Comunidades denunciam falta d’água e impactos ambientais de data center do TikTok no Ceará
16 outubro 2025 às 13h04

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“Desde que eu nasci aqui, nós sofremos por água”, conta Jordana Nunes, moradora da comunidade rural do Feijão, em Caucaia (CE). A poucos quilômetros dali, no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp), a Casa dos Ventos e o TikTok pretendem instalar um data center — galpão com supercomputadores responsáveis por processar informações da internet — que deve consumir 30 mil litros de água por dia.
A situação reacende uma lógica antiga: o governo do Ceará garante o abastecimento para grandes empresas e indústrias, enquanto comunidades rurais e indígenas enfrentam anos de escassez e dependem de caminhões-pipa e cisternas. “Os pobres vão ficar sem água, a zona rural vai ficar sem água e eles vão consumir bastante. Maravilha, bom demais”, ironiza Jordana.
A denúncia foi revelada pelo Intercept Brasil, que obteve documentos internos mostrando que o projeto pode consumir, em sua fase inicial, a mesma energia elétrica usada por 2,2 milhões de brasileiros — o equivalente à sétima cidade mais consumidora do país.
Mobilização contra o projeto
Indígenas do povo Anacé, junto a moradores rurais e organizações civis, têm se mobilizado para questionar por que a água chega com facilidade às empresas instaladas no complexo, mas não chega às comunidades locais.
A mobilização já incluiu representações ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público do Ceará (MP-CE), ocupação da sede da Superintendência de Meio Ambiente do Ceará (Semace), cartas a autoridades e até um outdoor pedindo a suspensão do licenciamento do projeto do TikTok. As comunidades também reivindicam a criação de regras nacionais para data centers, hoje inexistentes no país.
“Dezenas de indústrias foram licenciadas como se fossem a única naquele território, de maneira injusta, invisibilizando as populações do campo e indígenas”, afirma Jeovah Meireles, professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Impactos acumulados e insegurança hídrica
Segundo especialistas ouvidos pelo Intercept, o problema vai além da falta d’água: não há estudos integrados sobre o impacto do consumo hídrico do Cipp como um todo. Cada empresa é avaliada isoladamente, o que impede uma análise realista da pressão sobre os recursos naturais.
O município de Caucaia, onde o empreendimento será instalado, entrou em situação de emergência por seca em 16 dos últimos 21 anos, segundo o Atlas Digital de Desastres do Brasil.
Apesar disso, o governo cearense segue usando a segurança hídrica como incentivo para atrair empreendimentos. Uma lei estadual de 2011 garante às empresas desconto de 50% na tarifa de água, enquanto moradores como Jordana esperam há mais de uma década pelo abastecimento prometido.
“Os relógios de água foram instalados, mas nunca chegou uma gota. Muitos já arrancaram da frente das casas”, relata Jordana.
Questionamentos e representações
O Intercept questionou a Cagece, responsável pelo abastecimento, que confirmou não atender a comunidade do Feijão por ela não constar no contrato de concessão. A prefeitura de Caucaia não respondeu aos pedidos de esclarecimento.
O projeto prevê perfuração de poços artesianos e afirma operar em circuito fechado, reutilizando a água. Mesmo assim, especialistas e lideranças indígenas alertam para o risco de redução do aquífero Dunas, já vulnerável, e para a ausência de consulta prévia ao povo Anacé, como prevê a Convenção 169 da OIT.
“Se é tão pouca água que eles vão usar, por que não colocam o data center longe do rio?”, questiona Roberto Anacé, cacique da Terra Tradicional Anacé.
Racismo ambiental e desigualdade
Para técnicos e lideranças locais, o caso expõe um quadro de racismo ambiental. “Enquanto comunidades precisam cavar cisternas para armazenar água da chuva, o Estado garante volumes gigantescos para a indústria”, denuncia Alexandre Carneiro, do Esplar, organização que instala cisternas no semiárido.
“Nós não estamos falando de seca, e sim de má gestão da água e violação de direitos”, afirma Andrea Camurça, do Instituto Terramar.
Governo e órgãos ambientais
O assessor do Ministério da Fazenda, Igor Marchesini, afirmou à Rádio Escafandro que o projeto pode ser “um dos data centers mais sustentáveis do mundo”. Já o diretor da Semace, Ulisses Costa, reconheceu que não houve consulta aos indígenas porque o território “não é demarcado”, mas prometeu que audiências ocorrerão antes do início das obras — posição contestada pela Funai, que defende o direito de consulta mesmo em áreas não homologadas.
Contexto de disputa
O Cipp concentra indústrias com altíssimo consumo de água, como termelétricas e siderúrgicas. Segundo dados obtidos pelo Intercept, somente de janeiro a agosto deste ano, as indústrias consumiram 12 milhões de m³ de água, gerando R$ 22,6 milhões em faturamento à Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh).
“Sempre foi uma disputa entre a água para a sociobiodiversidade e a água para o uso perdulário da indústria”, resume o professor Jeovah Meireles.

