O debate sobre trabalho, direitos e moral pública no Brasil raramente acontece no vácuo. Ele quase sempre vem embalado por um discurso religioso que atravessa o Legislativo e se reproduz nas redes sociais, geralmente sustentado por uma leitura literal da Bíblia e por uma estrutura social profundamente machista.

É nesse encontro entre poder cristão institucionalizado e patriarcado que muitas das decisões que moldam o país continuam sendo tomadas, quase sempre contra as mulheres, as minorias e a classe trabalhadora.

Para entender esse fenômeno, precisamos voltar à origem do próprio discurso que o sustenta. A Bíblia, apresentada por seus defensores como um livro sagrado, é, antes de tudo, um produto histórico. Foi escrita por homens de seu tempo e que estavam inseridos em sociedades patriarcais, marcadas por guerras, dominação e exclusão.

Esses autores projetaram nos textos sagrados suas visões de mundo, seus medos e suas hierarquias. Não por acaso, a Bíblia reflete uma estrutura em que a mulher aparece reiteradamente como subordinada ao homem, responsabilizada pelo mal e silenciada como sujeito histórico.

Desde o Gênesis, essa lógica se impõe. Eva surge como a culpada pela queda da humanidade, aquela que “comeu o fruto proibido” por desejo próprio, por querer “se igualar a Deus”, enquanto o homem aparece quase como uma vítima do amor.

A narrativa constrói a mulher como vilã fundadora e naturaliza a sua submissão. Essa visão é reforçada posteriormente por escritos atribuídos ao apóstolo Paulo, que reiteram a ideia de que a mulher foi “corrompida pela serpente”. Não é coincidência que nenhum livro bíblico tenha autoria feminina reconhecida, enquanto patriarcas como Abraão, Jacó, Davi e Salomão acumulam esposas e concubinas sem qualquer questionamento moral. A mulher, nesse contexto, é tratada como objeto, serva e reprodutora.

Ainda que o machismo não tenha nascido com a Bíblia, ele é anterior, fruto de sociedades patriarcais muito mais antigas, o texto bíblico desempenhou um grande papel na legitimação dessa desigualdade. Ao longo dos séculos, essa leitura foi usada para justificar a exclusão feminina da política, do poder religioso e da tomada de decisões.

O resultado é um sistema em que homens, sobretudo homens cristãos e heterossexuais, legislam sobre corpos, direitos e modos de vida que nunca experimentaram.

Essa contradição se torna ainda mais evidente quando o discurso religioso é mobilizado para defender a exploração do trabalho. A famosa frase “O trabalho dignifica o homem” costuma ser repetida como dogma, mas raramente é acompanhada de uma reflexão honesta sobre limites, dignidade ou descanso.

Curiosamente, o próprio texto bíblico afirma, em Gênesis 2:2, que Deus descansou no sétimo dia. Não porque estivesse cansado, mas porque, simbolicamente, o descanso foi instituído como princípio. A mensagem é muito cristalina: até na mitologia da criação, o descanso é parte essencial da vida.

No entanto, líderes religiosos brasileiros ignoram esse princípio quando lhes convém. O pastor fundamentalista Renato Vargens, por exemplo, tentou justificar a manutenção da escala 6×1 usando Êxodo 34.21: “Seis dias trabalharás, mas no sétimo descansarás”, numa leitura literal e anacrônica que desconsidera o contexto histórico do texto e seus princípios elementares.

Utilizar a Bíblia dessa forma não é teologia; é conveniência ideológica. O que está em jogo no texto não é a quantidade de dias trabalhados, mas a necessidade inegociável de descanso.

Enquanto isso, a realidade imposta pela escala 6×1 é brutal. Mães não veem os filhos crescerem, pessoas abandonam estudos, lazer e até a própria prática religiosa – o tempo passa sem ser vivido e apreciado. O único dia de folga desaparece entre tarefas domésticas e burocracias.

Ainda assim, pastores que jamais trabalharam sob esse regime permanecem em silêncio,  ou pior, se posicionam para defender patrões e empresários. Não existe um único líder religioso influente que viva a escala 6×1, mas muitos se sentem confortáveis em legitimá-la do púlpito.

É nesse cenário que as mudanças começam, quase sempre, pelas mãos das minorias. A luta pelo fim da escala 6×1 ganhou projeção nacional graças à deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição para reduzir a jornada semanal de 44 para 36 horas. Mulher, negra e transexual, Erika simboliza exatamente o que o poder cristão conservador mais combate. Não por acaso, é alvo constante de ataques que misturam transfobia, racismo e moralismo religioso.

A proposta, aprovada simbolicamente na Comissão de Constituição e Justiça do Senado antes do recesso, prevê a transição para jornadas mais humanas, com potencial para modelos como o 4×3. Países como Islândia, Bélgica, Reino Unido, Alemanha, Portugal, Nova Zelândia e Chile já testam semanas de quatro dias, com aumento comprovado de produtividade e qualidade de vida. Ainda assim, no Brasil, a resistência vem dos mesmos setores que, historicamente, se opuseram ao fim da escravidão, ao 13º salário e ao reconhecimento de direitos trabalhistas.

Como afirmou a deputada Beatriz Cerqueira (PT): “Sim, existe vida além do trabalho. Sim, é preciso acabar com a escala 6×1. Não, quem lucra com a exploração do seu trabalho não quer a mudança (…) A luta de classes é a matriz de todas as demais lutas”.

No fim, o padrão se repete. Um sistema que foi construído por homens, para beneficiar homens e usa a religião como escudo moral para manter privilégios intactos. Enquanto isso, são sempre mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+ e trabalhadores que puxam o debate adiante. O incômodo que isso causa diz menos sobre a fé e muito mais sobre o medo de perder o poder.

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