Um trabalho ininterrupto, financiado do próprio bolso, marcado pela dor de ver o sofrimento e pela alegria de cada salvação. Esta é a realidade dos protetores de animais em Goiânia, heróis anônimos que lutam contra um abandono que beira os 30 milhões de cães e gatos no Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Eles são a única rede de segurança para seres invisíveis para o poder público, enfrentando superlotação, dívidas intermináveis e a angústia de uma demanda que não cessa. O Jornal Opção mergulhou na rotina de três mulheres que personificam esta causa: Maria Izabel, do Lar Amicão; Christiane, do Projeto Ronronar; e Carla, da ONG Focinho Caridoso. Suas vozes revelam um universo de dedicação extrema, mas também de falhas estruturais, desunião e, em alguns casos, desvio de propósito dentro da própria proteção animal.

A herdeira de uma obra: Maria Izabel e o Lar Amicão

Aos 72 anos, com dores no joelho e diabetes, Maria Izabel da Silva Lima é a força motriz por trás do Lar Amicão, um departamento do Núcleo Feminino Irmã Scheilla. A história começa em 1966, com sua mãe. “Minha mãe que fundou, era uma creche. Aí ela morreu e ficou para as filhas cuidarem”.

O núcleo, que chegou a abrigar 125 crianças, deu origem ao abrigo animal de forma quase acidental. “A minha filha e minha irmã, que eu falo que tem síndrome de São Francisco de Assis, elas começaram a juntar cachorro de rua, e esse aqui era um lote da creche”. Com a creche transferida para a prefeitura em 2023, o foco virou os animais. “A gente passou a cuidar mais dos animais que não tem. O problema é que o governo, tanto municipal, como estadual, filantrópico, eles não ligam para animal. Por exemplo, aqui, em Goiânia, não tem um abrigo público”.

Maria Izabel da Silva Lima | Foto: Jornal Opção/ Fábio Costa

O abrigo, localizado no Setor Pedro Ludovico, e uma chácara de apoio no Recreio dos Bandeirantes, abriga 92 cães e 20 gatos. Neles, cada animal tem nome, história e cuidados que beiram o maternal. A estrutura é limpa e organizada, com animais separados por necessidades – os idosos, os doentes, os que não se dão bem com os outros.

“Eles são tratados aqui como gente, você já viu, né? Então, é tudo separadinho”. Izabel se refere às baias como “apartamentos”. A cadela Cristal, por exemplo, “não sai do apartamento dela… ela morre de medo.” Izabel suspeita de maus-tratos no passado. “Não tem psicólogo nem psicanalista para cachorro, né?”, brinca. 

Cada animal recebe um nome com carinho. “Olha lá o Obama, aquele lá é o Obama, tá velhinho”. Ela já batizou uma ninhada com nomes de presidentes e artistas. “Já teve um Trump… o Biden já foi doado.” Há casos que exigem cuidados especiais complexos, como um cão que passou por quimioterapia e outro diabético que precisa de insulina diária.

O custo para manter este microcosmo de ordem é astronômico: R$ 25 mil mensais. A ração consome 250 kg por semana (cerca de R$ 4,2 mil/mês), a água e luz somam R$ 1 mil, a limpeza R$ 800 e os gastos veterinários giram em torno de R$ 2,5 mil. A maior despesa, no entanto, são os oito funcionários registrados, que custam R$ 12,5 mil em salários, mais R$ 4 mil em encargos.

“Sai do meu bolso, da minha irmã, e de algumas doações”. Para fechar as contas, ela recorre a um bazar, aluga salas do núcleo e vive “pedindo emenda parlamentar” na Assembleia Legislativa, onde também trabalha. “Eu sou pedidora, porque os deputados me veem assim, já vem aquela pedindo, pedindo, pedindo.”

Bazar do Lar Amicão | Foto: Jornal Opção/ Fábio Costa

A ajuda pública, porém, é mínima. “A única coisa que eu consigo da Prefeitura é a vacina da raiva”. Programas sociais para receber ração ela recusa por princípio. “Para eu fazer coisa errada? Olha pra mim, por Deus. Olha pra mim, eu sou brasileira, mas não sou corrupta”.

A UPAVet, o hospital veterinário municipal, é, na sua avaliação, ineficaz. “Aquele hospital veterinário municipal que tem lá, não serve para nada, porque você não tem jeito de chegar lá, tem que fazer aquela burocracia, e eles não atendem”. Ela critica programas pontuais, como a castração móvel, por não virem acompanhados de uma rede de suporte.

