O Dia de Finados, celebrado em 2 de novembro, costuma ser um momento de memória e homenagem aos que partiram. Mas em Goiás, a data também expõe uma ferida antiga: o abandono e a precarização dos cemitérios públicos, tema que o antropólogo e psicanalista Jorge Cordeiro, especialista em Antropologia Mortuária, vem estudando há mais de uma década. Em entrevista ao Jornal Opção, ele faz um diagnóstico, segundo ele, o modo como os goianos tratam seus mortos revela a forma como a sociedade e o Estado tratam os vivos.

“Os espaços de sepultamento estão acabando, principalmente pela falta de estrutura e pela negligência histórica do poder público”, afirma. Ele descreve uma cena comum: covas rasas, falta de muros, portões quebrados e cemitérios sem zeladores. “Hoje, enterrar um familiar é um ato de resistência. Falta dignidade tanto para quem é sepultado quanto para quem permanece vivo.”

Para ele, a privatização e o abandono refletem o mesmo fenômeno: a negação da memória e do pertencimento. “O cemitério não é apenas o lugar dos mortos, mas um espaço da cidade, da cultura e da história. Em outros países, como a Argentina e a França, os cemitérios são tratados como museus e pontos turísticos. Aqui, viraram depósitos de corpos e lixo”, lamenta.

Jorge Cordeiro | Foto: Arquivo Pessoal

Em Goiânia, o problema se agrava pela carência de servidores. O último concurso público para sepultadores foi realizado em 2008, e atualmente há apenas 76 profissionais para quatro cemitérios públicos que atendem mais de 1,5 milhão de pessoas. O resultado, explica o antropólogo, é o colapso da estrutura funerária e a perda da memória coletiva.

O Cemitério Santana, um dos mais antigos da capital, se tornou o exemplo mais simbólico dessa realidade. “Cerca de 80% das esculturas funerárias foram furtadas. Até o túmulo de Pedro Ludovico Teixeira, fundador da cidade, foi saqueado. Não há mais identificação, o que mostra o total abandono de um patrimônio histórico e afetivo”, relata Jorge.

Mas o pesquisador alerta que o problema não é apenas estético ou de gestão. Ele tem uma dimensão simbólica e política. “O cemitério é o espelho da cidade. Se há lixo e abandono ali, é porque há lixo e abandono nas ruas. Negar a morte é negar a cidadania”, afirma.

Ao discutir as tentativas de privatização dos cemitérios, ele se mostra crítico e lembra o caso de São Paulo, onde o modelo resultou em escândalos e abusos. “O Estado vende a dificuldade para justificar a privatização. No fim, o que se vê são taxas abusivas, serviços precarizados e exclusão dos mais pobres”, diz. Para ele, a morte virou um negócio e a privatização, “um agravo à desigualdade social”.

O antropólogo cita o Cemitério Parque, o maior de Goiânia, como exemplo da estratégia de abandono que antecede a concessão. “É o maior espaço cemiterial da cidade, com quase cinco alqueires. Ele foi sendo deteriorado aos poucos, até se tornar inviável para o poder público, e, assim, justificar a entrega à iniciativa privada”, observa.

Comparando com outros países, Jorge destaca que no Brasil a morte é um tabu, e isso se traduz em descaso. “Vivemos num necro-Estado, um Estado que naturaliza a morte dos pobres. Enquanto a elite ri da tragédia, há milhares de pessoas enterradas em covas rasas, sem nome, sem data, sem história”, critica. Ele lembra que, em Goiânia, há quadras inteiras com sepulturas infantis anônimas, o que simboliza “uma infância esquecida tanto nos cemitérios quanto nas ruas”.

A solução, segundo o pesquisador, passa pela valorização cultural e pela ação do Estado. “É o poder público quem deve ser o guardião da memória. O cuidado com os mortos é um reflexo do cuidado com a vida. Privatizar a morte é privatizar o direito à dignidade”, completou.

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