A quadra é um universo de sons, um estouro seco da bola no piso, o ritmo ofegante da respiração, o grito tático de um companheiro. Para Lucas de Souza Diniz, de 14 anos, esse universo sonoro é uma escolha. Quando o aparelho auditivo que se conecta ao seu implante coclear está no lugar, ele absorve toda essa sinfonia do handebol. Mas, ao cruzar a linha que separa o banco do jogo, ele faz um movimento ritualístico: retira o dispositivo. O som dá lugar ao silêncio.

E no vácuo deixado pelo ruído, nasce uma percepção mais aguçada do movimento, uma linguagem diferente, feita de olhares, gestos e uma leitura de jogo que parece transcender o audível. Neste silêncio escolhido, Lucas não encontra uma limitação, mas sim sua maior força: a porta de entrada para a Seleção Brasileira de Handebol de Surdos.

Nascido em 1º de janeiro de 2011, junto com seus irmãos trigêmeos, Miguel e Pedro, Lucas chegou ao mundo com apenas seis meses de gestação. A luta começou na UTI neonatal, onde passou 60 dias. Com apenas dez dias de vida, uma infecção grave exigiu um antibiótico potente, cujo efeito colateral era a possibilidade de perda auditiva. A possibilidade tornou-se realidade. Lucas teve uma surdez profunda. No entanto, a família, liderada pela determinação da mãe, Maria Cristina Diniz, transformou o diagnóstico em um ponto de partida.

“Foi um susto primeiro, né?”, recorda Maria Cristina ao Jornal Opção, com a serenidade de quem já percorreu um longo caminho. “Mas nós fizemos o protocolo, na época eu nem sabia o que era implante coclear”. Aos dois anos, Lucas já estava com ambos os lados implantados. A reabilitação foi intensa – equoterapia, natação, terapia auditiva. “Como o Lucas é muito, assim, determinado, ele não desiste, ele corre atrás… ele tinha dois personais em casa, né, os dois irmãos dele”.

Aos cinco anos, sua fala já estava no padrão normal para a idade. O esporte, sempre presente, foi o combustível dessa força. Capoeira, tênis e futebol moldaram sua coordenação motora e sua vontade férrea de competir. “Ele sempre gostou muito, está na veia, ele acorda no sábado e no domingo, com a bola na mão para saber o que vai jogar”, relata a mãe.

O handebol, porém, entrou em cena há apenas três anos, quase por acaso, mas com a força de uma revelação. Tudo mudou com a chegada do professor Renato Isaac ao Colégio Marista de Goiânia. “Sabe aquele professor, assim, que já chega chegando?”, pergunta Maria Cristina, retórica. “Ele fez uma revolução, ele montou equipe, ele começou a participar de campeonato e com isso, ele fez todos os alunos ali ficarem interessados pelo esporte”.

Lucas, então com 11 anos, foi apresentado ao esporte por um amigo e fez uma aula experimental. O clique foi imediato. O handebol deixou de ser uma atividade extracurricular e se tornou uma paixão que consumiu a casa inteira. Os trigêmeos começaram a acompanhar jogos da seleção brasileira e de ligas europeias. “E aí o Lucas falava, ‘mamãe quero ser jogador de handball’”, lembra a mãe.

A evolução foi meteórica. Pelo time do Marista, Lucas e seus irmãos conquistaram títulos municipais, regionais e, em 2024, o estadual, que os levou ao Campeonato Nacional em Recife. A disciplina falou mais alto. Porém, o salto qualitativo aconteceu durante o H-10 Hand Camp, um acampamento de handebol em São Paulo. Enquanto Lucas se dedicava aos treinos, chamou a atenção de um observador atento: Washington, técnico da Seleção Brasileira de Handebol de Surdos. “Ele viu o Lucas jogando. E aí ele já falou, ‘peraí né, eu sou técnico da seleção brasileira de surdos e esse menino é surdo, vamos ver aqui como ele está indo’”, conta Maria Cristina.

O convite não demorou. Há poucas semanas, Washington chamou a família e propôs que Lucas fosse a São Paulo para um treino experimental. O adolescente, então, enfrentou seu primeiro grande desafio em uma quadra de adultos. “No primeiro dia de treino com a Seleção ele chegou muito tímido, muito nervoso”, relata a mãe. No entanto, a orientação do técnico foi um bálsamo: “Lucas, eu conheço seu handball, eu sei o que você joga, então entra na quadra e joga, faz o que você sabe fazer”. A confiança fez toda a diferença.

