gestação, não sobre a violência que a originou.

Enquanto Brasília discute projetos que restringem direitos, a realidade nas cidades brasileiras escancara o que acontece quando o Estado se omite. O Censo 2022 do IBGE revelou que mais de 34 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos viviam em algum tipo de união conjugal no país, apesar de a lei proibir casamento civil abaixo dos 16 anos. Em Goiás, 1.241 crianças e adolescentes nessa faixa etária declararam viver em união conjugal. São dados que revelam não apenas violações formais da legislação, mas a naturalização de relações assimétricas de poder, muitas vezes romantizadas como “uniões” e raramente encaradas como abuso.

Esse contexto se soma aos indicadores de estupro de vulnerável, à falta de políticas de prevenção e à precariedade dos serviços de proteção. No campo legislativo, o foco está voltado para projetos que retiram direitos; na base, meninas são empurradas para uniões precoces, maternidade forçada e abandono escolar, sem suporte real da rede de proteção.

Dentro do HEMU: quando o socorro chega

Em meio a esse ambiente hostil às vítimas, o Ambulatório de Apoio às Vítimas de Violência Sexual do Hospital Estadual da Mulher se torna uma das poucas portas de cuidado efetivo em Goiás. O serviço funciona anexo à unidade, garantindo maior privacidade, e é estruturado em torno de uma equipe multiprofissional formada por psicóloga, assistente social, médica ginecologista, enfermeira e técnica de enfermagem. O primeiro contato costuma ocorrer pelo pronto-socorro do HEMU, que atende 24 horas por dia, sete dias por semana.

A coordenadora do ambulatório, a psicóloga Thais Maris Sales, explica ao Jornal Opção que o atendimento é pensado para ser o mais acolhedor possível em um momento de extrema vulnerabilidade. A vítima, criança, adolescente ou adulta, passa por exames, recebe medicações de profilaxia contra infecções sexualmente transmissíveis e anticoncepção de emergência, quando possível. Em seguida, é encaminhada para acompanhamento no ambulatório por até 180 dias. “São retornos programados em 15, 45, 90 e 180 dias, mas isso é flexível. Se há necessidade psicológica maior, a paciente volta antes. Nosso objetivo é não deixá-la sozinha depois da violência”, afirma.

Thais destaca que o ambulatório atende pessoas acima de 14 anos, enquanto crianças menores são, em princípio, referenciadas ao Hospital da Criança e do Adolescente. No entanto, quando há demanda ginecológica ou gestação em meninas, o HEMU assume o atendimento integral. “A violência sexual acontece em todas as idades. Já atendemos pacientes de um ano e três meses até 97 anos. Não existe um perfil único. O que existe é um conjunto de vulnerabilidades, marcado por raça, classe e gênero. A maioria é de mulheres negras, periféricas, que se deslocam em horários de maior risco e vivem em áreas com menos proteção”, explica.

Ela relata que muitas vítimas chegam com um sentimento profundo de culpa, mostrando como a violência estrutural também é simbólica. “É comum ouvirmos: ‘Por que eu saí de casa?’, ‘Por que eu deixei minha filha lá?’. O trabalho começa por desconstruir a ideia de que o problema está no comportamento da vítima. Não está. Se violência fosse evitada ficando em casa, não teríamos tantos casos dentro do próprio lar”, diz.

Coordenadora do ambulatório, Thais Maris Sales | Foto: Arquivo

“A violência não é exceção, é sistema”: a visão de Thais sobre retrocessos

Para Thais, o PDL 3/2025 e projetos semelhantes não surgem do nada. Eles fazem parte de uma ofensiva contínua sobre direitos reprodutivos e sobre o corpo das mulheres. Ela cita como exemplo a resolução do Conselho Federal de Medicina que tentou restringir procedimentos em gestações avançadas e a série de propostas que surgem com frequência nas esferas municipal, estadual e federal. “São tentativas sucessivas de retroceder direitos já garantidos. Alguns projetos são aprovados, vigoram por um tempo, depois caem. Mas a sensação é de estar sempre resistindo, um dia de cada vez”, afirma.

Desde 1988, mais de mil projetos de lei com a palavra “mulher” como termo central tramitaram no Congresso tratando não de proteção, mas de controle de direitos reprodutivos, sexualidade e aborto. “É um ataque sistemático. Em vez de avançar em políticas de proteção, reforça-se uma lógica de culpa e punição sobre as vítimas”, avalia.

Ela lembra que, enquanto faltam leis que garantam alojamento, renda e segurança para quem rompe com o agressor — como benefícios de aluguel social e programas de proteção continuada — sobram iniciativas para restringir o aborto legal. “Temos mulheres que dependem financeiramente dos parceiros agressores, sem para onde ir. Falta apoio concreto. E ao mesmo tempo surgem projetos para dificultar o acesso ao aborto e para vigiar decisões íntimas”, afirma.

