Povos indígenas em Goiás: quem são, onde vivem e por que ainda lutam para existir no mapa
27 dezembro 2025 às 21h00

COMPARTILHAR
Quando o território que hoje chamamos de Goiás passou a ser explorado pela Coroa portuguesa, no século XVIII, ele já era habitado por inúmeros povos indígenas. Os registros históricos apontam a presença de grupos como Goyá, Xavante, Karajá, Tapuia, Avá-Canoeiro e muitos outros que ocupavam extensas áreas do Cerrado, organizados a partir de suas próprias cosmologias, formas de governo, relações com a terra e sistemas de conhecimento.
A colonização não significou apenas ocupação territorial. Ela trouxe consigo expulsões sistemáticas, massacres, catequização forçada, deslocamentos compulsórios e um longo processo de apagamento cultural. Goiás se tornou, ao longo dos séculos, um dos estados onde a violência contra povos originários foi mais silenciosa — menos documentada, menos debatida e, por isso mesmo, mais profunda.
O resultado desse processo histórico é visível hoje: um estado com pouquíssimos territórios indígenas demarcados, mas com uma população indígena numerosa, dispersa e majoritariamente urbana. A história não terminou no passado colonial. Ela se estendeu para o presente, moldando a forma como indígenas vivem, se identificam — ou evitam se identificar — e acessam direitos.
Os números que revelam — e os que ainda escondem
O Censo Demográfico 2022, do IBGE, trouxe um retrato mais detalhado da presença indígena no estado. Segundo os dados oficiais, Goiás abriga 19,2 mil pessoas indígenas com 2 anos ou mais de idade e 211 etnias diferentes, o que coloca o estado como o 5º mais diverso do Brasil nesse quesito.
Esse salto é significativo: em 2010, haviam sido registradas 143 etnias. O crescimento não indica “surgimento” de novos povos, mas maior capacidade de identificação, avanço da autodeclaração e melhoria dos instrumentos de coleta, sobretudo em áreas urbanas.
A diversidade aparece com força nas cidades. Goiânia concentra 132 etnias, seguida por Aparecida de Goiânia (72) e Valparaíso de Goiás (54). O dado desmonta a ideia ainda dominante de que indígena é, necessariamente, alguém que vive em aldeia distante. Em Goiás, o indígena está no bairro, no ônibus, na universidade, no serviço público — muitas vezes sem ser reconhecido como tal.
Entre as etnias com maior número de pessoas no estado estão:
- Karajá (1.260 pessoas)
- Xavante (1.022)
- Tapuia (626)
- Guarani (579)
Outro dado central ajuda a entender a realidade contemporânea: a esmagadora maioria dessa população vive fora de terras indígenas e em áreas urbanas. Entre os Xavante, por exemplo, 96,97% residem em domicílios urbanos fora de territórios demarcados; entre os Guarani, 95,51%; e entre os Karajá, 85,48%.
Essa urbanização não é uma escolha cultural livre. Ela é consequência direta de séculos de expulsão territorial, da ausência de políticas públicas consistentes e da necessidade de acesso a trabalho, educação e saúde.
Há ainda um dado que costuma ser usado de forma distorcida: 93,7% das pessoas indígenas em Goiás não falam língua indígena em casa. Longe de significar “perda de identidade”, esse número revela marcas profundas de violência histórica, repressão linguística, escolarização forçada e sobrevivência em contextos hostis. A língua, muitas vezes, foi silenciada para proteger vidas.
A política como ferramenta de existência: a trajetória de Cleiton Tapuia
Se os números mostram uma população dispersa, a política revela o quanto essa dispersão se traduz em baixa representação institucional. Em Goiás, por décadas, indígenas foram eleitores — mas raramente protagonistas.
Esse cenário começou a mudar com a eleição de Cleiton Tapuia, primeiro vereador indígena eleito no estado, no município de Nova América. Professor de formação, Cleiton ingressou na política a partir de uma demanda direta de sua comunidade.
“A gente sempre foi usado como manobra de voto, mas nunca teve voz. Chegou um momento em que o cacique e a comunidade disseram: precisamos de alguém nosso lá dentro”, relata Cleiton em entrevista ao Jornal Opção.

