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O cartunista Jorge Braga me recebera em seu apartamento de solteiro. Seu prédio que tem nome de pedra preciosa, possui cor amarelada e ocupa a esquina de uma quadra inteira. Da janela de sua sala dá para se ver o famigerado Café Nice da capital. O Setor Bueno alcançava a máxima de 35º. Encontrei uma vaga e estacionei. Disquei para o primeiro andar e me identifiquei.

De havaianas, calça jeans, camiseta polo com espaçosas listras horizontais azuis e brancas, botões abertos com peito à mostra e óculos, o chargista desceu para me receber. Atravessou o pátio de piso verde escuro e liberou meu acesso.

Subíamos as escadas e Jorge comentou sobre estar enrolado com a mudança. Estava retornando para um apartamento maior, mais confortável no que se refere ao home office. O outro tem um quarto que seria usado especialmente como escritório. No qual estávamos, menor, sua mesa de trabalho dividia espaço com o sofá de dois lugares.

Entramos pela cozinha, composta por azulejos de formas espirais em laranja. Fotos de amigos e familiares
enfeitavam a porta de sua pequena geladeira. Ímãs seguravam alguns papéis que pareciam ser contas a pagar. Podia se ver através da divisória entre pia e área de serviço, suas roupas estendidas, secando ao sol de início da tarde.

Da cozinha para sala foi um pulo. Quando pergunto sobre quantos metros quadrados têm seu apartamento ele me diz despreocupado que não sabe. As paredes são preenchidas por treze quadros e um espelho. Entre as telas, duas são a representação de um palhaço. Há também caravelas em alto mar e casarios coloniais. Em frente ao sofá há uma televisão enorme sobre o raque.

“Você assiste muita tevê?”, perguntei de imediato. O tempo todo. O televisor estava mudo enquanto apresentadores da maior emissora evangélica do país guiavam seu telejornal. Podia se escutar uma outra tevê ligada no quarto ao lado. Não tive acesso. Dava para se ouvir o noticiário da emissora rival, mandante da mídia brasileira.

Saquei meu roteiro e puxei para perto um banquinho. “Licença, viu? É aqui que você trabalha?” No assento tinha uma almofada. “Você geralmente trabalha em que horário do dia?” A resposta se repetiu. O tempo todo. Enquanto eu tô acordado eu vou buscando informação que vai servir pro meu trabalho. Então eu tô sempre ligado. Disse que só quando dorme não pensa no trabalho, logo depois se contradisse. Se bem que a ideia da Gibiteca Itinerante eu tirei de um sonho. Visualizei a Kombi direitinho, acordei de madrugada, desenhei minha ideia e no outro dia procurei a Agepel.

A Gibiteca Itinerante se trata de um projeto que envolve um veículo cheio de gibis, com o objetivo de levar a literatura para bairros e cidades às margens, promovendo a literatura junto às crianças. Na época, a instituição procurada por Jorge foi a Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, atual Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte. Insisto em saber como tais estalos são registrados.

As ideias iriam para o bloco de notas? Tem que se anotar porque se não a ideia não volta mesmo. O artista confirma que o tempo passa e as ideias envelhecem. É preciso ter time.

O cartunista de trás pra frente me contou sobre seus projetos. Em 1994 percebeu que Curitiba tinha uma gibiteca e decidiu fazer igual. Um bate papo com o secretário da pasta foi o necessário para concretizar a ideia. Ele me perguntou: do que precisa? Respondi: de um espaço e muito gibi. Os gibis eu tenho. Doei mil e setecentos gibis para eles. A gibiteca leva o nome de Jorge Braga. Para aqueles que julgam narcisista, não se equivoquem. O critério era homenagear o autor da primeira revista em quadrinho de Goiás. Foram pesquisar e era eu.

Lançada em 1982, a revista Badião é para gente grande. Cinco anos depois veio o Romãozinho, personagem clássico do artista. Inspirado pelas narrativas dos escritores goianos Waldomiro Bariani Ortêncio e Marieta Telles Machado, Jorge criou a série baseada no menino mal do folclore brasileiro. Sempre observava meus filhos para fazer as histórias do Romãozinho. Agora observo meus netos, fiquei velho. Gargalhamos juntos. Do casal de filhos, a inspiração do avô se dá em três, dois netos e uma neta. Os filhos, advogada e médico cresceram em Goiânia. Nada a ver né? Meu filho desenhava, mas sempre quis fazer medicina porque teve dois tios médicos. A influência foi grande.

