Como as forças políticas vão se acomodar no governo Temer? E o próprio presidente, para onde levará o País? Qual o destino de Lula e do PT? Perguntas ainda difíceis de responder – mas sobre as quais é preciso exercitar

Michel Temer deve começar governo com receitas já conhecidas e alianças idem; já Dilma Rousseff vai deixar a Presidência da República para, em termos políticos, tornar-se apenas história: o próprio PT vai se encarregar de apagá-la | Foto: Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Michel Temer deve começar governo com receitas já conhecidas e alianças idem; já Dilma Rousseff vai deixar a Presidência da República para, em termos políticos, tornar-se apenas história: o próprio PT vai se encarregar de apagá-la | Foto: Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Elder Dias

Façamos um exercício de empatia. Seu Dalmir é um feirante que tem uma Brasília ano 75. Como o automóvel, ele já está com certa idade. E não dirige bem. Chegou a causar acidentes, ainda que de forma culposa, mas tem habilitação para transitar. O carro é velhinho já, mas o dono cuida dele com o zelo de quem não reúne condições de adquirir outro. Precisa se deslocar para o trabalho levando sua mercadoria, logo aquela Brasília é essencial.

Só que seu Dalmir tem um problema: para ir a uma determinada feira, todo sábado precisa cruzar uma barreira da policial rodoviária. E lá agora passou a trabalhar o filho de um colega que nunca gostou dele, por conta de disputa de fregueses em uma mesma praça. Recém-empossado depois da aprovação em um concurso, esse rapaz agora vê sua própria função como uma oportunidade para “vingar” o pai.

Então, em mais um dia rotineiro de seu deslocamento rumo à feira de sábado, seu Dalmir vai cruzar a barreira, mas é intimado a encostar a velha Brasília com a carretinha cheia de caixas de verduras. “Documentação do carro e habilitação, por favor”, diz o rapaz novato, seco e em tom inquisitório. Seu Dalmir reconhece o policial, mas, tranquilamente, lhe repassa o que foi pedido sem qualquer questionamento. Quando recebe de volta os papéis e já ensaia para sair, a autoridade o repreende: “Eu ainda não terminei. Esse automóvel é antigo demais e não parece ter condições de rodar. Precisamos verificar item por item.”

E assim começa a operação padrão. Pode me passar o extintor? Abre o capô, cadê o triângulo? (importante lembrar aqui que a Brasília, como o Fusca, tem motor traseiro) O pisca-alerta está funcionando? E este engate? Seta para um lado e para o outro. Vamos ver as setas dianteiras agora. De novo o capô, quero saber agora as condições do estepe. Luz de ré. Farol alto; agora, farol baixo. Esse escapamento não está furado, não? Hum… ué, mas e esse trincado aqui no para-brisa?

Era uma pequena ferida, de uns dez centímetros no canto superior esquerdo do vidro dianteiro, que uma pedrinha arremessada por um pneu de caminhão ocasionara havia um mês e meio. Não o atrapalhava a dirigir, mas seu Dalmir sabia que podia causar problema com uma fiscalização mais rígida. Não tinha era dinheiro para fazer a reposição. Ademais, já tinha passado por ali algumas vezes, como viu passar também outros condutores com o mesmo problema, diante dos patrulheiros, sem que ninguém notasse nada. Até porque, se não prestassem a devida atenção, seria difícil de notar mesmo. Mas não valia o mesmo para aquele policial e sua revista padrão. Que aproveitou o momento para lhe dar uma lição de legislação, típica de ex-concurseiros recém-nomeados:

—Infração gravíssima. Está na Resolução 216/06 do Contran e no inciso XVIII do Artigo 230 do Código de Trânsito Brasileiro.

E foi assim que seu Dalmir foi multado e teve o documento do carro recolhido. A história é fictícia, mas serve para guardar alguma ligação com outra da vida real. Basta ler agora, novamente, os parágrafos acima sob a ótica do processo de impeachment.

O iminente afastamento da presidente Dilma Rousseff (PT), que vai ocorrer nesta semana, provavelmente na quarta-feira, dia 11 de maio, reflete muito do caso do fictício seu Dalmir. E aqui não vai nenhum juízo de valor sobre ser ou não “golpe” (muitos consideram erradamente que “golpe” seja obrigatoriamente a tomada do poder pela força, de forma literal): o fato é que a queda da petista se dá muito mais pelo “conjunto da obra”. No caso de Dalmir, teriam pesado nesse pacote muito mais ser mau motorista, haver se envolvido em acidentes, possuir um carro velho e ter uma rixa com o pai do policial do que o fato em si que o afetou — o trincado no para-brisa.