Sua eleição não foi apenas simbólica. Em seu segundo mandato, Cleiton tornou-se também o primeiro indígena presidente de uma Câmara Municipal em Goiás, rompendo um ciclo histórico de exclusão. Para ele, ocupar o espaço institucional é uma forma de quebrar estereótipos profundamente enraizados.
“O indígena ainda é visto como folclore no Brasil”, afirma. “Como se tivesse que estar isolado no mato, com arco e flecha. Hoje, o indígena pode estar onde ele quiser. Pode ser professor, advogado, dentista, vereador. A gente pode ser o que quiser.”
Cleiton acompanha de perto a realidade dos povos Inã-Carajá, Tapuia e de outras comunidades da região. Ele observa avanços culturais e organizativos, como a nomeação da primeira cacica mulher de Goiás, mas aponta gargalos graves, sobretudo na área da saúde.
Um dos exemplos mais críticos é a CASAI (Casa de Saúde Indígena), em Goiânia, espaço que recebe indígenas de Goiás e de outros estados para tratamentos especializados pelo SUS. Segundo ele, a estrutura está deteriorada, sem manutenção adequada.
“Falta recurso, falta reforma, falta dignidade”, diz. “Levei deputado para ver de perto. A gente cobra, porque saúde não pode esperar.”
Para Cleiton, a maior urgência hoje é garantir políticas públicas que acompanhem a realidade indígena urbana: saúde, educação, habitação e assistência social. “O número de indígenas desaldeados é quase o mesmo dos aldeados. Se a política não enxerga isso, ela já nasce defasada.”
Educação, território e identidade: a voz de Eunice Pirkodi Tapuia
Se Cleiton fala da política institucional, a primeira professora indígena de Goiás, Eunice Pirkodi Tapuia, fala do cotidiano — do corpo, da cidade, da identidade que precisa ser negociada diariamente para sobreviver.
Primeira professora indígena da Universidade Federal de Goiás, Eunice descreve a vida urbana como um espaço de constantes escolhas estratégicas. “Viver na capital é desafiador, especialmente para mim como mulher indígena”, afirma. “Há situações em que você sente que ser vista como indígena muda completamente o tratamento.”
Ela aponta que muitos indígenas urbanos evitam se declarar no Censo ou em outros cadastros por medo do preconceito — um medo que não é abstrato, mas construído por séculos de violência. “Goiás sempre tratou os povos originários com muita violência. Isso fica guardado. As pessoas aprendem a se proteger.”
Para Eunice, a principal urgência passa pela educação escolar indígena, garantida em lei, mas ainda pouco efetivada. “É pela educação que conseguimos manejar as ferramentas do mundo burocrático, sem abrir mão da nossa forma de ser, viver e pensar.”
Ela critica a lógica dos editais, formulários e políticas públicas que exigem domínio de um português excessivamente técnico, prazos curtos e acesso constante à internet — realidade distante de muitas comunidades.
Se a informação chega tarde, se a linguagem é inacessível e falta energia no dia da inscrição, o direito simplesmente não se concretiza.
A experiência da UFG, especialmente com a Licenciatura Intercultural iniciada em 2007, é citada como um divisor de águas. “Foi ali que nosso povo pôde pesquisar a própria história, recuperar conhecimentos que estavam dormindo. Isso nos fez reconhecer que éramos, sim, um povo, com língua, memória e território.”
Ao falar de território, Eunice é categórica: não se trata apenas de terra física, mas de existência.

Nós e o território somos um. Sem território, não existimos.
Em Goiás, ela lembra, muitos cemitérios tradicionais, áreas de caça, pesca e coleta estão fora das áreas oficialmente demarcadas — o que aprofunda a sensação de desenraizamento.
Se estivesse em um grande debate ambiental internacional, como a COP, ela diz que levaria uma mensagem central: “A luta territorial é a maior de todas. Terra não é mercadoria. Terra é mãe.”