Poucas das vezes os assuntos espontâneos se acabavam. Aprendi a dominar minha ansiedade. Mantive minhas perguntas de prontidão para quando o vento ficasse fraco e Jorge desenvolvesse todo o assunto do momento, girava o leme para outra direção. Dessa maneira encontrava novos ventos.

“Você desenha enquanto escuta a tevê?” Na maioria das vezes sim. Encarou a tela com a mão no queixo. No dia em que quero espairecer mais escuto música. Adentramos a arte, caro leitor. “E pra espairecer, você escuta o quê?” Arrastou o início da fala como quem está buscando a resposta na memória. Aaaaaaaah anos 70, 80. Gosto de música clássica. A pastoral de Beethoven – Sinfonia nº6 – é muito boa pra desenhar. Dá uma relaxada.

Jorge se teletransporta entre assuntos diferentes – não necessariamente opostos – de maneira natural. Da música ao cinema, do cinema à música. Bolero de ravel, nossa! Lembrou com apreço, fechando os olhos e rindo. Na época de bolachão, bolero de ravel só faltava furar o disco. Era muito bom! Agora de filme minhas preferências são super-heróis. A tecnologia evoluiu muito.

Enxerguei naquele momento o artista conversando com o mercado industrial do cinema. É isso, eu curto música, mas as músicas atuais não me tocam. Não gosto de sertanejo. Acho que é porque minha madrasta colocava no rádio quando eu era criança. Lembro de me dar uma agonia danada. Nem de futebol. Meu pai escutava e eu achava uma chatura. Nunca me interessei.

Otimista, busquei o lado positivo. “Na época, o que passava na rádio que você gostava?” Jovem Guarda. Hoje, de vez em quando, eu ouço Jovem Guarda. Até porque, dependendo da música, consigo me lembrar até do cenário da minha antiga cidade. O sol, as árvores. Sempre fui bem observador. A cidade em questão é Patos de Minas. Carregado de nostalgia Jorge me disse que

Quem nasce lá e vive lá é patense
Quem nasceu fora e vai pra lá é patureba
Quem nasce lá e sai é patife
Juntando todo mundo é pateta

Explosão de risadas. Jorge começou a desenhar desde cedo, atraído pelos traços e cores. Na escola já criava revistinhas. Incentivado pelos pais, sempre tinha por perto revistinhas dadas pelo pai caminhoneiro e lápis de cor, giz cera dados pela mãe. Aos treze anos Jorge foi chamado para ilustrar no A Benção, um jornal fundado por intelectuais da época. Pouco tempo depois ilustrou também para o Jornal dos Municípios. Ambos mineiros.

“Aos treze, você tinha noção do ato profissional que estava fazendo?” perguntei. Não, não tinha não. Era menino demais. Eu criava personagens e eles botavam em situações que eram convenientes. Como já dito, a vinda de Jorge Braga para Goiânia aconteceu por conta de um tio. Ele o aconselhou que morar em uma capital seria melhor para seu trabalho.

Deu certo, com apenas duas semanas no Centro-Oeste, Braga começou a ilustrar para um antigo jornal goiano, o 5 de Março. Posteriormente atuou na Folha de Goiás, no O Popular como cartunista, ilustrador e editor de arte do telejornalismo da TV Anhanguera. Atuou também no Jornal de Brasília, Jornal Braziliense e até enviara charges para O Pasquim, chegando a ser publicado.

Quando estava no 5 de Março eu já lia mais. Tinha noção maior, inclusive que estávamos em uma ditadura militar. Nem tudo podia ser publicado naquela época. Sempre pisando em ovos. Instigado, fui afundo. “Você já foi abordado de alguma maneira por ter publicado algo que incomodou?”

Já, várias ameaças. Recebia avisos, tanto do governo federal quanto do estadual. Mas eu não me intimidava. Teve uma vez que fui preso, ficou registrado como vadiagem. Só que me prenderam na porta da pensão onde eu morava. Na casa de detenção eles sabiam meu nome. Então como vadiagem? Vadiagem é um cara que tá solto na rua, um sujeito que tá na porta de casa não. Eu acho muito bom porque ser vadio é ótimo!

Jorge riu da situação autoritária do passado e eu lhe acompanhei. “Incoerente o motivo da prisão.” Completamente. Como comunicador, Braga aponta que muito se fala de censura de maneira equivocada. Segundo ele, falta bom senso. Não se pode fazer uma charge dizendo que fulano é ladrão sem provas. É preciso responsabilidade.