Para Thais, a discussão sobre aborto precisa ser trazida para o campo da saúde pública, tirando-a da esfera exclusiva da moral religiosa. “As pessoas vão continuar interrompendo gestações, queiram ou não os parlamentares. A diferença é se isso vai ser feito com acompanhamento médico, em ambiente seguro, ou de forma clandestina, com risco de morte. Se o Estado não cuida, a violência se multiplica. E não estamos falando só de gestação: estamos falando de infecções, de traumas, de tentativas de automutilação e suicídio. É disso que se trata”, resume.

“Aborto é saúde pública, não crença”: o alerta do ginecologista José Ricardo

Se no HEMU o acolhimento se dá na ponta mais visível da rede, em Aparecida de Goiânia o Ambulatório Ipê cumpre papel semelhante. O ginecologista José Ricardo, responsável pelo serviço, já atuou no próprio HEMU antes de coordenar o ambulatório em Aparecida. Ele relata que a unidade atende em média 30 novos casos de violência sexual por mês, sem contar os retornos, que podem se estender por seis meses.

A violência, segundo ele, é “democrática” no pior sentido possível. “Ela acontece em famílias ricas e pobres, estruturadas e desestruturadas. Mas as crianças em vulnerabilidade econômica estão mais expostas à exploração sexual, ao abuso continuado, à ausência de rede de apoio. Ainda assim, não dá para dizer que é um problema restrito a uma classe. Isso atravessa a sociedade inteira”, afirma ao Jornal Opção.

José Ricardo reforça que o aborto legal, especialmente em casos de crianças, não pode ser tratado como escolha “frívola” ou “ideológica”. “Criança não é para ser mãe. Não é uma frase de impacto, é uma verdade biológica. O corpo delas não está pronto. Vemos quadros gravíssimos de eclâmpsia, convulsões, risco real de morte. Quando a lei permite a interrupção nessas situações, ela está tentando impedir uma tragédia maior”, explica.

Ginecologista José Ricardo | Foto: Arquivo

Ao comentar as tentativas de impor um limite de 22 semanas para aborto legal, o médico é direto: “Se essa regra valesse para crianças, estaríamos condenando muitas delas à morte ou a uma maternidade forçada. Crianças não associam atraso menstrual à gravidez. As famílias também não. Só percebem quando a barriga cresce, depois de 20 semanas. O mesmo vale para pessoas acamadas, com déficit cognitivo ou motor. Descobre-se tarde, porque o corpo não tem como expressar de outra forma. Por isso não pode haver limite gestacional nesses casos. Não é uma questão de opinião, é de realidade clínica.”

Na visão de José Ricardo, o PDL 3/2025 e projetos similares têm uma consequência direta: aumento do aborto clandestino e da mortalidade materna, especialmente entre mulheres pobres, negras e periféricas. “Proibir não faz desaparecer. Só empurra para a clandestinidade. E quando essas mulheres passam mal, muitas têm medo de procurar o sistema de saúde por vergonha, julgamento ou medo de criminalização. É uma cadeia de abandono”, afirma.

A internet, o quarto fechado e o trabalho da DPCA

Se na saúde a luta é por acolhimento, na segurança pública o combate se dá em outro front: o da investigação e da responsabilização dos agressores. O delegado Henrique Wilson, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente em Goiânia, destaca que a maioria esmagadora dos casos de estupro de vulnerável acontece dentro da própria casa, cometida por pessoas em quem a criança confia. Pais, padrastos, tios, avós, irmãos mais velhos e vizinhos próximos aparecem com frequência nas investigações.

Segundo ele, as vítimas mais comuns têm entre 5 e 10 anos, justamente pela baixa capacidade de compreender a violência e pela facilidade com que são manipuladas. “Uma criança pequena não tem repertório para nomear o que está acontecendo. Muitas vezes ela acredita que aquilo é um gesto de afeto, porque quem faz é alguém que a família diz que ela deve amar e respeitar. A vergonha, o medo e as ameaças completam o quadro”, explica em entrevista ao Jornal Opção.

Henrique destaca ainda o papel da escola, dos serviços de saúde e dos conselhos tutelares na detecção dos casos. Mudanças bruscas de comportamento, retração, queda de rendimento, automutilação, choro constante e regressão de hábitos, como voltar a urinar na cama, são sinais que precisam ser levados a sério. “Hoje há vários canais formais de denúncia, como o Disque 100 e o 197 da Polícia Civil, além dos fluxos internos de educação e saúde. Mas ainda assim é pouco diante da dimensão do problema”, afirma.

Henrique Wilson, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O delegado chama atenção para uma outra frente de risco: a internet. Ele relata que é cada vez mais comum encontrar casos em que abusadores se passam por crianças ou adolescentes em jogos on-line e redes sociais, estabelecendo vínculos com menores e, gradualmente, os conduzindo a situações de exposição sexual, troca de imagens íntimas e encontros presenciais. “O lugar mais perigoso para uma criança hoje pode ser o próprio quarto, de porta fechada, com acesso livre à internet. Os pais acham que ela está segura porque está em casa, mas ela pode estar em contato com qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo”, alerta.