“Não adianta só castrar. O cachorro é igual gente. Você castra, tem que cuidar. É uma operação. Você tem que fazer curativo, você tem que dar antibiótico, anti-inflamatório. Você tem que ter um lugar pra ele repousar. Como é que castra e joga na rua?”.

Sua crítica ao poder público é ferrenha e articulada. “Precisa atender os animais. A Amma tem que ter um abrigo público, tem que ter clínica pública em cada região”. Ela cita a necessidade da criação de um fundo municipal de proteção animal, gerido por um conselho, que pudesse firmar convênios com ONGs sérias. “O conselho pode muito bem fazer convênio com as entidades, igual a prefeitura faz com o negócio de criança… faz convênio, paga por mês por animal para ela tratar e pronto”.

Maria Izabel da Silva Lima | Foto: Jornal Opção/ Fábio Costa

Ela também defende uma “carrocinha do bem” para recolher animais, implantação de chip e campanhas de conscientização.

O abandono na porta do abrigo é constante. “Amarram na porta, perto da lixeira. Tem um cachorrinho aqui, eles jogaram por cima do muro, quase quebrou a perna”. E para quem pretende adotar, ela explica que é um processo sério, afinal, estão lidando com vidas e com a esperança. “Quando eles vão ser adotados, fazemos uma entrevista, investigamos a pessoa, fazemos a fotografia até da casa da pessoa. Onde vai ficar? Se tem muro… O povo fica assim: “Mas essa mulher é chata’. Eu falo, não! Não é isso, não. É porque é filho da gente”. 

Ela defende uma mudança cultural, lastreada na empatia. “Faça como Jesus falou: ‘Faça para o outro o que gostaria que fizessem para você’. É assim. Não é só pra gente. Pra animal também… Estimular as pessoas que os animais também merecem estar nesse planeta Terra.”

Desde 2013, mais de 250 animais encontraram lares. As pastas com as fichas de cada um se acumulam em sua sala. Apesar do sucesso, a pressão dos vizinhos e o cansaço da idade a fazem pensar no futuro. “Eu quero sair daqui… Eu tô com 72 anos. Eu já não tenho mais… Eu não vou aguentar. Daqui 10 anos, com 82, você acha que eu vou ter esse vigor? E não tem ninguém”. Perguntar a possíveis sucessores é inútil. “Eu pergunto… ‘não, eu não dou conta, não dou conta, não quero, não quero, e assim vai’”.

Vegetariana desde sempre, ela atribui sua missão a um temperamento que não suporta a inércia. “Eu, como sou uma pessoa de escorpião, que não aguento ver e não fazer, fui fazendo”. E à fé. “Eu acredito muito em Jesus… Eu converso com Jesus, com Nossa Senhora, com São Francisco, desse jeito. É o dia inteiro… Porque não tem para quem apelar”.

A casa invadida pela compaixão: Christiane e o Projeto Ronronar

Christiane Marques Martins de Freitas, de 55 anos, não planejou ser protetora. “Não foi uma coisa pensada, nem planejada. Eu falo muito que esse tipo de coisa a gente tem o dom e meio que uma missão”. Tudo começou em 2010, quando se mudou para uma casa com mais espaço no Jardim América, em Goiânia. “Aqui nesse bairro tinha muito gato abandonado, assim, na rua… Eu cuidava lá na porta e aí isso foi gerando.”

Aos poucos, sua casa foi sendo “invadida totalmente” pelos animais. Hoje, abriga 90 gatos e 23 cães, sem contar os filhotes aguardando adoção. “Eu sou sozinha, eu não tenho parceiros, então sou só eu no meu projeto”.

Christiane Marques Martins de Freitas | Foto: Jornal Opção/ Rodrigo Santos

A solidão na gestão é um fardo. “Eu tenho muita dificuldade para fazer tudo, a gente não dá conta de cuidar, de assumir, de correr atrás de dinheiro para comprar ração, essas coisas. Acaba que você fica sem tempo para divulgar os animais e doar. E isso faz a gente acumular”. A estrutura da própria casa se tornou o abrigo, com todos os desafios logísticos e sanitários que isso implica.

A realidade em um abrigo doméstico é brutal. Christiane lida diariamente com uma virose felina incurável que se alastrou por seu grupo. “Todos os dias eu tenho pelo menos um ou dois animais bem debilitados, que eu tenho que dar soro, que eu tenho que levar no veterinário. E os custos da gente são muito altos por causa disso e, na maioria das vezes, a gente não consegue, eles morrem”.

