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[1] Cobal é a sacola de itens, como comida, produtos de higiene e roupas, que os familiares enviam aos detentos para complementar o que é fornecido pela prisão, prática muitas vezes necessária devido à insuficiência da alimentação no local.

A cor amarela, reluz alegria e nos remete aos dias ensolarados. Diferente desse tom, que tinta as vestimentas das 97 mulheres vistas pela equipe de reportagem do Jornal Opção, na Penitenciária Feminina Consuelo Nasser, localizada no Complexo Prisional Policial Penal Daniella Cruvinel, em Aparecida de Goiânia. Foi juntamente lá, que uma delas disse que mulher presidiária é mulher esquecida.

Cerceada de liberdade, pagam a maior de todas as penas: a ausência de entes amados. Antes, a visita era semanal, passou-se a ser mensal e com isso, os próprios entes queridos foram normalizando e se distanciando. Eles seguiram suas vidas, enquanto a mulher esquecida como disse J.L.S [que pediu para não ser identificada] conta os dias, as horas e até os segundos para se livrarem da invisibilidade.

J.L.S. diz que o cárcere faz com que deixem de ser mulheres em vários sentidos | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

J.L.S é formada em Psicologia, tem 35 anos e uma filha de 18, disse ter comprado até roupas amarelas, antes de sair o mandado de prisão, por ter assassinado o ex-marido. Se sentindo “preparada” para o que hoje, passados quatro anos e meio diz “ninguém está preparado, nem quem já passou por esse lugar. Aqui é um lugar muito complicado e muito triste”.

Na visão dela todas as mulheres encarceradas precisam é de afeto para retornarem transformadas à sociedade. “São mulheres que sofreram abandono nas ruas, passaram a vida, às vezes, sem estrutura familiar e sem nenhuma oportunidade”. Ainda segundo J.L.S. mesmo tendo que pagar pelo crime, precisam deixar de ser mulher em vários sentidos.

A maranhense, Leonete Lima, de 45 anos está cumprindo pena também por assassinato. “Minha família não é do crime e eu vim parar nesse lugar. Tenho quatro anos aqui, já sofri muito, tenho aprendido bastante. Aqui é um lugar que você aprende a valorizar o que você não valoriza lá fora. Hoje eu não me preocupo com roupa, carro, casa, marca – só em me alimentar bem” diz emocionada.

Nos trabalhos diários da cozinha, Leonete não vê a hora de sair da penitenciária. O que te chama cotidianamente é a esperança de encontrar vivo, o filho Mateus Henrique Cardoso da Silva, de 29 anos. Usuário de crack roubou o próprio pai. Após ser expulso de casa saiu perambulando pelas ruas em São Paulo. “Estou orando em Deus para sair o mais rápido possível. Trabalhando e me mantendo firme no trabalho para reduzir a minha pena. Sair fora, para resgatar o meu filho e voltar a viver com ele. Trazer ele pra sociedade de novo. Essa é a minha maior esperança”, diz emocionada.

Leonete diz que hoje não se preocupa com roupa, carro, casa… | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

De Acordo com o anuário 2025, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública estão presas 53.880 mulheres em sistemas prisionais. Esse levantamento faz um paralelo, entre os dados estatísticos de 2024 e 2023. Paraná, no sul do Brasil, é o estado com maior número de mulheres encarceradas com 9.852, seguido de São Paulo com 9.404 e Rio de Janeiro com 3.565.

O Estado de Goiás aparece em 9º lugar com 1.989 presas (2024). Um ano antes, o número era de 1.522 – isso, indica um crescimento de 23,48%. Em 2022, quando o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) implantou o projeto “Amparando Filhos” diagnosticou que 78% da população carcerária feminina eram mães. Esse número já indica o alto índice de mulheres, que exercem a maternidade mesmo em situação de privação de liberdade.

Existe a resolução nº 369/2021 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que estabelece às lactantes, mães com filhos menores de 12 anos e mulheres com deficiência podem ter a prisão substituída por prisão domiciliar. “Goiás cumpre com bastante rigor a decisão do Supremo Tribunal Federal. Uma vez identificada as situações, que se amoldam as determinações do STF e CNJ, a mulher (mãe) é solta para responder ao processo em liberdade, permanecendo, ao contrário presa, nas hipóteses que há outros requisitos legais para a manutenção”, explica o juiz, Fernando Chacha.