Henrique defende que a responsabilidade pelo controle do acesso de crianças à internet é, em primeiro lugar, das famílias. “Não existe direito à privacidade que se sobreponha ao dever de proteção. Criança não tem discernimento para avaliar o risco. É papel dos pais fiscalizar o que elas acessam, com quem falam, quais aplicativos usam. Esperar que o Estado regule tudo, enquanto as crianças navegam sem supervisão, é um equívoco perigoso”, afirma.

Uma rede de proteção em colapso

A fragilidade da rede de proteção em Goiás se evidencia não apenas nas estatísticas de violência, mas também nas estruturas concretas. Em Goiânia, o fechamento do abrigo público Niso Prego, que acolhia crianças e adolescentes em situação de risco, retirou uma peça importante desse sistema. Hoje, boa parte das vítimas é encaminhada para abrigos mantidos por entidades filantrópicas, muitas vezes ligadas a instituições religiosas, como o Eunice Weaver, gerido por igreja evangélica.

Henrique reconhece o esforço de profissionais que atuam nesses espaços, mas admite que as condições estão longe do ideal. Thais e José Ricardo também demonstram preocupação com o destino de crianças e adolescentes após o fim do acompanhamento em saúde. “Muitas vítimas que optam por manter a gestação saem do ambulatório sem uma rede concreta de apoio para seguir. Falta suporte psicológico de longo prazo, falta política habitacional, falta renda, falta acompanhamento continuado. A sensação é de que cada setor faz o que pode, quase isolado”, avalia Thais.

Conselhos tutelares sobrecarregados, equipes reduzidas, pouca articulação entre saúde, educação e assistência social e ausência de políticas de prevenção formam o pano de fundo de uma realidade em que a violência sexual é tratada quase sempre como problema individual, e não como fenômeno estrutural.

Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Entre a letra da lei e o chão da realidade

A legislação brasileira avançou nas últimas décadas com o Estatuto da Criança e do Adolescente e normas que estabelecem prioridade absoluta para a infância. No papel, há previsão de proteção integral, atendimento prioritário, políticas de convivência familiar e comunitária, campanhas educativas e punição rigorosa de agressores. Na prática, porém, o que se vê é um descompasso profundo entre a letra da lei e o chão da realidade.

Para o delegado Henrique Wilson, o Estatuto é robusto, mas precisa ser efetivado. “Se tudo o que está no ECA fosse cumprido, as crianças teriam um nível de proteção muito maior. O problema não é falta de lei, é falta de vontade política, de recursos e de continuidade”, afirma. José Ricardo vai além e defende que a legislação deve ser complementada para ampliar ainda mais a proteção e garantir rede de cuidado, e não restringir direitos. Thais, por sua vez, insiste que nenhuma discussão séria sobre infância e adolescência pode ignorar raça, gênero, classe e território.

Enquanto deputados aprovam projetos que retiram salvaguardas para o atendimento de vítimas, a pressão recai sobre profissionais que, com poucos recursos, tentam tapar as brechas de um sistema que falha em vários níveis. Quando o Congresso exige que crianças estupradas levem gestações adiante, mas não assegura abrigos, acompanhamento psicológico e políticas de prevenção, a mensagem é clara: a prioridade não é a proteção das vítimas, mas o controle sobre seus corpos.

Um país que abandona suas meninas

A trajetória do PDL 3/2025 no Congresso, somada a iniciativas anteriores como o PL 1.904/2024 e leis estaduais restritivas, compõe um quadro de regressão em direitos reprodutivos que se choca frontalmente com a realidade de Goiás e do Brasil. Enquanto meninas de 10 a 14 anos engravidam em contexto de violência, enquanto abrigos são fechados, enquanto conselhos tutelares lutam com estruturas precárias, enquanto ambulatórios como o do HEMU e o Ipê tentam oferecer cuidado, uma parte significativa da elite política se concentra em legislar para dificultar o pouco que a lei ainda garante.

Ao final, o país se vê diante de uma contradição difícil de ignorar: exige-se que crianças carreguem até o fim gestações decorrentes de estupro, mas não se oferece a elas o mínimo de proteção, reparação e futuro. A pergunta que se impõe, diante dos números, das histórias e das falas de quem está na linha de frente, é dura e simples: quem protege as meninas brasileiras quando o próprio Estado decide voltar as costas para elas?

Se a resposta continuar sendo silêncio, burocracia e retrocesso, os próximos balanços de nascimentos em Goiás e no Brasil não serão apenas estatísticas, mas retratos de um país que escolheu abandonar suas crianças justamente quando elas mais precisavam de amparo.