As Sisters of the Valley, conhecidas mundialmente como as “freiras da cannabis”, completam dez anos de uma jornada singular que mistura espiritualidade, ativismo e medicina natural no Vale de San Joaquin, na Califórnia (EUA). Formada por mulheres de diversas origens, a comunidade se tornou símbolo de resistência em meio à crise do mercado legal de maconha nos Estados Unidos.

Vestidas como freiras católicas, as integrantes do grupo cultivam e processam maconha em fazendas autossustentáveis, onde vivem, trabalham e rezam juntas. No entanto, apesar da aparência monástica, elas não pertencem a nenhuma ordem religiosa.

A fundadora, Christine Meeusen, conhecida como Sister Kate, explica que o hábito é uma forma de expressão política e espiritual. “O principal mal-entendido sobre nós é achar que rezamos para a planta. Cannabis não tem nada a ver com nossa espiritualidade”, afirma. “A planta nos permite ter um estilo de vida voltado ao nosso ativismo e à nossa espiritualidade. É assim também com sálvia branca, cúrcuma, gengibre e outras plantas que colocamos nos produtos.”

Atualmente, as Sisters of the Valley operam duas fazendas, uma no condado de Merced, na Califórnia, e outra em fase inicial em Puebla, no México. Os produtos, fabricados de acordo com os ciclos da lua, incluem pomadas, cápsulas, óleos e extratos com propriedades terapêuticas. O carro-chefe é a pomada de canabidiol (CBD), substância não intoxicante da maconha usada para aliviar dores, inflamações e ansiedade.

Nos últimos anos, o coletivo expandiu sua atuação por meio de parcerias internacionais. A mais recente foi firmada com a ONG brasileira Pangeia, formada por pessoas pretas, indígenas e periféricas, que distribuirá pomadas e óleos medicinais produzidos pelas freiras. 

Apesar da organização enxuta, composta por 12 freiras, três irmãos e cinco noviças, o grupo mantém uma estrutura sólida e disciplinada. Os homens são bem-vindos, mas não podem superar o número de mulheres nem deter a propriedade das terras. As noviças passam por um processo de imersão espiritual antes de serem aceitas oficialmente. 

A inspiração para o visual inconfundível surgiu em 2011, durante um episódio curioso. Na época, o governo Obama enfrentava críticas após o Congresso classificar o molho de pizza como “vegetal” para reduzir custos na merenda escolar. Indignada, Sister Kate decidiu participar dos protestos do movimento Occupy, em Merced, vestida como freira, um gesto irônico que se transformou em símbolo de protesto.

“Bem, se pizza é vegetal, então eu sou uma freira”, brincou com os sobrinhos antes de ir às ruas. Desde então, o hábito se tornou parte da identidade do grupo.

Mais do que um adereço político, as vestes representam respeito à natureza e às mulheres que as precederam. “Na verdade, vestimo-nos como as mulheres que as freiras católicas copiaram, e essas seriam as nossas mães beguinas, que cultivavam e possuíam as suas próprias terras e negócios e foram as primeiras enfermeiras organizadas a servir os castelos da Europa”, explica Sister Kate.

No site oficial do grupo, elas reforçam que o uniforme é também uma forma de homenagem: “Usamos o uniforme como insígnia, para anunciar a nossa presença, o nosso enclave, onde quer que vamos. Nós os usamos como uma meditação para entrar em contato com nossos ancestrais sagrados, de quem desejamos que se orgulhem de nós.”

Entre as poucas regras da irmandade estão três princípios centrais: viver conforme o calendário lunar, praticar a compaixão e acreditar no “místico e mágico do outro lado”. A produção de novos lotes acontece a cada lua nova, na cozinha principal, a “abadia”, onde as irmãs preparam pomadas e óleos seguindo rituais específicos.

O processo é artesanal e simbólico. “Organizar a vida pelos ciclos da Lua e fazer nossos parceiros comerciais entrar nessa agenda é um lembrete dos presentes do Universo. Dar atenção aos ciclos da Lua é dar atenção à mãe natureza e às mulheres”, diz Sister Kate. Após o preparo, os produtos passam por testes laboratoriais e são abençoados com uma oração criada por elas.

Durante a lua cheia, o grupo realiza cerimônias ao ar livre em torno de uma fogueira. “Convidamos pessoas de vários lugares e fazemos um banquete. Sempre tem discursos ativistas, cantorias e astrologia às vezes”, conta Sister Alice, que, ao lado de Sister Kate, vive o celibato por escolha pessoal, embora isso não seja exigido das integrantes.

A história da comunidade foi contada no documentário Breaking Habits, que ganhou destaque em festivais de cinema nos Estados Unidos. Sister Kate, contudo, avalia o resultado com reservas. “Fico feliz com o sucesso do filme nos festivais. Pessoalmente não gostei, me fez parecer muito gângster. Parece um ‘Pulp Fiction’ de freiras chapadas”, brinca.

Entre as integrantes, há histórias de superação e reencontro espiritual. Sister Sierra, de 57 anos, por exemplo, foi freira católica por mais de uma década, mas deixou a ordem franciscana após sofrer abusos. A cannabis entrou em sua vida quando ela decidiu abandonar os medicamentos para depressão e ansiedade. “Foi uma progressão normal, sempre me interessei por remédios naturais”, diz, enquanto atende clientes pelo computador.

Mesmo cercadas de críticas e polêmicas, as Sisters of the Valley seguem firmes em sua missão de unir espiritualidade, ciência e empatia. Para elas, a cannabis não é um dogma, mas um meio de sustento e conexão com o divino.

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