Discurso radical de Jair Bolsonaro vai perder  força com saída do poder do arqui-inimigo PT | Foto: Renan Accioly / Jornal Opção
Discurso radical de Jair Bolsonaro vai perder
força com saída do poder do arqui-inimigo PT | Foto: Renan Accioly / Jornal Opção

Em meio a tudo por que passou o governo Dilma, a crise econômica de grande vulto serviu de contexto e pretexto para o erguimento da oposição derrotada nas urnas. O quadro todo mostra uma fragilidade não sanada de nossa democracia imatura. É como se o presidencialismo de coalizão “precisasse” extirpar Dilma, ainda que abusando da autoridade e por meio das letrinhas miúdas da lei. Se não há como condená-la por má gestão, ou promessas não cumpridas, muito menos por corrupção (nenhum delator preso na Operação Lava Jato, até o momento, falou em algum ato ilícito da presidente que a favorecesse de modo direto), que venham as pedaladas fiscais.

Mas encare-se esse grande preâmbulo apenas como isso: um preâmbulo. A partir deste ponto do texto, vamos colocar Dilma no passado e questionar: o que vai ser do Brasil a partir de agora? E para onde vão os seus principais atores políticos? Qual o destino dos principais partidos envolvidos?

Comecemos então com o novo presidente da República, Michel Temer. Sua plataforma de governo, chamada Ponte para o Futuro, já tem seis meses de existência. O que denota que ele tinha ciência de que tudo isso poderia chegar onde chegou – e aqui você pode chamá-lo, à escolha, tanto de precavido como de conspirador.

Antes de prosseguir, parênteses interessantes: Temer será o terceiro peemedebista não eleito a se tornar presidente, depois de José Sarney (1985-1990) e Itamar Franco (1992-1994). Curiosamente, o único que o partido elegeu de fato – embora por eleição indireta – nunca chegou a governar: Tancredo Neves morreu depois de ser internado às vésperas da posse.

Ciro Gomes tem feito a lição de casa para herdar de Lula o posto de referência da esquerda| Foto: reprodução
Ciro Gomes tem feito a lição de casa para herdar de Lula o posto de referência da esquerda| Foto: reprodução

Voltando ao novo mandatário, na confecção de sua equipe, o peemedebista já decepciona: busca as velhas soluções, como os clubes em baixa que trazem craques veteranos para abrandar a fúria da torcida. De Henrique Meirelles, o ex-presidente do Banco Central na era Lula, ele quer a ortodoxia da economia, que deu certo no governo do PT pelo fato de o País entrar em uma maré positiva nas finanças, com o crescimento exponencial da negociação de commodities. Isso não significa, porém, que as medidas serão boas em um cenário recessivo como o atual.

No mais, Temer busca acomodar forças de vários partidos para garantir a maioria no Congresso. E, assim, já dá a todos a mesma senha que o PT passou: votar com o governo por conta de cargos – a questão republicana que se dane. Prova dos desmandos que isso pode causar é a possibilidade de nomear o pastor da Igreja Universal do Reino de Deus Marcos Pereira, presidente nacional do PRB, para o Ministério da Ciência e Tecnologia.

Em seu governo, Michel Temer terá de lidar com a sanha de poder do PSDB, que se baseia na promessa do presidente de não buscar a reeleição para, assim, apoiá-lo. Ora, não tem nada mais incerto do que qualquer compromisso feito agora, em tal cenário de turbulência: afinal, se Temer for um sucesso total e superar a grande rejeição, nem ele terá como fugir dessa possibilidade.

Mais do que se assegurar da desistência prévia de quem nem começou a governar, seria preciso o PSDB dar uma olhada nos próprios quadros – ou no que restou deles. O candidato derrotado de 2014, o senador Aécio Neves, é hoje um arremedo de político: perdeu o “timing” da liderança do processo de impeachment e seu nome aparece em uma de cada duas delações premiadas da Lava Jato; o também senador José Serra e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, estão enrolados com os escândalos do partido em seu Estado; o governador Beto Richa foi abatido após sua reação tempestuosa contra os professores da rede pública, no Paraná; e Marconi Perillo, em Goiás, e Pedro Taques, em Mato Grosso, carregam o peso político de governarem Estados considerados periféricos.

