Argentinos dizem que bebida produzida em Trevelin, na Patagônia, é a mais ao sul do planeta. Programa do governo chileno, porém, rebate

Vinícius Mendes
Especial para o Jornal Opção

Para além das muitas discordâncias entre chilenos e argentinos nos últimos anos, que tiveram um auge durante a Guerra das Malvinas, em 1982, mas que também envolvem debates sobre limites fronteiriços e até problemas de xenofobia, outra discussão recente tem servido para expressar as diferenças entre os dois países: a produção do vinho mais ao sul (austral) do mundo.

Na Argentina, há ainda um intenso debate interno pela região localizada mais ao sul do planeta dentro do país, considerando que a briga com o Chile já foi superada. Alguns cultivadores argentinos dizem que são as áreas próximas ao rio Nant y Fall, onde fica o Valle Hermoso, próximo à cidade de Trevelin, a quase 2 mil quilômetros da capital Buenos Aires, que produzem os vinhos mais austrais.

Outros cultivadores indicam que é a cidade de Trelew, na mesma linha horizontal de Trevelin, mas do outro lado do território do país, próximo ao Oceano Atlântico, a responsável pela bebida mais sulista do mundo. Tanto numa como na outra, a produção de vinhos foi incrementada por um programa do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (Inta) do governo da Argentina, que financiou o cultivo das uvas na província de Chubut, na região patagônica.

O programa do Inta teve início há 14 anos com a tentativa de produzir vinhos de uva pinot noir. No entanto, tipos mais comuns da fruta, como a famosa cabernet sauvignon, também foram cultivadas nas cidades de Trevelin  e Trelew. “O objetivo é que o cultivo de videiras se complemente com a produção dos vinhos da região. Não recomendamos que se cultive para vender as uvas às lojas, mas para que os produtores se sintam à vontade para elaborar seus próprios vinhos”, disse a coordenadora do projeto, Belén Pugh, ao jornal argentino Mercurio.

Já para os chilenos, o vinho mais austral do mundo é o que é feito no Vale de Puelo, a 1.000 quilômetros de Santiago, perto de Puerto Montt. Ali, se produz cerca de 1.500 garrafas de pinot noir por ano. “O vale é protegido pelas montanhas, o que permite que a temperatura não seja tão fria e seja constante durante o ano. Isso evita que a neve ou as geadas caiam com tanta força sobre as plantas”, revela o diretor da vinícola Villaseñor, a principal da região. Nos últimos anos, a região passou a receber mais turistas com a chegada de voos da Latam aos aeroportos de Puerto Montt.

Em Puelo e em Cochamó, cidade vizinha, há até um roteiro turístico em torno da árvore que deu origem ao cultivo de uvas no local. Da mesma forma que na Argentina, porém, a intervenção estatal foi determinante para que as frutas fossem cultivadas em variedade e as bebidas fossem feitas a partir de um determinado grau de qualidade.

No caso chileno, a exportação de vinhos é uma das formas mais eficazes que o Estado encontrou para participar do mercado mundial de mercadorias: o país é o maior vendedor da bebida da América Latina e o quarto maior do mundo, atrás apenas de gigantes como França, Espanha e Itália. Nos últimos anos, as trocas com a China ajudaram a dar ainda mais vigor à produção das vinícolas chilenas: se estima que 40% do mercado chinês de consumo de vinho é preenchido com produtos enviados pelo Chile. Segundo dados do governo, em março de 2017, entraram no país US$ 324 milhões em divisas dos vinhos. Em 2015, o país arrecadou mais de US$ 1 bilhão no comércio da bebida.

Hoje, possivelmente é no Chile que se faz o vinho mais austral do globo terrestre. Não em Puelo, mas a mil quilômetros dali: há pouco tempo, o Instituto de Investigações Agropecuárias (Inia) do governo chileno levou mudas de uvas sauvignon blanc e pinot noir para a cidade de Chile Chico, na província de Aisén, a 2.000 quilômetros de Santiago e 600 de Trevelin, na Argentina. Com elas, foi possível produzir os primeiros litros de vinho da região e iniciar um projeto para desenvolver a produção na área. O plano agora é levar as uvas para regiões ainda mais austrais, como Bahía Jara e Levican. Até o momento, esse é o vinho feito mais ao sul do planeta possível.

A cidade mais austral

A discussão pelo vinho, porém, é mais intensa do que aquela que tenta estabelecer a cidade mais ao sul do mundo: há um consenso entre chilenos e argentinos que é Ushuaia que está mais ao sul do mundo.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas do Chile (INE), apesar de o assentamento mais austral do mundo ser chileno, o de Puerto Williams, no Cabo de Hornos, a 3.600 quilômetros de Santiago e a 900 da Ilha Rei George, na Antártida, é a Argentina que tem o município mais austral.

De acordo com as autoridades chilenas, só pode ser considerada “cidade” uma comunidade que reúna mais de 5 mil pessoas. Os parâmetros instituídos em 2005 ainda indicam que uma união entre 2 e 5 mil habitantes é considerada um “povoado” (pueblo, em espanhol). De acordo com o censo chileno, vivem em Puerto Williams pouco menos de 2 mil pessoas. O Estado argentino possui regras semelhantes.

Ushuaia, a 3.100 quilômetros de Buenos Aires e menos de 1.000 em relação à Antártida, ao contrário, é uma cidade movimentada e que, desde os anos 1990, possui mais de 50 mil habitantes. A distância entre ela e Puerto Williams é de 46 quilômetros.

“Os argentinos conseguiram algo que o Chile deveria imitar: uma preocupação por parte do Estado em converter Ushuaia em uma cidade, com sua funcionalidade definida e com aplicação de uma série de políticas públicas”, lamentou o professor de geografia da Universidad de Magallanes, do Chile, Goran Lusic, ao periódico também chileno Bio Bio.