Critica árduamente as fake news e o ódio destilado no âmbito digital. Nas redes sociais do O Popular eu sou esculhambado. Em pausa pensativa, entrelaça os dedos da mão e assume postura ereta. Otimista, diz que não desiste fácil. Eu persigo as coisas. O Ziraldo uma vez disse que o que mais admira em mim é a persistência. Meu projeto é falar o que está errado, independente de quem esteja no governo. Minha preocupação é com o coletivo.

Ziraldo e Jorge se conheceram quando Braga tinha apenas dezesseis. O criador do Menino Maluquinho tem um carinho grande pelo cartunista, o tratando como da família. Houve um momento que o Ziraldo me ofereceu a chave do apartamento dele que fica na Lagoa, no Rio de Janeiro, para passar férias. Eu neguei, obviamente, e ele ofereceu para minha filha. Tem certas situações que se é necessário desconfiômetro.

Jorge se mostrou realista e atento a possíveis inconveniências. Veiaco, espinho na cueca, cauteloso. “Desconfiômetro, o que seria?” insisti. É a pessoa perceber que não deve seguir em frente
para não incomodar os outros.
Um dos motivos que Jorge mora só articula com o tal
desconfiômetro. Ao perguntar se vive sozinho por opção, ele me responde que não gosto de
incomodar os outros e não gosto de ser incomodado.

Havia um cinzeiro de metal, trabalhado em desenhos que me pareceram de referência grega, no braço esquerdo do sofá. Jorge o trouxe para perto, sacou um cigarro dunhill e o acendeu, aproximando devagar a chama do isqueiro ao pito, para não queimar errado. Tragou três vezes e antes que eu terminasse minha pergunta, descansou sua mão próxima ao objeto metálico, fazendo com que a fumaça subisse verticalmente organizada. “E quem são os cartunistas que você acompanha atualmente?” Aroeira, sensacional. Laerte, muito bom. Caramba, são tantos! J.Bosco, lá do Pará. Elvis, do Amazonas. Lailson, do Pernambuco.

Jorge, que faz parte do site charge online – portal que reúne obras de cartunistas de todo Brasil-, disse que consome o trabalho dos colegas todos os dias. Além de manter conversas informais com os mesmo via WhatsApp, existe uma análise feita para evitar uma repetição de ideias, colocado por ele como plágio.

Na tentativa de ir além interroguei “o que além do traço, da crítica, humor e ironia há em suas obras?” É tudo isso somado a uma sensibilidade. Às vezes tenho que ter alma de poeta pra fazer. A charge não é só pra rir, é pra reflexão. E eu lamento porque a educação desse país está tão ruim que as pessoas não conseguem mais entender o humor como uma coisa leve. Qualquer coisa é motivo de agressão, e claro, elas agridem de volta.

“E como é ser cartunista num estado, do meu ponto de vista, que é pobre de disso? Como você sobrevive a esse mercado?” Já pensei em várias vezes em sair. Já fui convidado para ir pro Rio, São Paulo, mas eu gosto tanto daqui que não é por dinheiro que vou deixar de viver no lugar que eu amo. Porque Goiânia, querendo ou não, é o melhor lugar do mundo.

O mineiro que saiu do interior por conselho do tio, desenvolveu sua vida por meio da arte na capital goiana, onde criou laços irreversíveis. Considerando o povo goiano mais receptivo, Jorge afirma que em Goiás não há tanta desconfiança e confusão como no eixo Rio – São Paulo. Aqui tenho criei meus filhos, tenho meu amigos. Gosto dos botecos e de andar pelos parques, de boa, pensando na vida.

No dia do encontro para a entrevista, terceira semana de dezembro de 2020, o país alcançava 184.876 mortes causadas pelo coronavírus. Segundo o consórcio de veículos de imprensa, utilizando os dados das secretarias estaduais da saúde, Goiás era um dos estados que mantinha estabilidade registrando 6.633 óbitos. “Como foi pra você a chegada da pandemia de Covid-19? Você ficou assustado?”

Eu tô assustado até hoje. Estou praticamente todo o tempo dentro de casa. Uma coisa totalmente desconhecida que afetou o planeta inteiro…e ninguém sabia de nada. O único recurso que tinha era correr pra casa e se esconder, foi isso que eu fiz. Esse negócio de home office eu achei muito bom. Me deixa mais
tranquilo, além de produzir mais.

Jorge Braga estava trabalhando num livro de cartum sem nenhuma palavra, que segundo ele pode ser entendido em qualquer país. O artista desenhou símbolos universais e fez humor. Inicialmente Jorge desenha no papel com lápis grafite. Depois ele digitaliza, envia para o computador e trabalha o desenho no photoshop até alcançar o ponto que o agrada.

