Ironicamente, a falta de uma estrutura orgânica do crime no Estado
pode estar contribuindo para uma elevação do número de assassinatos.
A grande desigualdade social e o consumismo agravam o quadro

Elder Dias

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Homem assassinado em Goiânia por dívida de drogas: cena que em São Paulo o PCC procura coibir / Foto: Cristina Cabral

Um dos orgulhos da segurança pública em Goiás é o fato de o Estado não ter sido dominado por facções nacionais do crime organizado. “O PCC [Primeiro Comando da Capital] não entra aqui” é uma frase que aparentemente dá mesmo uma sensação boa aos goianos. Mas o fato de não ter organizações comandando o crime pode ser, ironicamente, uma das causas mais importantes para se entender o aumento da violência e do número de homicídios na capital e no Estado nos últimos anos.

É uma hipótese admitida como plausível por Guilherme Borges, do Núcleo de Estudos sobre Cri­mi­nalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás. Mestre em Sociologia, também pela UFG, ele estuda o fenômeno da violência urbana e em seu trabalho de pesquisa fez entrevistas com detentos do Complexo Prisional Coronel Odenir Guimarães (POG), o antigo Cepaigo.

Ocorre que em Estados como São Paulo, berço do PCC, e Rio de Janeiro — dominado pelas facções Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando Puro —, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes regrediu desde o início do século. São Paulo, por exemplo, marcava um índice de 42,2 em 2000 e teve 10,5 no ano passado. Propor­cionalmente, em terras paulistas se mata quatro vezes menos do que em Goiás, cuja taxa dobrou entre 2000 e 2013 (de 20,2 para 40).

A explicação pode estar justamente na organização do crime nesses Estados e na falta de estruturação orgânica dele em Goiás. “Não tem concorrência no tráfico em São Paulo, não é preciso disputar com ninguém. Existe um ‘estatuto’ do PCC, uma lógica a ser obedecida nos presídios e nas ruas. Isso evita as disputas. Outro detalhe: o tráfico é um negócio e os homicídios prejudicam o comércio do crime organizado. Espantam a clientela e abrem investigações. Com seu alcance, o PCC pode pensar por esse viés e simplesmente dar ordem para coibir mortes”, diz Guilherme. Da mesma forma ocorre em território fluminense. “No Rio, o cidadão tem de saber andar sob a ordem legal do Estado e do tráfico. A lei do silêncio guarda a paz.”

No chão goiano, é diferente: um traficante pode ter meia dúzia de “bocas de fumo” sem que seu vizinho saiba. A região metropolitana de Goiânia não é afetada por um controle de território do crime e do tráfico. O que há é apenas uma posse comercial sobre o espaço. “Mas nada impede alguém de abrir uma boca de fumo em qualquer lugar, não há nenhuma norma”, lembra o sociólogo. É como se houve um livre comércio para o tráfico e cada traficante se tornasse um empreendedor.

A desorganização incita a disputa. Como em qualquer ramo do capitalismo, quem tem um negócio quer crescer. Sem regulação, a concorrência usa de todas as armas. No caso do tráfico, literalmente. “Na periferia, quem está no tráfico precisa ter uma arma de fogo, mesmo que nunca a use. Todos sabem que estão em uma posição altamente vulnerável”, diz o sociólogo.

Ocorre então, que, quando alguém quer crescer no ramo, abrindo mais bocas, geralmente surgem conflitos. “Há um controle comercial, mas não há controle territorial”, reitera Guilherme. Sem essa delimitação, um traficante que passa ao controle de várias bocas e, por isso, comece a investir no “atacado”, pode em seu avanço, querer forçar o dono de uma “boca” menor a se tornar seu cliente, pressionando-o a trocar seu antigo fornecedor por ele. “Quem quer expandir não tem por que destruir as outras bocas, é mais lucrativo virar seu fornecedor.” O problema é quando a “oferta” é questionada: se isso ocorrer, a disputa pelo poderio sobre tal boca deverá levar a sangue derramado. Um efeito colateral da ausência do crime organizado em Goiás.

Outra questão que permeia o tráfico, “mas também tem a ver com a cultura machista” é a honra. É a causa de boa parte das mortes. “O traficante diz que quem respeita compromisso é homem; quem não respeita, é menino. ‘E com menino a gente resolve no tiro’. Isso ocorre não pela vingança em si, nem por 5 reais de dívida: é a honra que está em jogo. Não é a dívida, mas é o desafio ao poder. A honra foi desafiada quando o compromisso não foi honrado”, explica o pesquisador.

As grandes apreensões são sempre muito comemoradas pelas autoridades. Mas as montanhas de drogas apresentadas à imprensa são um troféu para a polícia e um passivo para os que as compraram: como ainda não existe seguro contra perdas no ramo, uma cadeia de violência vai ser movimentada para que o débito seja quitado. É comum que, logo após uma ocorrência que envolva toneladas de droga haja um recrudescimento da violência. Guilherme Borges explica sucintamente: “É uma conta básica: supondo que haja uma apreensão de 2 toneladas de maconha, basta fazer a conta, ao valor de R$ 3 mil o quilo. Isso dá R$ 6 milhões a serem quitados.” Para saldar a dívida, a tática são assaltos de grande monta, roubo de carros e ataques a caixas eletrônicos. É o que faz o dinheiro ser recuperado com maior agilidade.

Causas das mortes

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Rebelião em presídio expõe faixas do Primeiro Comando da Capital: crime organizado controla a vida e a morte / Foto: Cristina Cabral

Em seu trabalho, entre outras coisas, Guilherme Borges diz que a polícia superestima os casos de mortes envolvendo drogas. Entre os condenados por homicídio, segundo o que apurou, 61% foram autores de crimes por conflito interpessoal (briga de trânsito, crime passional, desentendimento em bares etc.), o que está mais ligado à bebida alcoólica do que propriamente às drogas ilícitas. Os condenados por mortes ligadas diretamente a drogas são só 9% do total.