No segundo treino, o desempenho melhorou. E, ao final dele, veio a confirmação: Lucas estava convocado. “O terceiro treino já foi totalmente diferente… o pessoal aceitou ele muito bem, ajudaram, foram muito pacientes e elogiaram ele muito, a qualidade técnica dele”.

Seleção Brasileira de Handebol de Surdos 

Agora, a vida do jovem goiano gira em torno de uma nova e exigente rotina. Para competir pela seleção de surdos, ele precisou se federar por Brasília, já que Goiânia não possui uma federação específica. Os treinos intensivos da seleção nacional acontecem em São Paulo a cada 15 dias. Paralelamente, uma preparação física rigorosa foi iniciada, com acompanhamento de personal trainer e nutricionista para que ganhe massa muscular e acompanhe o ritmo adulto.

Lucas de Souza Diniz no treino com a Seleção Brasileira de Handebol de Surdos | Foto: Arquivo pessoal

“O técnico entende que o Lucas é o futuro da seleção”, explica Maria Cristina. “Hoje ele é o neném da seleção, mas eu acredito que daqui uns 4, 5 anos ele já vai estar, já vai ter 18 anos, então já vai ter corpo para realmente estar 100%”.

A adaptação vai além do físico e dentro de quadra, a comunicação é outro mundo. Sem o implante, Lucas depende da leitura labial e, agora, está aprendendo Libras para se integrar completamente ao grupo. “Ficar sem escutar não é uma coisa que incomoda muito, pelo contrário, ele mesmo fala que é um sossego às vezes ficar sem escutar”, conta a mãe.

No quadro familiar, todos já se preparam para o revezamento de levar o futuro da seleção para São Paulo ou Brasília: ora a mãe, ora o pai, ora o irmão mais velho. “Vai ser um deslocamento, claro, para a família toda”, pondera Maria Cristina, com a naturalidade de quem já superou obstáculos maiores. “Mas a gente vai fazer de tudo para ir adaptando aí, para ele nunca perder os treinos”.

Miguel, Lucas, pai, mãe, Samuel e Pedro | Foto: Arquivo pessoal

Para Maria Cristina ver os trigêmeos em quadra, quando estão juntos no time de handebol da escola, cada um em sua posição, é uma cena que emociona. “Eu brinco assim, que colega de time já tem aquele negócio de um conhecer o outro… mas assim, o negócio dos três é mais profundo”, reflete. “Parece que dá aquele passe perfeito e a bola vai para o gol”.

Seleção Infantil do Colégio Marista, sob o comando do técnico Renato Isaac | Foto: Arquivo pessoal

Em um vídeo publicado pelo Colégio Marista, Lucas, que está no 9º ano, fala da conquista com simplicidade. “Eu fiquei sem reação, eu fiquei sem acreditar, porque eu nunca imaginei que eu ia chegar num lugar desse”.

“O handebol me ensinou a respeitar a quadra, a respeitar os adversários, que ninguém é superior a ninguém. Todo jogo que eu tenho com o professor Renato Isaac ele sempre fala pra gente ser feliz em quadra, se dedicar ao máximo”, disse o adolescente. 

Seu objetivo é ambicioso: “Eu quero conquistar vários campeonatos internacionais e mundiais para o Brasil (…) No mínimo quero uma medalha olímpica de ouro… sangue no olho né?!”

Veja vídeo:

O clímax dessa nova fase aconteceu durante a viagem de ida para o primeiro treino. A pressa do convite fez a família ir de carro, e a estrada foi marcada por imprevistos. “Eu falei, ‘Nossa, Luca, tá dando tudo errado nessa viagem’”, recorda Maria Cristina. A resposta do filho, no entanto, sintetiza a gratidão e a determinação de um jovem que enxerga no handebol seu caminho. “Ele me respondeu ‘Então mamãe, não preocupa, porque o que tinha que dar certo deu. Eu estou na seleção’”.

Em novembro, a seleção brasileira de surdos viaja ao Japão para disputar as Olimpíadas da modalidade. Lucas não participará ainda, mas já é considerado “o futuro da equipe”. Até lá, seguirá conciliando escola, treinos em Goiânia, Brasília e São Paulo, e a vida de adolescente. 

E, como símbolo máximo desse sonho realizado, o uniforme da seleção brasileira agora tem um lugar de honra. “Ele está apaixonado no uniforme, ele dorme com ele embaixo do travesseiro”, confidencia a mãe, que resume a conquista: “Era um sonho dele”. Hoje, dentro das quadras, seu jogo já fala mais alto do que qualquer palavra.

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