Cogumelos podem revolucionar tratamento em saúde mental

23 novembro 2023 às 11h36

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“Os alucinógenos, como preferimos chamar este grupo de psicodislépticos, são tão velhos quanto o homem, um ser que pensa, sofre, ama, odeia, palpita, é vibrátil, feliz ou desgraçado, mas, em todas as variantes da escala afetiva, na euforia dos grandes eventos, no trepidar dos grandes voos e sonhos do espírito, na riqueza do seu saber, ele se dá conta dos ferrolhos das suas portas, dos muros que o cercam e que, intransponíveis, desafiam as suas forças e desesperos. Assim, sente-se tão perdido, tão contrafeito, tão humilhado dentro desse mundo, que não é de estranhar a sua revolta, as suas tentativas de fuga e libertação”, escreveu o médico Leão Humberto Montezuma em 1978, no livro Psicofármacos, amplo estudo sobre os psicotrópicos.
Compreende-se por “psicotrópicos”, as substâncias químicas, naturais ou sintéticas, que exercem uma ação seletiva sobre as células nervosas que regulam os processos psíquicos do homem e a conduta dos animais. A palavra psicotrópico deriva do grego Psykhe (alma) + Tropos (volta), enquanto o prefixo “freno” vem do grego Phren, Phrenos (espírito). No mundo inteiro, cientistas estudam os potenciais terapêuticos dessas drogas que atuam no cérebro para impedir a dor. A psilocibina, presente nos “cogumelos mágicos”, ainda é uma substância de uso controlado na maioria dos países, apesar do uso recreativo ser comum entre os jovens. Pesquisas recentes, no entanto, apontam os cogumelos como saída para doenças como depressão, ansiedade, dependência química, transtorno de estresse pós-traumático, entre outras.
Substâncias como o LSD, a psilocibina (extraída de cogumelos) ou o DMT (extraída de plantas como a Ayahuasca) são banidas em todo o mundo desde que foram proibidas, em 1971, por uma convenção da Organização das Nações Unidas (ONU). A Ayahuasca, no entanto, é a única liberada para uso religioso. Na Ucrânia, por exemplo, recentemente o uso de cogumelos tem sido incentivado para tratamento dos traumas de guerra. Desde a invasão pela Rússia, aumentaram o número de defensores do uso dessas substâncias na psicoterapia, uma vez que, com a guerra, cresceram também os casos de doenças psíquicas graves no país.
“Foi uma alteração da forma com que o meu cérebro lida com a realidade”, disse Vinícius Santos, de 30 anos, sobre sua primeira experiência com cogumelos mágicos. Ele conta que se reuniu com alguns amigos em uma chácara e consultou a dosagem adequada com um médico. “A minha percepção sobre a vida mudou tanto que eu trouxe pra mim a ideia de que a forma que eu vejo o mundo não é necessariamente como ele é. Eu tenho vários filtros que eu coloco para ver o mundo e muitas vezes ele pode não ser como a gente vê, ou como a gente quer ver”, explicou ele sobre os efeitos.
Vinícius mora em Goiânia e faz acompanhamento psicológico há mais de 5 anos. Para ele, os cogumelos vão revolucionar a ciência e apontar uma direção nova no tratamento de doenças psíquicas. “Me ajudou muito com a ansiedade porque teve muita parte de aceitação também. Eu, particularmente, acho que o cogumelo é uma das melhores coisas que a gente pode buscar, porque o impacto é muito menor do que outras drogas. O efeito é no cérebro, é muito mais psíquico do que físico. É uma alternativa muito melhor do que o álcool, por exemplo, ou qualquer outra droga sintética”, completou.
Os psicodélicos clássicos, como a psilocibina e o LSD, entram no cérebro através dos mesmos receptores que a serotonina, o hormônio da felicidade. A serotonina ajuda a controlar as funções do corpo, como sono, desejo sexual e estados psicológicos, como satisfação, felicidade e otimismo. A psilocibina é obtida do cogumelo mexicano Psilocybe mexicana Heim e possui efeitos alucinógenos que determinam fenômenos de despersonalização, menos acentuados que os observados com o LSD.
Gordon Wasson, grande autoridade em fungos das mais exóticas variedades, penetrando no coração das montanhas de Mixteco (México), onde esses fungos existem em quantidade e chegou a comer uma dúzia deles, aproximadamente, descrevendo o seu sabor como rançoso e picante e fazendo menção aos seus efeitos, notadamente as visões. “As visões não eram difusas nem trêmulas, mas nítidas e precisas; as linhas e as cores eram tão agudas que me pareciam mais reais do que tudo quanto eu já havia antes no mundo”.