Não é um número que possa ser usado para estimar quantos morrem por conta do tráfico. É simples: a porcentagem de investigações inconclusivas sobre mortes possivelmente ligadas a esse crime é muito mais alta do que a de outros. “A polícia faz uma espécie de vistas grossas a esse tipo de crime, porque se tem uma espécie de justificativa de que seria bandido matando bandido”, diz Guilherme Borges. É bom ressaltar: é um sentimento que também é comum na própria população — grande parte se “alivia” quando encontra um motivo assim para um homicídio em sua cercania.

E, como ocorre em qualquer área da sociedade, também no tráfico as classes menos favorecidas são as que mais sofrem. “O tráfico existe, e forte, também na classe média, nas boates. Mas não há tanta violência porque geralmente os traficantes trabalham isoladamente, com droga sintética, que tem uma distribuição atomizada e com clientes que pagam à vista”, relata Guilherme.

Goiânia, uma cidade de duas caras

Portal de entrada do Residencial Vale dos Sonhos: bairro de  população de baixa renda e com muitos problemas de infraestrutura / Foto: Divulgação/Prefeitura
Portal de entrada do Residencial Vale dos Sonhos: bairro de
população de baixa renda e com muitos problemas de infraestrutura / Foto: Divulgação/Prefeitura

Quem vem de Brasília para a capital de Goiás, logo depois de passar pelo posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF), na BR-153, vai se deparar com a curva “Alá Goiânia”. Não há placa indicativa e também nada a ver com alguma espécie de misticismo islâmico. O local foi batizado por uma expressão elaborada com o mais legítimo goianês da corruptela da expressão “olhe lá, Goiânia!”. Em topografia elevada, a Alá Goiânia descortina a cidade para quem a vem visitar.

Passada a famosa curva, pouco mais de um quilômetro à frente, o observador mais atento da geografia terá um resumo do que é a metrópole à qual está chegando: a seu lado direito, o Residencial Vale dos Sonhos, bairro de predominância das classe D e E, erguido a partir da reivindicação de um movimento organizado de luta pela casa própria. O letreiro no arco que demarca a entrada do bairro, bem à vista, diz “Valeu sonhar!”. Mas há muito por fazer pelo sonho, ainda: na segunda etapa do bairro, o asfalto prometido há três anos ainda não chegou. Não há esgoto nem água encanada. A iluminação é precária.

Do lado esquerdo da rodovia, em outro “residencial”, está o ápice da pirâmide social de Goiânia: depois de passar por uma avenida dividida em duas pistas em meio a um bosque aprazível, chega-se à portaria do Residencial Aldeia do Vale, um dos metros quadrados mais caros da capital. Nem todos os moradores passam por ela ao retornar do trabalho: alguns usam o espaço aéreo no deslocamento. Evitam assim, por meio de helicópteros, o estressante trânsito da região, com carros, caminhões, ônibus e motos de baixa cilindradas, estes dois últimos os meios de transporte mais usados pelos que moram no Vale dos Sonhos.

Condomínio fechado Aldeia do Vale, vizinho do Vale dos Sonhos: mansões hollywoodianas e moradores que chegam de helicóptero / Foto: Divulgação/Prefeitura
Condomínio fechado Aldeia do Vale, vizinho do Vale dos Sonhos: mansões hollywoodianas e moradores que chegam de helicóptero / Foto: Divulgação/Prefeitura

Essas são as duas cidades logo depois do Alá Goiânia: se você entrar à direita se sentirá como que em um distrito africano; se pegar o retorno à esquerda, terá a ilusão de chegar a um bairro luxuoso da Califórnia, com suas mansões hollywoodianas.

Esse quadro tão descompensado agrava a violência. É que o Brasil hoje está quase quatro vezes mais rico do que em 2002. O Produto Interno Bruto (PIB) totalizou, em 2013, R$ 4,84 trilhões; ao fim de 2002, quando terminava a era FHC, todas as riquezas nacionais somavam R$ 1,32 trilhão. Éramos a 13ª economia mundial e hoje somos a 7ª, tendo chegado à 6ª posição em 2011. Ótimo, não? O problema é o coeficiente de Gini, uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini há cerca de cem anos. Por ela, mede-se a desigualdade de distribuição de renda entre zero e 1: um índice nulo corresponde à completa igualdade de renda e o número 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma só pessoa teria toda a renda e as demais nada teriam). Com índice de 0,519 (relativo a 2012), o Brasil está bem mais perto do Haiti (0,592) do que da Suécia (0,230), por exemplo.

Agora, uma observação importante: de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas entre os anos de 2008 e 2009, a Grande Goiânia possui a maior concentração de renda entre 19 áreas analisadas da América Latina. O índice Gini é de 0,65 — se fosse um país, Goiânia só seria menos desigual do que a Namíbia. Outro relato, de abrangência mundial, põe a cidade como a 10ª em pior distribuição de renda, só sendo superada por nove cidades africanas.

Ou seja: o Brasil — e Goiás, e Goiânia — tem mais renda, dezenas de milhões de pessoas com renda em ascensão, mas não sanou suas desigualdades. Há mais gente consumindo, há mais itens de consumo e mais aquisições — hoje o número de automóveis no País é de 45 milhões, quase o dobro de 2003, quando havia 23 milhões de carros. Não pode dar uma mistura boa tanta renda com tamanha má distribuição, a presença do tráfico e o descontrole da posse de armas. Isso explica o que ocorre no País todo, mas explica melhor ainda o fenômeno do morticínio em Goiânia e em Goiás.