Às margens da BR-153, no Jardim Guanabara, um hospital atípico funciona 24 horas por dia. Seus pacientes não falam a língua humana, mas suas histórias são marcadas por momentos de luta: chegam queimados, atropelados, órfãs ou vítimas do tráfico. Este é o Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) de Goiânia, uma unidade do Ibama que, nos últimos cinco anos, recebeu uma média de 4.260 animais silvestres anualmente, provenientes de todos os cantos de Goiás.

A missão da unidade é devolver à natureza aquilo que a civilização insiste em tomar. Neste ano, até 19 de outubro, 4.066 seres vivos – de maritacas a gambás – já cruzaram seus portões. Apenas entre 65% e 70% deles terão a chance de voltar para casa. A história por trás desses números é uma narrativa complexa e uma corrida contra a extinção, narrada pela voz do superintendente do Ibama em Goiás, Nelson Gonçalves Galvão.

“O Cetas foi criado para que o Ibama tivesse um órgão que pudesse cuidar dos animais silvestres que, por acaso, estejam em algum tipo de risco”, explica Nelson Galvão ao Jornal Opção, delineando a razão de ser do centro. A unidade é muito mais que um depósito de fauna. É um complexo hospitalar completo. O animal resgatado, seja por Bombeiros (193), Polícia Ambiental ou Secretarias de Meio Ambiente, inicia sua jornada no ambulatório.

“Se necessitar de cirurgia, o Cetas faz porque nós temos também um centro cirúrgico”, complementa o superintendente, destacando a estrutura que inclui desde raio-X até um laboratório de genética, inaugurado no ano passado com um investimento de R$ 810 mil proveniente de conversão de multas ambientais.

Nelson Gonçalves Galvão | Foto: Redes sociais/ Reprodução

Cada espécie recebe um protocolo específico. “Cada animal tem a sua alimentação específica, já é prescrita pelo veterinário”, detalha Nelson. Os tratamentos são diversos e intensivos. “Às vezes o animal tem uma queimadura que acontece muito por causa dos incêndios florestais, ele vem com queimadura, aí é feito um tratamento na pele dele para recuperar, inclusive nós temos lá, o pessoal que já faz esse tratamento com pele de tilápia para recompor a pele do animal.”

O laboratório genético é um trunfo recente, permitindo desde o diagnóstico preciso de doenças até a identificação de paternidade para combater o tráfico. A rotina é a de um hospital de ponta, mas com a agravante de se tratar de pacientes que, em um mundo ideal, nunca deveriam precisar de seus serviços.

A triagem da liberdade

Após o tratamento, começa a fase mais delicada: a triagem para a soltura. “Essa triagem é para que o animal possa se adaptar e possa ser solto novamente na natureza”, afirma Nelson. É aqui que entram em cena as ASAS – Áreas de Soltura de Animais Silvestres. O Cetas não é um zoológico; seu objetivo final é sempre a reconexão com a vida livre.

“O Cetas cadastra várias ASAS… O proprietário rural que tem, por exemplo, uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), ele se cadastra”, explica. Essas propriedades, espalhadas por municípios como Aragoiânia, Hidrolândia, Orizona, Niquelândia, Alto Paraíso e Cavalcante, funcionam como portas de volta para o mundo selvagem.

O processo é meticuloso. “Todo animal passa a ter um período de adaptação, mas isso aí depende do quadro de saúde desse animal.” Em algumas ASAS, os animais passam por uma reabilitação adicional, aclimatando-se ao novo ambiente antes da soltura definitiva. 

“Nós damos alimentação para esse animal até ele arrumar o caminho dele”, relata Nelson, descrevendo um sistema de apoio transitório que visa garantir o sucesso da reintegração.

Os que ficam para trás

Nem todos, porém, conseguem completar a jornada. A dura realidade é que alguns traumas são irreversíveis. “Animais, por exemplo, mamíferos que sofrem uma amputação de perna ou um trauma grande que não tem condição mais de voltar à natureza, aí é dado outra destinação”, diz o superintendente.

Esses animais, que não podem mais usufruir de sua liberdade, são encaminhados para zoológicos ou criadores profissionais legalizados, onde terão, ao menos, uma vida digna e protegida.