O termo “Psicodélico” tem ganhado imensa difusão, sendo proposto pelo Dr. Humphrey Osmond. Deriva do grego e significa “manifestação do espírito”. O uso medicinal de drogas psicodélicas na cura de doenças da mente vem quebrando preconceitos e avançando. Apesar de ainda enfrentar a falta de investimento na ciência e na pesquisa, o Brasil tem bons aliados, entre neurocientistas e psiquiatras, o que torna o país líder do movimento mundial chamado de renascença psicodélica. Nomes como Dráulio Araújo, Eduardo Schenberg, Luís Fernando Tofoli e Sidarta Ribeiro estão à frente dessas pesquisas e pretendem que o caminho seja o mesmo da maconha, atualmente em fase de aprovação para o mercado medicinal.
“A diferença entre o veneno e o remédio é a dose”, explica Sidarta Ribeiro, neurocientista, biólogo, professor titular e co-fundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É também pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e autor de livros como “O Oráculo da Noite” e “Sonho Manifesto”.

Pesquisas científicas apontam potencial terapêutico
O estudo científico “A psilocibina e o seu potencial terapêutico em saúde mental”, da Universidade Federal do Ceará, apontou que o “princípio ativo encontrado nos cogumelos mágicos apresenta baixa toxicidade, não tem potencial de causar danos cerebrais, mentais ou físicos, nem de causar adicção, uso compulsivo ou abuso”. Além disso, explicou que a psilocibina tem um grande potencial para tratamento de pacientes com depressão resistente a tratamentos farmacológicos convencionais, com significativa melhora na sintomatologia depressiva em um menor espaço de tempo e com efeitos prolongados, mesmo em poucas doses. |
A busca por melhoria também se reflete em outros transtornos mentais, tais como ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo e abuso de substâncias. “Essas melhoras não podem ser dissociadas da experiência mística/psicodélica associada ao uso agudo e pós agudo, que causam sensação de paz, plenitude e reflexões sobre o “eu interior” (confira o estudo aqui).
Um estudo publicado na revista científica Nature também apontou a psilocibina presente nos cogumelos como “promissora no modelo de tratamento em psiquiatria”. Apesar disso, seus mecanismos terapêuticos são pouco compreendidos, estudados e pesquisados. Durante o estudo, dados de fMRI de qualidade pré e pós-tratamento foram coletados de 16 dos 19 pacientes. A diminuição dos sintomas depressivos foi observada em todos os 19 pacientes.
“Esses dados preenchem uma importante lacuna de conhecimento sobre os efeitos cerebrais pós-tratamento da psilocibina e são os primeiros em pacientes deprimidos. As alterações cerebrais pós-tratamento são diferentes dos efeitos agudos previamente observados da psilocibina e de outros “psicodélicos”, mas foram relacionadas aos resultados clínicos. É proposto um mecanismo terapêutico de reinicialização”, explicou o estudo (confira a pesquisa completa aqui).
Parte do preconceito com o uso médico da substância vem de sua reputação como droga recreativa. Algo que agrava isso é que alguns psiquiatras defendem que a experiência psicodélica no controle da depressão faz parte da terapia. Não é só efeito colateral. Pouquíssimos indicam como forma de tratamento, até porque os estudos científicos são recentes.
Para Vinícius Santos, que faz uso medicinal do cogumelo, o preconceito e a religião são obstáculos para a legalização no Brasil. “Acho muito dicíil um olhar diferente para essas drogas porque algo básico como a maconha não é liberado. Assim, tem que passar por todo um processo e, atualmente, a gente tem uma incidência muito, muito grande da religião no país, principalmente na política”.
Ele explicou ainda que somente o uso dos psicodislépticos não é suficiente para o tratamento de alguns transtornos. “Eu acho que necessita de um acompanhamento psicológico para que as pessoas possam conhecer essa outra realidade com segurança, porque se a pessoa não estiver bem com ela mesma, com os próprios pensamentos, vai ser como o álcool ou como qualquer outra droga. A pessoa pode afundar ainda mais do que ela está tentando sair, ou no que ela está tentando buscar recursos”, finalizou.
Apesar de a dose para efeito psicodélico ser relativamente alta, há estudos que investigam efeitos de doses menores de psilocibina.Um outro trabalho apresentado no encontro em Washington viu efeito razoável de doses pequenas em camundongos para tratar estresse pós-traumático, um tipo de transtorno de ansiedade. A eficácia em camundongos machos, porém, foi maior do que em fêmeas. Os autores, liderados por Phillip Zoladz, da Universidade do Norte de Ohio, sugerem investigação desse fenômeno em humanos.