O número de grávidas e lactantes presas em Goiás vem caindo nos últimos anos, com registros de sete grávidas em 2022 e cinco em 2023. Quase metade dessas mulheres (46%) nunca recebeu visita dos filhos ou familiares durante o cumprimento da pena é o que indica o TJGO.

O diretor-geral da Polícia Penal, Josimar Pires, diz que as mulheres presas recebem menos visitas, principalmente, de seus cônjuges. “Se observa é que as mulheres têm maior capacidade de manter o espírito de cuidado e acompanhamento em relação a seus familiares presos, dedicando-se com maior atenção e raramente os abandonando. Por outro lado, os homens, quando suas esposas ou familiares mulheres são encarceradas, tendem a seguir com suas vidas sem demonstrar a mesma preocupação em oferecer acompanhamento e proteção”, argumenta.

“Infelizmente, esta situação é bastante peculiar no processo de prisão das mulheres. Há, por parte de alguns familiares, e, também, companheiros ‘esquecimento’ de sua prisão, acabando por punir, inclusive, na via transversa a parte mais vulnerável da situação toda: os filhos”, evidencia Fernando Chacha.

O que levam mulheres para atrás das grades?

De acordo com a advogada criminalista, Rafaella Ferreira não há estudos suficientemente específicos em relação às mulheres encarceradas. “Somos invisibilizadas até mesmo nesse sentido. Em 2017, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou o Relatório Temático sobre Mulheres Privadas de Liberdade”, destaca.

A conselheira penitenciária de Goiás, Rafaella Ferreira | Foto: (Arquivo Pessoal)

“Muitas das mulheres encarceradas estão presas por crimes cometidos a mando do companheiro, ou seja, por solicitação dele. Ocorre também que, com as mudanças no papel de gênero ao longo dos anos, várias mulheres se tornaram chefes de família e acabaram recorrendo a práticas delituosas como forma de sustento, explica Rafaella, que também é presidente da Comissão de Processo Penal da OAB/GO e conselheira penitenciária de Goiás.

Segundo levantamento do TJGO, entre os principais crimes que levam as mulheres à prisão estão tráfico de drogas (43%), roubo (18,3%) e homicídio (14%). “Observa-se um abandono considerável das mulheres encarceradas por suas famílias, além de um abandono do Estado em relação à saúde feminina e à produção de estatísticas. A ausência de dados dificulta a resolução de problemas”, conclui Rafaella Ferreira.

De acordo com a pesquisadora em Direitos Humanos pela UFG, Lina Rezende, o tráfico de drogas é o principal motivo que leva mulheres ao cárcere. “Ao entrevistar as mulheres encarceradas em regime fechado, ouvi relatos de como o tráfico surge como uma ‘opção viável’ diante da pobreza, da violência doméstica e da falta de acesso a direitos básicos”.

Lina Rezende, mestra em Direitos Humanos pela UFG | Foto: (Arquivo Pessoal)

“Muitas mulheres relataram que o envolvimento com o crime não ocorreu por uma decisão autônoma. Elas dizem que foi pela influência direta de companheiros e pela dinâmica de relacionamentos atravessados por violência doméstica, emocional e psicológica”, explica Lina.

A tocantinense, Soleni Maria de Oliveira de 39 anos é uma dessas mulheres que entrou para a criminalidade a “pedido” do marido. Ele cumpre pena por tráfico de drogas há 14 anos e ela está no cárcere por um ano. Mãe de dois filhos, o Marcones de 23 e a Sara de 16 e há cinco meses se tornou avó. Marisol é o nome da neta, que a faz chorar de soluçar, só de imaginar como deve ser o rostinho e os cabelos dela.