A tristeza também é uma visitante frequente no Cetas. “Ocorrem também óbitos, e esses óbitos normalmente são em decorrência da condição do animal”, confirma Nelson.

“É igual ao ser humano também, a gente não tem a certeza da recuperação do animal.” A equipe, composta por veterinários, biólogos e tratadores, luta contra o tempo e as sequelas, mas a natureza, por vezes, impõe seu limite.

O paradoxo do resgate

Um dos maiores desafios enfrentados pela equipe do Cetas é um paradoxo: a boa intenção que pode ser fatal. Nelson ilustra com um caso recente. “Semana passada, nós recebemos duas onças-pardas. Elas nem tinham aberto os olhos ainda. Aí foram lá e resgataram elas porque elas estavam em uma área de plantação.”

Do ponto de vista humano, foi um ato heroico. Do ponto de vista da conservação, foi uma tragédia. “Do ponto de vista de sobrevivência do animal, ele diminuiu a chance de vida”, sentencia.

“Um animal tão novo, longe da mãe e do pai, ele tem muito mais dificuldade de se reabrir no ambiente… Se tivesse pego esse animal e tivesse dado uma chance para que a mãe pudesse resgatá-lo e levar para um lugar seguro, com certeza nós teríamos mais duas onçinhas com muito mais chance de sobreviver.”

O instinto de proteger um filhote vulnerável é natural, mas, no mundo selvagem, a intervenção deve ser a última opção. “O ser humano é que cada vez mais ocupa o território deles. E a gente tem que aprender a conviver cada vez mais com esses animais, porque cada vez mais eles não têm o território deles e eles estão indo para o nosso território. O território que a gente ocupou deles.”

Em contrapartida, Nelson cita um resgate necessário: “quatro quatis pequenininhos… A mãe foi atropelada e os quatis ficavam lá com a mãe mamando a mãe morta até serem resgatados”. Nesse cenário, a intervenção era a única esperança. A linha entre salvar e interferir é tênue e requer bom senso.

“Se for um animal muito novo, realmente tem que dar uma chance para que o animal seja resgatado pelos próprios pais.” A regra de ouro, segundo ele, é clara: o resgate só deve ocorrer se o animal estiver claramente em perigo iminente ou oferecendo risco às pessoas.

O perigo dos condomínios e do tráfico

Algo que está intrinsecamente ligado à atuação do Cetas é o avanço urbano e a agropecuária, que criam um fluxo constante de pacientes. “Os locais de mais incidência são os locais com maior atividade agropecuária, principalmente atividade agrícola”, analisa Nelson.

“São grandes extensões de áreas nas quais os animais tendem também a fazer os ninhos… e depois, quando vem a colheita, muitas vezes as máquinas atropelam esse animal.” Nas cidades, o problema se repete. “Cada vez mais a gente vê… muita arara, muito papagaio, muito periquito.”

Um fenômeno crescente em Goiânia e interior são os condomínios fechados. “A gente teve incidência de animais silvestres em condomínios fechados… tamanduá, seriema, tem macaco, várias espécies de macaco.” O superintendente defende que a Agência Municipal do Meio Ambiente (AMMA) exija dos empreendedores planos de manejo.

“Não pode a pessoa fazer uma atividade, cercar uma área, ficar cheia de animais e transferir o problema para o poder público.” A educação é a base que sustenta isso: “não alimentar animais silvestres, não deixar o animal ficar adentrando das casas”.

Paralelamente, o tráfico de fauna segue como uma chaga. “A Polícia Rodoviária Federal tem um trabalho muito bacana, sempre está fazendo apreensão, principalmente pássaros.” Nelson descreve cenas dramáticas: “Como o traficante quer levar muito animal em pouco espaço, os animais são transportados em condições muito ruins. E aí, quando a gente consegue pegar, alguns já estão mortos, alguns estão muito debilitados, alguns morrem.” 

Espécies como canário-da-terra, arara-canindé e papagaios são as mais cobiçadas. Em 2024, a arara-canindé foi a espécie mais recebida no Cetas; em 2025, até outubro, foram as maritacas.