Ela descreve o abrigo não como um paraíso, mas como um confinamento necessário. “Abrigo não é o ideal para ninguém, nem para os animais e nem para os humanos que cuidam.”

O abandono na sua porta é uma cena repetida. “As pessoas colocam o animal aqui na porta, tem vídeo disso… Elas vêm, põem os animais, tocam a campainha, e saem correndo”. 

Christiane também destacou o preconceito que dificulta a adoção. “Os animais pretos sofrem muito preconceito… É muito difícil doar tanto cachorro quanto gato preto.” Histórias como a dos filhotes Joaquim e seus irmãos são rotineiras. Abandonados em uma caixa na porta de uma conhecida, ela os resgatou e os criou dentro de seu próprio box, por falta de espaço. “A pessoa que realmente ama os animais e tem compaixão, ela dá um jeito.”

Gato Joaquim e irmã | Foto: Jornal Opção/ Rodrigo Santos

A sociedade, para ela, transfere a responsabilidade para os protetores sem entender a complexidade. “As pessoas acham que a gente dá conta de tudo e passa a responsabilidade para a gente sem se preocupar com toda dificuldade que a gente enfrenta”.

Foi em meio a uma crise de saúde animal e financeira que Christiane encontrou a Focinho Caridoso. “Ela estava passando por uma dificuldade enorme”, lembra Carla Cristiane Ferreira Moreira Cavadas, diretora da Focinho Caridoso. “Chegou para nós… falou assim, ‘eu vou te mandar uma relação de medicamentos que eu preciso comprar, vai dar uns 6 mil reais’”. O auxílio da ONG foi um divisor de águas, fornecendo medicamentos e um suporte que ela não tinha.

A fiscal e estrategista: Carla e a Focinho Caridoso

Carla Cristiane traz uma abordagem diferente para a proteção animal: a da gestão, da fiscalização e da cobrança ao poder público. A ONG, registrada como Associação de Redução da Dor Humana e Animal, nasceu de um projeto de extensão da UFG durante a pandemia. “Chegou o Covid e a gente ainda não tinha um projeto edificado, estava no papel”, lembra.

Uma estudante de veterinária, hoje formada, alertou Carla sobre os protetores passando fome. “Tem muitos protetores que estão passando fome, não tem comida para comer. Os animais estão sem ração.” 

Movendo sua rede de contatos, Carla conseguiu uma doação de R$ 3,6 mil e cestas básicas. A experiência foi um choque. “Fui para o JK1, JK2, JK3 e JK4, que são assentamentos… Animais comendo arroz, protetor ficando sem comer para o animal comer arroz puro.”

Carla Cristiane Ferreira Moreira Cavadas | Foto: Jornal Opção/ Rodrigo Santos

Ela decidiu não ter abrigo próprio para não se limitar a um só local. “Senão, a gente não teria a oportunidade de conhecer verdadeiramente a fundo o que é a proteção animal no estado de Goiás”. Essa decisão estratégica a levou a visitar e cadastrar 87 protetores e abrigos em Goiânia e região metropolitana. O cadastro é rigoroso. “A Focinho Caridoso só faz o cadastro quando eu realmente vou lá visitar, conhecer o protetor, conhecer a história do protetor… porque às vezes tem abrigo que a gente nem faz o cadastro porque aquele protetor precisa ser cuidado, ele é acumulador.”

A Focinho Caridoso investe em eventos de adoção responsável em shoppings como Bougainville e Passeio das Águas e parcerias com o setor privado, como a venda de camisetas.  “Cada vez que eu piso num abrigo… eu penso que a única forma de eu conseguir salvar alguns animais é por eventos de adoções responsáveis.” A ONG também firmou parcerias com o setor privado, como a com +Pet Planos, onde cada adoção gera uma bonificação para a instituição.

Carla e Christiane | Foto: Jornal Opção/ Rodrigo Santos

A Focinho Caridoso sobrevive de doações espontâneas e o valor simbólico de R$ 50 nas adoções. A demanda, no entanto, é esmagadora. “Nós estamos com quatro animais em lar temporário… Dois husky siberiano foram resgatados por uma protetora cadastrada no Focinho Caridoso … uma que estava… com cada ferida no corpo, o pescoço quase caindo.” A ONG está auxiliando a protetora com as demandas após o resgate, no caso dos huskys, Carla desembolsou R$ 680 do próprio recurso. “A demanda é muito grande, a demanda não para, é surreal.”

