Ricardo Camarinha, médico do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi considerado funcionário fantasma no escritório da ApexBrasil em Miami entre abril e dezembro de 2022, conforme um relatório interno da agência. A contratação, feita sob a gestão do general Mauro Lourena Cid, foi considerada “fraudulenta” pela comissão interna da ApexBrasil.

Camarinha foi imposto à equipe de Miami através de instrumentos de excepcionalidade, mas não desenvolvia atividades profissionais ligadas ao cargo de assessor, nem frequentava o escritório. A Polícia Federal (PF) já investiga a denúncia. Camarinha residia em Orlando, cerca de 380 quilômetros distante de Miami.

Criada em 2 de abril por resolução da Direx, a Comissão Extraordinária iniciou seus trabalhos a partir de informações que vieram à luz em reportagens da imprensa e dados de investigações da PF tornados públicos. Segundo nota da Apex, boa parte dessas informações referentes à movimentação de Lourena Cid foram confirmadas e detalhadas por documentos examinados e depoimentos tomados pela Comissão. Entre as principais conclusões, destacam-se:

  • Uso da estrutura do escritório (EA) da Apex Miami pelo general Mauro Lourena Cid para negociação de joias e presentes de Estado

O general, que segundo as investigações da PF atuou como suporte do filho, coronel Mauro Barbosa Cid, e do expresidente Jair Bolsonaro na negociação desses bens, utilizou a estrutura do EA para atividades não relacionadas à função de General Manager (GM). Isso ocorreu antes e depois de sua demissão do cargo, em 3 de janeiro de 2023. A partir de trecho de relatório da PF com imagens de mensagens de WhatsApp enviadas por Lourena Cid com identificação de data, foi possível concluir que, às 10:39 da manhã de 4 de janeiro de 2023, já demitido mas ainda nas dependências do escritório da Apex, ele usou o celular funcional para compartilhar fotos das joias e objetos de arte do acervo atribuído ao ex-presidente. Segundo depoimentos colhidos, nesse momento ele se encontrava no gabinete que ocupara como GM. O relatório da Comissão concluiu que ficou comprovada a presença de Mauro Cid no EA semanas após a sua demissão, tempo suficiente para agir conforme seus interesses e afastar qualquer evidência.

  • Lourena Cid recebeu em seu gabinete corretor que transportou joias de Bolsonaro

O exame da agenda do general mostra que, em 1 de agosto de 2022, uma segunda-feira, ele recebeu em seu gabinete o corretor de imóveis Cristiano Piquet, da Piquet Realty. Piquet confessou à Polícia Federal que, em janeiro de 2023, transportou uma mala de joias do ex-presidente Jair Bolsonaro de
Orlando para Miami, a fim de entregá-la ao general Cid. Na mala, segundo a investigação da PF, havia um kit composto por um barco e uma palmeira, supostamente folheados a ouro, que posteriormente seriam oferecidos para venda. A mala, sob os cuidados do coronel Mauro Barbosa Cid, havia chegado aos Estados unidos no avião presidencial no qual Bolsonaro seguiu para Orlando no dia 31 de dezembro de 2022.

  • Resistência explícita de Cid ao resultado eleitoral e visita ao acampamento golpista na companhia de servidores da ApexBrasil

Diversas das oitivas realizadas convergiram num ponto: então General Manager do escritório de Miami, o general Lourena Cid manifestava repetidamente aos funcionários sua convicção de que, mesmo depois de eleito, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tomaria posse e de que ele, Cid, continuaria em seu cargo à frente do EA. Na avaliação da Comissão, tal expectativa pode ser lida a partir da ruptura
institucional que, na ocasião, articulava-se em setores militares e que culminou na tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023. A reforçar essa constatação, está a visita de Cid ao acampamento golpista situado em frente ao QG do Exército, em Brasília, em 3 de dezembro de 2022, acompanhado de dois funcionários do escritório de Miami. Esses funcionários – um deles já demitido da ApexBrasil – são apontados como os servidores mais próximos do general no EA Miami.

  • Exame da atuação do general Mauro Cid na chefia do escritório de Miami denota afastamento das atividades de negócios

A análise da agenda de trabalho, dos depoimentos e documentos levou os integrantes da Comissão a apontar um “comportamento desviante” do general Mauro Cid em relação às atribuições inerentes à função de General Manager de um escritório da ApexBrasil no exterior. Além de apontar “baixo perfil” da agenda de Mauro Cid, as oitivas confirmam afastamento das atividades de negócios – missão precípua da representação da Agência em Miami.

  • Agravante: a condição de “anexo consular” do escritório da Apex em Miami na gestão de Lourena Cid

De forma inédita em relação aos demais escritórios da Apex no exterior, o EA Miami recebeu, após negociação do governo Bolsonaro com o Departamento de Estado dos EUA, a condição diplomática de “anexo consular”. Ela dá aos dirigentes do escritório benefícios e imunidades concedidas a diplomatas, como por exemplo maiores facilidades para obtenção de vistos.

  • Médico de Bolsonaro, Ricardo Camarinha, era funcionário fantasma

As apurações da Comissão confirmaram notícias publicadas na mídia sobre a contratação, pelo EA Miami, do médico de Jair Bolsonaro, que segundo relatos colhidos, foi imposto à equipe, contratado pela sede em Brasília e expatriado por meio de instrumentos de excepcionalidade (memorando, portaria e carta oferta) em abril de 2022.

  • Impacto da gestão Lourena Cid no EA Miami

As apurações apontam ainda que a negligência do general Lourena Cid em suas funções à frente do EA Miami, com a ausência de instrumentos de controle do trabalho da equipe, de reuniões de avaliação e de relatórios qualitativos, acabou por instaurar no local um padrão de desídia e disfuncionalidade. Foram identificados, entre outros fatos, a desobediência às Instruções Normativas da Agência sobre home office e teletrabalho, a falta de controle de frequência ou acesso ao escritório.

Caso das joias

A Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro por associação criminosa, lavagem de dinheiro e peculato no relatório final do inquérito sobre a venda ilegal de presentes luxuosos recebidos pelo governo brasileiro.

O documento, enviado ao ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, detalha a cronologia do esquema, incluindo o recebimento dos bens por Bolsonaro, seu deslocamento e venda nos Estados Unidos, e a operação para recuperar os objetos. A Procuradoria-Geral da República tem 15 dias para decidir se denunciará Bolsonaro e os demais envolvidos.

De acordo com o relatório, o crime “não se consumou pela atuação profissional e técnica dos servidores da Receita que não aceitaram as pressões e evidenciaram o desvio de finalidade nos atos praticados pelos investigados”.