Aécio Neves perdeu o timing e não deve ter  nova chance de chegar ao poder no Planalto | Foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado
Aécio Neves perdeu o timing e não deve ter
nova chance de chegar ao poder no Planalto | Foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado

Querendo que o próximo encontro com as urnas fosse “ontem” está Marina Silva (Rede), a atual líder de intenções de voto em todos os institutos. E Exatamente por isso não cola a veemência com que ela e a Rede Sustentabilidade, seu partido, pedem novas eleições. Na verdade, a disputa de um novo pleito só confirmaria uma certeza: a de que ela não consegue dar suporte para si mesma. Marina teve a eleição de 2014 em suas mãos, mas passou a mandar sinais tão enviesados que perdeu a credibilidade tanto dos que não queriam nem Aécio nem Dilma como até mesmo dos que realmente a admiravam por ela mesma. A cereja do bolo — a que detonou qualquer seriedade em ver nela a “nova política” que pregava — foi prometer o 13º salário ao Bolsa Família no último debate.

Como possibilidade ainda no campo da centro-esquerda se encontra um redivivo Ciro Gomes. Seu partido, o PDT, já o tem abertamente como pré-candidato à Presidência. E, político experiente que é, o cearense vai fazendo sua lição de casa. Durante o processo de paixão e morte do governo Dilma, Ciro se fixou, entre os não petistas, como a maior referência política dos que eram contra o impeachment da agora quase ex-presidente. Seu discurso político-econômico é ousado, na contramão do que pede o mercado; é fluente e de uma estampa moderna repaginada. Mais que isso, usou seu DNA ligado ao coronelismo nordestino como forma de compor um personagem popular: se tornou, pelo menos nas redes sociais, o “Cirão da Massa”. Sabe que haverá um vácuo na esquerda deixado pela perda quase certa de Lula e aposta que pode ocupá-lo.

Bolsonaro e o PT
O Brasil pós-Dilma vai ver duas forças totalmente opostas lutando por algum protagonismo: uma direita em ascensão e uma esquerda ferida. O índice que alcança uma figura como Jair Bolsonaro (PSC) nas intenções de voto só mostram o quanto está perdida, no brasileiro, a noção de valores democráticos. Encontrar jovens pedindo por autoritarismo, mais até do que por autoridade, é um sinal de que alguma coisa deu errado na educação – e isso também tem a ver com quem esteve no poder durante as últimas décadas, inclusive o PT.

Em princípio, com a saída dos “comunistas” do poder e a consequente perda de poder do que chamam de Foro de São Paulo, sobra muito pouco de substância para que o “Bolsomito” sobreviva. A tendência, apesar das pesquisas eleitorais, é que seu radicalismo agora sem rival poderoso acabe por esmaecer o personagem.

Saída para o PT talvez seja Lula se tornar  menos candidato e mais “ícone” do partido| Foto: José Cruz / Agência Brasil
Saída para o PT talvez seja Lula se tornar
menos candidato e mais “ícone” do partido| Foto: José Cruz / Agência Brasil

Para o fim do texto ficou o PT. E Lula — até porque de Dilma Rousseff não mais se ouvirá falar como política, a não ser nos livros de história e em algum quadro de stand-up. O próprio partido se encarregará do apagamento da ex-guerrilheira e, daqui a pouco, ex-presidente.
E este é o grande problema do PT. Tudo se apaga, todos se vão, menos Lula. Um partido que nasceu para ser diferente — o que demonstrou (e demonstra) pela dinâmica de suas tendências internas, cada qual com suas nuances — tornou-se apenas mais um porque, além de repetir os escândalos das demais siglas, virou a tribo de um cacique só. Lula passou a reinar no PT como qualquer outro dono de partido. A ponto de achar que, sem qualquer problema, reelegeria Dilma, seu “poste”, naquele cenário conturbado. Reelegeu, mas o custo foi caro.
O PT precisa renascer. É obrigatória, para si mesmo, sua reinvenção. Em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva possa até servir como um Leonel Brizola serve até hoje ao PDT. Como um estandarte, se for resgatado do poço de investigações em que foi enredado. Mas não mais como político. A hora de Lula voltar passou. Seria em 2014, para não deixar o projeto de poder morrer quando já havia claros os sintomas de possível colapso.

De resto, sobra de saldo um Brasil a ser reconstruído. Se as instituições hoje demonstram força, isso talvez não seja mais do que um tigre de papel, à semelhança do próprio gigante que chegou a 6ª potência do mundo. Já há dúvidas, por exemplo, sobre a pertinência de uma Constituição que está cada vez mais para um livro de utopias do que para uma caminho a seguir. Mas não foi a Carta Magna a errada: os políticos a fizeram se tornar irreal.