Nova lei de doações para universidades é avanço, mas não pode desobrigar governo
21 outubro 2017 às 10h57

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Idealizada pelo senador goiano Wilder Morais, a mudança é elogiada por dirigentes e pesquisadores de universidades. Reitor alerta que o poder público não pode transferir sua responsabilidade

Se houvesse uma pesquisa com a população goianiense sobre quem teria sido Altamiro de Moura Pacheco, infelizmente menos de 5% dela saberia responder. Talvez uma porcentagem maior se lembrasse de que há um parque estadual, na região norte da capital, com seu nome. Não adiantaria procurar o perfil de Altamiro na Wikipédia. Na enciclopédia virtual, alimentada pela comunidade de internautas, estão várias personalidades goianas, de políticos poderosos a empresários bem-sucedidos, de cantores famosos a bandidos memoráveis – Leonardo Pareja tem seu verbete em português e espanhol.
Altamiro de Moura Pacheco morreu no mesmo ano em que Pareja foi assassinado no presídio, em 1996. Sua jornada, porém, não foi efêmera nem marginal. Ao contrário, foi longa e frutífera: médico, empresário, agropecuarista e escritor, morreu aos 100 anos, depois de ter se tornado uma das pessoas mais ricas do Estado. Era o proprietário da terra que serviu à construção do Aeroporto Santa Genoveva, na capital, doando quase mil lotes para a obra. Também concedeu dezenas e dezenas de áreas para instituições de caridade. Participou da constituição de associações importantes, como a Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura (SGPA) e a Academia Goiana de Letras (AGL).
A última de suas doações foi o casarão onde morou, na esquina da Rua 2 com a Avenida Araguaia, no Centro, à AGL. Altamiro deixou para a entidade todos os pertences que lá estavam, incluindo 10 mil livros de sua biblioteca. O local se transformou na Casa Altamiro e atualmente sedia a academia. De todos os seus legados, nenhum se compara à transformação de sua fazenda na grande reserva ambiental do município – como era seu sonho –, com mais de 3,1 mil hectares e também incluindo partes de Nerópolis, Goianápolis e Teresópolis em sua abrangência. Ironicamente, o parque só ganharia seu nome após ser rebatizado, em 2001 – criado em 1992, com seu ex-proprietário ainda vivo, anteriormente se chamava Ulysses Guimarães, em homenagem ao político legendário.
Não somos uma Nação formada por gente bem-sucedida tão disposta a fazer ações desse tipo. Por isso, Altamiro pode ser colocado como um benemérito raro, como pouquíssimos na história de Goiânia, de Goiás e do Brasil. Hoje, ele teria um instrumento a mais para sua generosidade: a Lei 13.490/2017, sancionada pelo presidente Michel Temer (PMDB) no último dia 10. Nascida de projeto de lei do senador Wilder Morais (PP-GO), ela abre as universidades para receber montantes direcionados a projetos e pesquisas específicos, de comum acordo entre o doador e a instituição beneficiada.
Doar a instituições de ensino e pesquisa é uma prática comum em vários países, especialmente nos mais desenvolvidos. Nos Estados Unidos, é um hábito de grandes personalidades e empresários prósperos. Milionários doam fortunas para estudos que lhe interessam diretamente ou não, além de construir prédios do próprio bolso nas instituições em que se graduaram. Como recompensa, muitas vezes têm seu nome eternizado na fachada. É o caso, por exemplo, do Johns Hopkins Hospital, um dos mais importantes do mundo, em Baltimore (EUA), que foi fundado em 1873 com uma doação – US$ 7 milhões, a maior até então – do empreendedor que lhe deu o nome. Dois anos depois fundou-se, também com seu nome e seu dinheiro, uma das universidades privadas mais importantes em pesquisas acadêmicas.