Avá-Canoeiro, Iny-Karajá e Tapuia
Goiás abriga três povos indígenas reconhecidos, cujas histórias revelam a profundidade do enraizamento indígena no território e, ao mesmo tempo, a violência que marcou o processo de ocupação do Centro-Oeste: Avá-Canoeiro, Iny-Karajá e Tapuia do Carretão. Cada um deles preserva formas próprias de existência, memória e relação com a terra, compondo um patrimônio cultural vivo e diverso.
Os Avá-Canoeiro pertencem ao tronco Tupi e falam uma língua da família tupi-guarani. Autodenominam-se Ãwa, “gente”. Durante séculos, foram perseguidos por frentes coloniais, fazendeiros e projetos de ocupação territorial, sofrendo massacres que quase levaram o povo à extinção. A história Avá-Canoeiro é marcada pela fuga, pelo isolamento forçado e pela resistência silenciosa.

Atualmente, os Avá-Canoeiro estão divididos em dois pequenos grupos: um na região de Minaçu, no norte de Goiás, e outro na Ilha do Bananal, convivendo com povos vizinhos. Sua população é extremamente reduzida, o que os coloca em condição crítica de vulnerabilidade física, linguística e cultural. Ainda assim, o povo luta pela retomada de seus territórios tradicionais e pela preservação de sua língua, considerada em alto risco de desaparecimento.
Os Iny-Karajá, historicamente conhecidos como Karajá, são um dos povos indígenas mais antigos da região do Médio Araguaia. A autodenominação Iny, que significa “nós, gente”, afirma uma identidade própria que vem sendo retomada nas últimas décadas. Sua língua pertence ao tronco Macro-Jê e apresenta variantes dialetais como Karajá, Javaé e Xambioá, todas mutuamente compreensíveis.
Em Goiás, os Iny-Karajá vivem principalmente no município de Aruanã, às margens do rio Araguaia, território central em sua cosmologia e organização social. A história do povo é marcada por contatos contínuos com missões, sertanistas e políticas estatais, mas também por uma forte capacidade de reorganização. Rituais, arte cerâmica, parentesco e o uso simbólico do território sustentam a continuidade cultural Iny até os dias atuais.
Os Tapuia do Carretão formam um povo de origem plural, resultado de políticas coloniais que reuniram diferentes etnias indígenas, além de pessoas negras e não indígenas, em aldeamentos forçados no século XVIII. O termo “Tapuia”, antes usado de forma pejorativa para designar povos considerados “rebeldes”, foi ressignificado e assumido como identidade coletiva, afirmando uma história própria de resistência.
A língua do povo Tapuia é o chamado Português Tapuia, um português étnico marcado por influências indígenas e africanas. Essa língua expressa a trajetória singular do grupo, cuja identidade foi historicamente negada como estratégia para legitimar a expropriação de suas terras. Mesmo submetidos a processos de invisibilização e desindianização, os Tapuia permaneceram no território e preservaram vínculos comunitários fundamentais.
Hoje, os Tapuia do Carretão vivem em território demarcado entre os municípios de Rubiataba e Nova América, embora lutem pelo reconhecimento de áreas ancestrais excluídas da demarcação oficial. Sua organização política é baseada na decisão coletiva, com forte presença de lideranças femininas, educadores, agentes culturais e representantes políticos. Assim como Avá-Canoeiro e Iny-Karajá, os Tapuia reafirmam, no presente, o direito de existir como povo indígena em Goiás, mantendo viva a memória, a identidade e a luta pelo território.
Entre números, vozes e silêncios
Goiás abriga uma das maiores diversidades indígenas do país, mas ainda opera com políticas públicas pensadas para um indígena que quase não existe mais — o indígena idealizado, isolado, distante. A realidade é outra: uma população majoritariamente urbana, diversa, atravessada por violências históricas e ainda à margem das decisões que afetam sua própria vida.
Os dados do Censo escancaram a presença. As falas de Cleiton Tapuia e Eunice Pirkodi Tapuia revelam o custo dessa presença. Entre estatísticas e histórias, a pergunta que permanece é simples e incômoda: quando o reconhecimento deixará de ser apenas numérico para se transformar em política pública concreta?
Leia também: Indígenas em Goiás: sub-representação no Censo, medo de se declarar e violência histórica marcam realidade ignorada
Ruralistas e a tanatopolítica indígena: omissão que expõe povos a violência e morte