A Teoria do Símio Chapado
Apresentada pelo etnobotânico Terence McKenna no livro O Alimento dos Deuses, publicado em 1992, a Teoria do Símio Chapado defende que o uso de cogumelos possibilitou a evolução do Homo Erectus para o Homo sapiens foi ter encontrado cogumelos alucinógenos em sua exploração do mundo, e que foi o seu consumo que permitiu a expansão das capacidades cerebrais e a evolução para a atual espécie humana.
McKenna afirmava que a psilocibina permitiu que os processos primitivos de processamento de informações do Homo erectus fossem rapidamente reorganizados, sendo o responsável pelo rápido desenvolvimento cognitivo que deu origem aos primeiros indícios de linguagem, artes e tecnologia encontrados em registros arqueológicos do Homo sapiens. Para McKenna, os primeiros humanos encontraram uma consciência superior nos alimentos que consumiam, e foi esta consciência que nos tirou do mundo animal e nos trouxe para o mundo da comunicação articulada e da imaginação.
O etnobotânico explica que a evolução cultural humana rapidamente nos levou a criar os animais que usávamos de alimento ao invés de simplesmente caçá-los pela região, e isso nos fez ter um maior contato com as fezes desses animais – um fertilizante natural para os cogumelos alucinógenos. Assim, essa interdependência entre os humanos e o gado (que serviam não apenas de alimento, mas também ajudava no cultivo de cogumelos) foi o responsável pelo homem ter enxergado seus primeiros deuses e iniciado uma longa história de rituais religiosos.
Apesar de Terrence McKenna ter defendido apaixonadamente sua tese, a comunidade científica nunca a considerou seriamente, alegando que a teoria era altamente especulativa e praticamente impossível de ser comprovada. Entretanto, em 2017, Paul Stamets, renomado micólogo especializado no estudo dos efeitos da psilocibina e reconhecido pela comunidade acadêmica, levantou a possibilidade de que McKenna não estivesse tão equivocado como se pensava.
Em 2017, em uma palestra no evento Psychedelic Science (uma conferência de cientistas, terapeutas, químicos e artistas que acreditam no potencial terapêutico das drogas alucinógenas) Stamets defendeu que a psilocibina foi o catalisador de um fenômeno que, há 200 mil anos atrás, dobrou repentinamente o tamanho do cérebro dos ancestrais humanos, sendo então a responsável pela enorme evolução que a espécie teve nos anos seguintes.

Há um fato nesta fala de Stamets: realmente houve uma dobra repentina no tamanho dos cérebros de nossos ancestrais — ainda que o pesquisador possa ter errado o período em que ele ocorreu. De acordo com os antropologistas, o cérebro humano passou por dois crescimentos repentinos em seu crescimento: entre 2 milhões e 700 mil anos atrás, o cérebro do Homo Erectus dobrou de tamanho e, entre 500 mil e 100 mil anos atrás, o cérebro do Homo sapiens triplicou em volume. Não se sabe exatamente qual foi o causador desse crescimento, e Stamets defende que ele foi provocado pelo consumo de cogumelos alucinógenos.
Assim, ainda que a Teoria do Símio Chapado seja algo que possivelmente ficará esquecida nos anais da ciência, ela acabou deixando um legado que poderá ajudar muitas pessoas no futuro, e é bem possível que logo vejamos a psilocibina ganhar uma maior notoriedade como um agente de mudança positiva no mundo. E, ainda que talvez seja impossível provar que os cogumelos alucinógenos foram uma parte importante da evolução de nossos antepassados, tudo indica que logo eles se tornarão uma parte importante de nossa sociedade no futuro.
“Embora aquela viagem tenha prosseguido sem que eu buscasse outras experiências semelhantes, o encontro foi um divisor de águas pessoal e profissional. Em primeiro lugar, por me motivar a enviar uma carta a meu irmão propondo um encontro de reconciliação em algum ponto no meio do caminho. O encontro aconteceu, regeneramos nossa harmonia e assim seguimos até hoje — eu e ele, ele e eu. Em segundo lugar, por me permitir vislumbrar com nitidez e entusiasmo o objeto de pesquisa ao qual me dedicaria a partir de então: o cérebro”, escreveu Sidarta Ribeiro sobre suas experiências com alucinógenos.