Educação ambiental deve ser base de tudo

Consciente de que a solução a longo prazo não está no resgate, mas na prevenção, o Cetas investe em um projeto seminal: a formação de professores. “Nós temos um trabalho muito bonito, muito bacana, incipiente… a gente não tem abrangência e cobertura para dar uma educação ambiental diretamente para as pessoas. Mas a gente tem um projeto que a gente está desenvolvendo, que é um projeto para que a gente dê formação aos professores”, explica Nelson.

O projeto, focado no ensino fundamental, já formou turmas em 2024 e a última foi neste ano, em Hidrolândia. “Foi um trabalho muito bacana, que foi tipo uma gincana entre as escolas… o objetivo final era que cada turma de cada escola fizesse uma apresentação sobre o que é a educação ambiental e sobre a importância do animal conviver no meio ambiente dele.”

O ápice para os alunos e professores era uma visita a uma ASA. “Eles foram lá conhecer como é o processo… quando a gente pega os animais que foram cuidados no Cetas e leva para a soltura, e eles verem isso, os animais voltando para a natureza, é muito emocionante.”

Para expandir esse trabalho, o Ibama conseguiu uma emenda parlamentar de R$ 200 mil da deputada federal Adriana Accorsi. “Estamos comprando equipamento, materiais, laptops, telão digital, caixa de som, para poder ter uma estrutura melhor.”

Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) de Goiânia | Foto: Divulgação

No entanto, o superintendente é realista. “Infelizmente, a educação ambiental ainda não é uma prioridade para muitos… mal a gente dá conta de fazer duas, três turmas de professores por ano aqui.” A meta para 2026 é ampliar, mas esbarra na falta crônica de pessoal. “Os servidores que trabalham em educação ambiental… são abnegados.”

Os desafios nos bastidores e superações do Cetas

Quando questionado sobre a maior dificuldade atual, o superintendente do Ibama vai direto no ponto que vem pesando mais para a organização do Cetas: “O pessoal. O Cetas está desfalcado de pessoal e o pessoal está sobrecarregado de trabalho”.

A equipe, uma mistura de servidores concursados e tratadores terceirizados, opera com dedicação heroica, mas sob constante pressão. “Graças a Deus, o Cetas aqui tem uma equipe muito boa, pessoas que são muito abnegadas em fazer um trabalho muito bom com esses animais lá.”

Mas, apesar dos percalços, melhorias físicas estão em andamento. “Nós vamos reformar os viveiros… a gente melhorou as instalações administrativas, agora a gente fez um ambulatório novo… o centro cirúrgico também.” 

Em um esforço para ir além do resgate e contribuir com a ciência, o Cetas emprega tecnologia de ponta. “As coleiras com GPS, a gente faz o acompanhamento dos lobos, da onça”, comenta Nelson.

Esses dispositivos, que enviam cerca de cinco pontos de localização por dia via satélite, permitem que pesquisadores monitorem o deslocamento dos animais após a soltura em um sistema nacional. “É um sistema que é usado pelo cientista para estudar.” 

“A gente quer ser bem educativo no sentido de mostrar que o animal silvestre não é inimigo do ser humano”, reflete Nelson Galvão. Sua fala é um apelo à razão e à empatia. “Não basta você ver um animal silvestre e pedir o resgate dele. Por quê? Porque, na verdade, ele está na natureza dele.”

Cada animal que chega ao Cetas, seja às irmãs onças-pardas órfãs de Quirinópolis, os quatis de Porangatu ou as milhares de aves apreendidas, carrega uma história. E cada soltura bem-sucedida, um triunfo.

“É tentar proporcionar vida a esses animais que cada vez mais estão sendo oprimidos, digamos assim, pelo ser humano.”

Para a população:

  • Resgate: Em caso de animal silvestre ferido ou em risco real, acione o Corpo de Bombeiros (193), a Polícia Militar Ambiental ou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente. O Cetas não realiza resgates diretamente.
  • Entrega Voluntária: Se você possui um animal silvestre irregularmente, pode entregá-lo voluntariamente no Cetas.
  • Denúncias: Denúncias de maus-tratos, tráfico e crimes ambientais devem ser feitas à Ouvidoria do Ibama.
  • Interesse em ASAS: Proprietários rurais interessados em cadastrar suas áreas como ASAS devem procurar o Ibama. O cadastro é gratuito.

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