Estou com uma mesinha digital. Eu já desenhei nisso, mas é complicado. Preciso mudar de programa. InDesign ou Illustrator, não sei, o que for mais fácil pra mim. “O seu processo criativo sempre foi autêntico? Ele já se automatizou alguma vez? Não, se automatizar a coisa perde qualidade. Todo dia é como quando eu era moleque. Penso, escolho o assunto que vou desenvolver, paro e começo a criar coisas. Vou anotando, desenhando nos cantos do papel e quando a ideia vem eu mando ficha.

Como inimigo da pressa e da perda da autenticidade de produtos que dependem exclusivamente da criação, perguntei sobre seu sentimento de quando era ilustrador. Era agoniante porque a gente não parava de desenhar. Tinha que ler um texto enorme e desenhar tendo o cuidado de não contradizer o texto com o seu desenho. Estava fazendo porque devia cumprir um prazo, não porque gostava, era desgastante. Aos poucos fui conquistando meu lugar na página de opinião, ficando somente com a charge. Hoje trabalho com calma. Hoje sou um cara que não trabalho. Sou um cara que faz o que gosta.

Movido pela deixa do momento indaguei “Você é feliz?”. Dividido como o realista que é, Jorge responde que sim. A felicidade é muito difícil pra quem tem que ver todos os dias as notícias que reportam as mazelas da sociedade. Não só do país mas também do mundo. A desigualdade é um ponto que faz qualquer um questionar o conceito de felicidade. No geral, eu comigo mesmo tô tranquilo.

“Você se considera otimista?” Sim, porque eu acho que vai melhorar. Se não fosse esse otimismo talvez eu mudasse de profissão. Isso aí é o que move o mundo. “Tá vinculado a insistência, né?” É, por aí. Porque se você não crê em mais nada, por que você vai se esforçar? “Você tem alguma crença?” Minha crença é Deus. Mas não frequento nenhum lugar. Minha igreja é meu travesseiro, onde agradeço e às vezes peço.

Entre assuntos profundos e risadas, Jorge se levantava, ia até a cozinha e se hidratava. Cordial, nos serviu água em copos americanos. O ambiente era outro. Voltávamos à atmosfera de azulejos laranjas. De pé, ao lado da pia, me perguntou sobre eu estar atuando num órgão público de comunicação, no qual ele também já trabalhou. Toda vez que terminava seu copo d’água, se servia de dois dedos de café e bebia.

Voltamos à sala. Acendeu outro cigarro. “Como um cartunista ajuda a compor o imaginário do goiano?”. Antes de responder abriu um sorriso, entregando que já gostara da resposta que ia dar. É só misturar um caldo de pequi na tinta da caneta. O jeito goiano de ser acaba passando pra charge. Faço questão de colocar o palavreado local na charge para identificar mais o meu estilo.

Carregado de orgulho eu disse “Um mineiro que se apaixonou por Goiás.” Ao escutar, Jorge justificou-se bem que Patos de Minas fica muito ao oeste, perto de Goiás. As pessoas de lá são parecidas com as daqui. Exceto por uma característica que acho horrorosa. Bom, já não vou lá há muito tempo. Mas o mineiro passa fome pra comprar uma roupa nova. Ele sacrifica a vida dos filhos pra ter um carro bom. Isso não tem em Goiás. Essa imagem que eu tenho da minha infância. O pessoal se importava muito com aparência.

Neste momento o telefone de Jorge toca. “Fica a vontade” disse. Ele encarou seu celular e demorou a atender. Esperou chamar mais duas vezes e atendeu.

— Oi? Hãn? Tô. Aham. Tá. Não! Vem pra cá. Esquece lá! Vem pra cá porque… Hãn? É porque minha preocupação é… vai chegar um monte de cara, vão pegar as coisas aqui… e vou ficar sozinho. Vem pra cá. Depois que descarregar lá eu tenho resto da vida pra arrumar aquilo lá. Certo. Tá. Tchau.

Diante de sua sala cheia de obras nas paredes é possível notar a presença imensurável do mar. “Qual é a sua relação com essas obras?” Eu gosto muito do mar. Não tenho preocupação nenhuma em ficar deitado na praia. Gosto da brisa, da paz, gosto de olhar o mar. Gosto de olhar o horizonte e ter certeza de que a terra é redonda. As gargalhadas soam novamente. Aproveito o gancho e coloco: “Como você avalia a presença cada vez maior dos negacionistas?”

