Adoecimento mental dos servidores da educação estadual atinge o maior nível desde 2015

04 julho 2024 às 12h51

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Dados da Secretaria de Estado da Administração (Sead), obtidos através da Secretaria de Estado da Educação (Seduc) a pedido do Jornal Opção, mostram que o adoecimento mental dos servidores da rede estadual de ensino está em seu maior nível desde 2015. Em 2023, foram 2.963 pedidos de afastamento concedidos por questões ligadas a transtornos mentais e comportamentais, e 1.405 servidores afastados, o que indica reincidência nas demandas de licença por questões de saúde mental.
O levantamento feito mostra que, em 2022, foram 2.545 licenças concedidas. No ano anterior, ainda no contexto de pandemia da Covid-19, foram 1.978 afastamentos por questões ligadas a transtornos mentais e comportamentais. Em 2020, durante o auge do isolamento social imposto pela emergência sanitária, foram 1.380 licenças dessa natureza. Em todos os casos, o número de licenças concedidas é mais que o dobro do que o de servidores afastados, indicando novamente, reincidência nas licenças.
Confira o gráfico completo abaixo com as informações até o ano de 2015:

Os números levantados também trabalham com termos absolutos, comparando o número total de servidores com o número de licenças concedidas. Em 2023, considerando os 45.362 servidores da rede estadual de educação, as 2.963 licenças concedidas aos 1.405 funcionários públicos representam 3.10% do total do corpo de colaboradores das escolas. Em 2022, esse número foi de 2,38%, em 2021, 2,19% e em 2020, 1,43% dos servidores da Educação do Estado se afastaram por motivos de saúde mental.
Acompanhe a série histórica até 2015 do percentual de servidores afastados por questões de saúde mental:

O Jornal Opção entrou em contato com representante da Seduc para entender melhor as medidas de combate ao adoecimento mental dos servidores, mas não obteve resposta até o momento de publicação desta matéria. O espaço segue aberto.
Quem vive na pele
Em entrevista ao Jornal Opção, uma professora da rede estadual de ensino, que preferiu permanecer anônima, compartilhou parte do cotidiano em seu trabalho. A servidora prevê uma carência na rede estadual nas próximas décadas devido às condições de trabalho impostas a esses profissionais. “Ninguém mais quer ser professor”, afirmou. As demandas de carga horária, as condições do local de trabalho, a realidade dos alunos e as políticas públicas voltadas à educação foram alguns pontos elencados pela professora que levam ao adoecimento.
“Ele [o Estado] tem que criar um mecanismo para que esse professor que ainda está bem emocionalmente fique dentro da profissão”, resumiu.
A servidora coloca ainda o descompasso entre o prestígio social dado à profissão e a remuneração real como pontos que contribuem para tornar a carreira menos atrativa. “A falta de investimento na carreira do docente também adoece demais”, explicou. Outro ponto destacado pela professora é a questão da autonomia dentro da sala de aula. “Hoje, o professor ele não dá aula para que o aluno aprenda um conhecimento, mas sim para que o aluno se torne treineiro e atinja metas”, disse, dando como exemplo o foco estabelecido para provas medidoras de desempenho do ensino, como é o caso do Enem.
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O acúmulo de funções é outro fator destacado pela servidora. Atuar como psicólogo para alunos que trazem problemas de casa para a escola, representar pais ausentes em reuniões escolares, papéis administrativos e até funções da organização cotidiana (como limpeza) são exemplos dados pela professora da rede estadual.
“Hoje em dia só fica numa escola quem é forte, porque nós [professores] só valemos quando produzimos”, disse. A servidora conta que existe uma resistência em aceitar pedidos de afastamento por parte da administração. “Se ele [professor] levar atestado, você [gestor] vai cortar o ponto dele, porque ele não pode tirar licença, porque se ele tirar licença, você vai tirar a gratificação dele”, exemplifica a prática que coíbe licença dos professores. “É o que acontece hoje na rede estadual de educação. Se você tirar um atestado para ir ao dentista levar seu filho, corta do seu salário”, resumiu.
A docente destaca que, por estar em atividade há quase trinta anos, ela já desenvolveu mecanismos para lidar com as dificuldades que encontra no cotidiano da profissão, mas alerta que a cobrança que existe sobre os novos professores não combina com a preparação que eles recebem para ocupar os cargos. “Tem uma colega que está em estágio probatório e esses dias se trancou no banheiro e chorou a manhã inteira com medo dos alunos”, exemplificou.
“O professor que está entrando hoje, ele não está sendo bem preparado para lidar com essas adversidades emocionalmente falando, e é dever do Estado preparar esse professor e não cobrar dele como vem cobrando”, resumiu. A professora elogia a atenção dada pela diretoria da escola em que trabalha, que atende e acompanha essas demandas com mais atenção, mas diz que “muitas vezes as queixas de professores que estão com ansiedade ou depressão não são vistas com bons olhos” pela gestão superior.
“Estamos todos doentes, professores doentes, professores cansados, e o pior é que não podemos estar doentes, porque tiram do nosso salário, não podemos ir ao médico, não podemos estar doentes”, resumiu o desabafo.
Na voz de especialistas
A reportagem ouviu dois psicólogos a fim de melhor entender o adoecimento mental nas escolas. Tanto o psicanalista Leandro Borges, quanto a especialista em psicologia educacional Isabel Assunção Silva, reforçam que o aumento da demanda por tratamentos psicológicos é um fenômeno mais geral, e a manifestação disso nas escolas é um lado dessa perspectiva maior. Os especialistas apontam que a pandemia de covid-19 e a quebra parcial do tabu que se tinha sobre tratamentos mentais contribuem para o aumento desse número.
Pensando especificamente no contexto da sala de aula, Isabel destaca um aumento nas demandas para professores. No cotidiano escolar, a especialista percebe casos recorrentes de burnout, síndrome do pânico, quadros de depressão e ansiedade nos professores. “O espaço de trabalho dessas pessoas, é um espaço de adoecimento”, explica.
Por sua vez, Leandro concorda que o espaço profissional, nesse contexto, precisa trabalhar para combater o aumento no adoecimento. Apenas as licenças não são suficientes, já que no retorno para o cotidiano profissional, caso não haja mudanças concretas, a tendência é a piora no quadro do profissional. “O Estado e as instituições precisam se responsabilizar por esse momento de adoecimento”, sintetizou.
Por fim, pensando em medidas mais concretas, para além de políticas públicas específicas (que se fazem urgentes), Isabel afirma que é fundamental reconhecer que “o processo de adoecimento não é uma questão individual”. Compartilhar essas dores e angústias com os colegas próximos, com a diretoria, e respectivas entidades governamentais, é passo fundamental para combater as taxas crescentes de afastamentos, retirando a culpa do indivíduo pelo próprio adoecimento.