O professor José Clecildo Barreto Bezerra, ex-diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg), destaca a importância de a lei ter sido proposta por um parlamentar goiano. “Foi bom que a lei tenha saído de Goiás. Nem vou falar de ‘divisor’ de aguas, prefiro ver isso como um ‘unificador’ de águas”, diz. Pelo cargo que ocupa, mas também pela trajetória acadêmica, Clecildo é alguém que sente no dia a dia a falta que faz uma proximidade maior da universidade com a sociedade civil. Ele fez seu doutorado em Ciências Naturais na Universidade de Hamburgo, na Alemanha, com a qual procura manter um vínculo. “Procuro manter uma ligação com o país, sempre que posso ajudo quem quer ir para lá, de alguma forma, por meio de meus contatos”.
Em janeiro, Clecildo vai assumir a direção do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da Universidade Federal de Goiás (UFG), um dos centros de pesquisa mais importantes da instituição. Ajudo coisas relacionadas com a Alemanha, faço isso no sentido de dar o retorno por gratidão. Vislumbrando a possibilidade trazida pela lei, ele faz um paralelo com um drama nacional. “Imagine se alguém financiasse um prédio para pesquisar o ‘Aedes aegypti’. Um centro avançado para fazer avançar todos os estudos especificamente contra o mosquito e seus males”, exemplifica. O “Aedes” transmite o vírus de doenças como a dengue em todos os seus tipos, a zika e a chicungunha. As epidemias flagelam o Brasil há décadas e certamente precisariam ter mais atenção da ciência em um país tropical.
A nova lei, analisa o professor, vai deixar a universidade mais perto do mercado, mas, para ele, é possível, se aproximar “sem perder a ciência fundamental”. “Muita gente acha que é uma ameaça a universidade ter doador, mas há um potencial imenso. Fiz pós-doutorado na Califórnia, na Universidade Estadual de San Diego, e conheci um doador de US$ 5 milhões, de 84 anos. Era um bilionário, mas não era alguém que queria, com isso, “comprar” a universidade”.
Clecildo divide em três os tipos de doadores que podem vir a existir. O primeiro seria aquele que visa trazer, com seu ato, um retorno social e científico sem um fim específico; outro é o que busca inovação ou transferência tecnológica; e o terceiro, o que faz uma doação sentimental, movido por uma motivação particular. “Há pessoas de famílias ricas que perderam o filho por uma doença e resolvem usar seus recursos para investir em pesquisa e tratamento daquele mal”.
Mas será que a nova lei é daquelas que “pegam”? Em outras palavras, as universidades vão ter mesmo retorno? Clecildo acredita que é preciso que, além das próprias universidades, o poder público também se mobilize em torno do potencial que se abre. “Aqui em Goiás, podemos ter um trabalho conjunto que vise criar, por exemplo, um polo de pesquisa em música popular. Imagine que os cantores sertanejos de Goiás se unam para patrocinar a Escola de Música e construir um centro de pesquisa de música regional. Se fazem doação para uma escola de samba, por que não fazer para uma universidade?”, questiona.
Formando em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o deputado Thiago Peixoto (PSD) tem sua trajetória de pós-graduação muito identificada com os propósitos da mudança na legislação. Ele complementou seus estudos na Universidade da Califórnia (EUA), em Gerenciamento de Projetos. Obviamente, ele entende a lei como “muito positiva”. “Existe um distanciamento muito grande academia e iniciativa privada. A academia não contribui com a economia. Com financiamento dessa forma, o mercado se fortalece. Vai virar uma prática comum empresas financiarem projetos de inovação. Grandes universidades internacionais já funcionam assim e são financiadas completamente sem recurso público”. Ele cita universidades das mais conceituadas dos EUA – Harvard, Yale, Columbia etc. – que trabalham muito mais com doação, quase sem recurso público. “São as que mais geram patentes, mais inovadoras”, afirma.