O ser humano está involuindo. Eu achava que o tempo fosse o remédio para a evolução. Agora tô duvidando até disso porque as pessoas estão ficando mais idiotas. Estão criando verdades para elas. Ora, a verdade é uma só e é o que está provado. Não é possível que quando essa pessoa está só ela não percebe na bobagem que está fazendo. A pessoa nega tudo o que ele já leu, ouviu, conversou para fazer parte de um grupo. Quer ser diferenciado? Vai ser estudar se destaca! Agora eles querem se destacar pela idiotice.

Mudando de assunto, abordo a questão de ser crítico com o próprio trabalho. O fato de estar expressando opinião há muito tempo faz com que nós, talvez, percebamos que aquilo feito no antes não condiz com o agora. O tempo é o remédio, segundo Braga. “Como é sua relação em ser crítico com o próprio trabalho?”

Isso é constante. Quando olho uma charge feita há um mês atrás eu sempre acho que poderia ter trabalhado melhor o tema. Sou muito duro comigo mesmo. Mas atualmente não. Por conta do isolamento, sozinho, percebi que estava exigindo muito de mim. Mas não só na profissão como na vida há muita coisa que fiz e que eu não gostaria de ter feito. “Tais como?” Fui muito gandanheiro, briguento. Já fui agressivo em minhas charges. Hoje vejo que o leitor não tem nada a ver com meu sentimento negativo. Soa muito desagradável. A opinião tem que ser responsável pro coletivo.

Retomo sobre morar sozinho. Acho muito bom. Primeiro porque mulher nenhuma aguentaria viver comigo, sou cheio de manias. Segundo, eu não aguentaria de conviver com ninguém. Gosto da solitude, me sinto bem. Não gosto de muita conversa. Vou para um barzinho, troco ideias e depois volto pra casa e fico na minha, tranquilo. Fiquei velho ranzinza. São 25 anos só, me sinto muito bem em paz comigo mesmo.

Voltamos à cozinha, aos copos americanos e aos dois dedos de café. “Você diz ser um cara ansioso. Como você lida com sua ansiedade?” Tento me acalmar porque sempre fui assim desde criança. Eu acho que o mundo acontece devagar, porque é o tempo dos outros, não o meu. O isolamento me ajudou muito nessa questão. No começo fiquei mal, mas por já ter a experiência de viver sozinho fui me adaptando.

Dispensei cerimônias e questionei “E o cigarro ajuda?” Ajuda. Há um tempo atrás decidi parar de fumar e no terceiro dia eu não conseguia nem pensar na charge, muito menos desenhar. Daí eu desci, comprei um cigarro, traguei e tudo fluiu. Por ironia, naquele momento Jorge acendia seu terceiro. Pinçou o cigarro com o polegar e o indicador, o colocando verticalmente à mostra para analisarmos.

Enquanto as cinzas iam aumentando Braga confessa que essa dependência tá me matando. É difícil saber que algo tá acabando com você e não conseguir deixar. Tenho mais medo ainda porque se eu me contaminar com essa porcaria de vírus, meu pulmão vai por água abaixo. Quem não fuma tá morrendo. Já gastei dinheiro demais com remédio pra parar mas não deu. Finalizou o assunto por conta própria.

De supetão me voltei aos desenhos originais das charges, rascunhos iniciais que estavam em cima das caixas de mudança. “Posso ver?” Há dois anos Jorge morava ali. Segundo ele, um lugar menor resolveria sua vida em várias questões, se desapegando de coisas desnecessárias.

Atualmente, sem respostas da imobiliária em relação ao apartamento maior, resolveu voltar para ter mais conforto. Trabalhar na sala não era mais uma opção. Sua mesa comporta um notebook, monitor e impressora. Uma bolsinha com vários lápis grafite – sua munição – também compunham a mesa.

“O que você tem pensado para desenhar hoje?” Ainda não pensei. Esperei, ele levou o olhar ao nada e começou a refletir naquele instante. Algo juntando natal com pandemia. Feliz e satisfeito, finalizei dando mais espaço. “Tem alguma coisa que eu não te perguntei e você acha interessante me contar?” Não, tranquilo. Você pergunta pra caramba.

As risadas voltam à tona. Agradeço em saudosismo e o cartunista me presenteia com seu livro de título Retrato Falido. Ele desenha na folha de rosto um personagem de braços abertos, exclamando Viva o Gustavo! Agradeço mais uma vez. Saio pela cozinha, desço as escadas, atravesso o saguão e saio do prédio. Antes de entrar no carro vejo Jorge, da janela de sua sala, acenando. Sinalizo de volta e sigo meu caminho, satisfeito.