Tanto Carla quanto Christiane veem a falta de políticas públicas consistentes como o maior entrave. Carla critica a lei municipal de Goiânia que institui o “Banco de Ração e Utensílios”. Ela relata que, perto das eleições, a antiga gestão fez uma licitação para compra de ração, mas a distribuição foi irrisória e mal planejada. “Se você tem 30 animais, você vai receber dez quilos de ração. Se você tem 60 animais, você vai receber… 15 quilos.” Na lógica, seria o dobro.

Sua relação com o poder público é de cobrança. Ela reconhece os esforços recentes da presidente da Amma, Zilma Peixoto, em regularizar a UPAVet, mas cobra projetos estruturais. “Os políticos daqui precisam entender… não interessa se eu gosto ou não gosto de cachorro… a pauta da proteção animal é um movimento mundial.”

Carla Cristiane Ferreira Moreira Cavadas | Foto: Jornal Opção/ Rodrigo Santos

Ela defende a criação de um “bolsa protetor” e a isenção de contas de água e luz para abrigos sérios. “O meu protetor tem 300 animais e paga o mesmo valor, com a mesma alíquota de água, você acha isso justo?”.

Sobre a fiscalização, Carla defende uma abordagem multidisciplinar. “Precisa ter capital humano… tem que ter uma assistente social obrigatória, um psiquiatra, psicólogo obrigatório e você precisa estar com um médico veterinário, não é qualquer um, veterinário do coletivo”. O objetivo é diagnosticar e ajudar, não apenas punir. “É acumulador? O psiquiatra já está auxiliando.”

A delegacia de maus-tratos, que ajudou a fundar, sofre com a falta de destino para os animais resgatados. “O maior problema é que a denúncia chega… o policial tem que ir… mas para onde vai esse animal?”. 

Os desafios estruturais e a luz no fim do túnel

As histórias de Maria Izabel, Christiane e Carla se entrelaçam em um painel de desafios comuns: a falta de apoio estatal, o abandono criminoso, os custos proibitivos e a saúde física e mental dos protetores.

A questão financeira é um pesadelo recorrente. Maria Izabel desembolsa R$ 25 mil mensais. Christiane depende de renda familiar e doações esparsas. A Focinho Caridoso se sustenta com parcerias e vendas, com Carla frequentemente usando recursos próprios. “Eu coloco muito dinheiro meu, particular, na instituição”.

O abandono é uma epidemia. “Telefonam gente para mim, 24 horas por dia”, diz Maria Izabel. “As pessoas aprendem que você gosta, você cuida. Muita gente abandona um animal aqui na porta”, confirma Christiane.

Lar Amicão | Foto: Jornal Opção/ Fábio Costa

Apesar das sombras, há lampejos de esperança. A atuação da Focinho Caridoso em eventos de adoção já colocou dezenas de animais, inclusive idosos e com problemas de saúde, em lares amorosos. O trabalho de formiguinha de Maria Izabel já salvou mais de 250 vidas. A resiliência de Christiane mantém 113 animais seguros.

A solução, concordam todas, passa por uma política pública séria e estruturada: abrigos públicos, clínicas regionais, campanhas massivas de castração e posse responsável, e um olhar do Estado para o serviço que esses protetores prestam à sociedade.

Enquanto isso, elas seguem na linha de frente. Maria Izabel, aos 72 anos, administrando, brigando e rezando. Christiane, transformando sua casa em um santuário improvisado. Carla, fiscalizando, denunciando e construindo pontes. Suas vidas testemunham que, em um mundo de indiferença, a compaixão ainda encontra abrigo. 

Para ajudar:

  • Lar Amicão: Doações via PIX (CNPJ: 01.239.201/0001-09). Visitas mediante agendamento. Redes sociais: “Lar Amicão” no Facebook e Instagram.
  • Projeto Ronronar (Christiane): A protetora independente recebe doações de ração, medicamentos e material de limpeza. Contato pode ser feito através da intermediação da ONG Focinho Caridoso.
  • ONG Focinho Caridoso: Doações a partir de R$ 10 via PIX (CNPJ: 40.061.254/0001-34). Parceira em eventos de adoção. Redes sociais: “Focinho Caridoso”.

Leia também:

Operação Césio 171 mira advogados, médico e engenheiro suspeitos de fraude de R$ 79 milhões com falsas vítimas do acidente radiológico

Equipe médica que deu alta a menino que morreu de apendicite é afastada, em Águas Lindas de Goiás