Thiago cita um exemplo que lembra o ditado segundo o qual “santo de casa não faz milagre”. A Fundação Lemann [do empresário Jorge Paulo Lemann] tem um centro de estudos em Stanford que se dedica a estudos na área educacional. Já tem capital brasileiro financiando pesquisa fora do País, porque não era possível fazer isso no Brasil. É muito provável que isso se faça agora. A lei pode, então, redimir o santo. Mas a elite goiana assumiria esse papel de benfeitora da educação e da ciência? “Tem um potencial muito grande, em especial para o agronegócio. Mas é preciso ser proativo nisso, é uma cultura a ser criada”, diz o parlamentar.
Reitores
O reitor da Universidade Federal de Goiás, Orlando Afonso Valle do Amaral, é outro acadêmico que vê a nova lei como um avanço importante. “É algo já comum em outros países, onde há a cultura de pessoas e empresas tomarem esse tipo de atitude. Isso ajuda muito o orçamento das instituições”, diz. A lei proposta por Wilder foi debatida pelo colegiado dos reitores na Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e, segundo o gestor da UFG, foi considerada “bem-vinda”. “Será benéfico para todos. Vejo que seria bom para as empresas e para a sociedade como um todo, para que começassem a perceber a importância do desenvolvimento científico e tecnológico”.
Orlando foi antecedido e será sucedido por Edward Madureira Brasil na Reitoria da UFG, que dirigiu a instituição por oito anos, entre 2006 e 2014. O futuro reitor tem opinião bastante semelhante à de seu colega. “É um instrumento que pode ajudar. Apesar de não termos tradição com esse tipo de relação das pessoas com a universidade, é um ponto de partida. Já tivemos casos no País de pessoas que, além de doar seu patrimônio para a universidade, tiveram de pagar o imposto de transferência, pela inexistência de uma lei”, lembra. Vencedor de consulta à comunidade universitária este ano, ele assumirá o reitorado novamente em janeiro e diz que vai fazer sua para que a nova lei contemple a UFG. “Vamos trabalhar para isso. As doações precisam vir para projetos específicos, como algum laboratório na área de saúde ou engenharia, por exemplo”.
Edward aposta que uma forte associação de ex-alunos pode catalisar o processo. “Há espaço para isso entre os ex-alunos e também com os empresários. Precisamos que essa cultura seja desenvolvida”.
Consenso é de que a lei não pode ser uma “muleta” para o poder público
A Lei 13.940, na verdade, é uma alteração de um artigo, o de nº 53, de outra, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Nos entrevistados, há dois consensos em torno da mudança proposta pelo senador Wilder Morais, aprovada em plenário e sancionada pela Presidência. O primeiro é de que a mudança é benéfica para as instituições o fomento da pesquisa no País. O segundo é de que o governo não pode usar a lei como forma de repassar sua obrigação à iniciativa privada.
Usando seu exemplo sobre um eventual prédio destinado ao estudo do “Aedes aegypti”, o diretor eleito do IPTSP, José Clecildo Barreto Bezerra, levanta uma preocupação: “Vamos supor que alguém realmente doasse o dinheiro equivalente para a construção de um prédio para a pesquisa e também comprasse os equipamentos. Alguém teria de fazer a manutenção, o custeio de tudo isso. Nessa parte, o governo não poderá fugir de seu dever com a universidade pública”, diz. De qualquer forma, ele é taxativo quanto à positividade da nova regra. “Não vejo a lei com o viés de intencionar a privatização da universidade. Então, desde que ninguém a interprete – e é bom ser profilático aqui – como um caminho para uma privatização, será sempre é um ótimo caminho”.
O reitor Orlando Amaral pontua também o mesmo ponto. “O único cuidado que a gente deve ter – e comentei isso com o próprio senador Wilder – é não achar que essa possível receita adicional possa servir de pretexto para reduzir o orçamento das universidades e das pesquisas”, lembra o reitor da UFG, Orlando Amaral. O governo Temer tem restringido o dinheiro para as universidades. De 2015 – último ano completo de Dilma Rousseff (PT) no poder – para 2017, o orçamento para investimentos repassado pela União caiu 75%. “Isso de maneira alguma pode desobrigar o governo de seu compromisso com o custeio”, concorda seu sucessor, o reitor eleito Edward Madureira. l