Como os familiares moram em Araguaína, no Tocantins, praticamente não recebe visitas. A última foi de um tio e primo, que a deixou até surpresa. Já dormiu encolhidinha no banheiro, em cela com nove detentas. Hoje se sente feliz em dividir um alojamento com as trabalhadoras da confecção. Dá valor a água quentinha e a cama, que não precisa mais dividir com ninguém.

Alojamento das trabalhadoras na Penitenciária Feminina Consuelo Nasser | Foto: Guilherme Alves

Só que a maior de todas as lições foi entender verdadeiramente o que é o amor. “Hoje aprendi, que se alguém me ama mesmo, nunca vai pedir para fazer algo de errado. Algo que me prejudica. O amor não é um perfume. Não é um beijo. Não é um eu te amo. Não é um carro. Não é uma casa. O amor não é isso. O amor é cuidado. E, hoje eu aprendi que ele não gostava de mim. Eu aprendi que todo aquele amor que ele dizia, que sentia por mim, não existia”.

Qual o índice de reincidência?

Com 12 anos, Bárbara Lueny entrou para a criminalidade. Em casa, sem estímulos para os estudos e com uma mãe usuária de drogas, diz que passou a normalizar o dinheiro fácil. “Dentro de casa mesmo, eu já sabia o que era a droga, o que era o crime. Cresci nesse ambiente, onde o meu irmão começou a roubar muito cedo”.

Bárbara hoje com 29 anos, solteira, tem dois filhos: Luiz Felipe, 9 anos, [mora com o pai] e Emanuelle, 2 anos, [com a avó materna]. Após um ano cumprindo a sua 2ª condenação por roubo diz ter se redescoberto dentro do cárcere. Está no 3º ano do ensino médio e sonha com o concurso público. “Mesmo diante do crime, do errado eu quero procurar o certo, porque eu já tenho filhos”.

Sem contato com o filho mais velho, desde que ficou presa pela primeira vez. Nesta última prisão entrou grávida e a caçula veio ao mundo, dentro do sistema prisional. Atualmente só recebe visita da irmã e desta filha, uma vez ao mês. “É chato, né? Mas, tomara que o governador ajude a gente nisso, né? Aumentar mais a visita dos filhos. Pois, sentimos muitas saudades”.

São 37 presas que trabalham neste sistema prisional com confecção. | Foto: Guilherme Alves

Sobre futuro, pensa em honrar os pais e dar um futuro melhor para os filhos. “Eu nunca vou esconder dos meus filhos o meu passado.  Não acho certo mentir para eles. Mas eu vou mostrar o caminho certo, o que os meus pais não me mostraram”.

Bárbara diz se levantar em cada nova visita da filha. Toda vez que vê os olhinhos dela agradece por estar viva. “Eu podia estar morta. Eu podia estar na cadeira de roda, na cama de hospital. Mas eu estou viva, estou presa. Estou trabalhando. A direção me proporcionou uma chance para me mudar”. Conta os segundos para a sua liberdade, prevista para 2030, quando Emanuelle vai ter sete aninhos e Luiz Felipe, 14.

O Brasil possui uma lacuna de dados técnicos sobre a reincidência criminal. Há alguns estudos realizados nos Estados brasileiros, mas não existem os dados nacionais oficiais e em atualização anual, especialmente no Sistema de Informações Penais do Ministério da Justiça ou do Conselho Nacional de Justiça.

Segundo Lina Rezende de análises multivariadas, especulam-se variações entre 40% e 70% de reincidência. “No entanto, o que observei em minha pesquisa é que o ciclo de criminalização se mantém, sobretudo porque o cárcere não resolve as causas estruturais e tampouco existem políticas públicas efetivas voltadas aos acompanhamentos dos egressos e egressas do Sistema Prisional”, explica.

Especulam-se variações entre 40% e 70% de reincidência, no Brasil. | Foto: Guilherme Alves

De acordo com Josimar Pires, a Diretoria-Geral de Administração Penitenciária investe na justiça restaurativa, em grupos reflexivos direcionados às mulheres privadas de liberdade e nas iniciativas voltadas para formação profissional, trabalho e empreendedorismo. “Os projetos de ressocialização, formação educacional e qualificação profissional são instrumentos fundamentais para transformar destinos e impactar positivamente as vidas de pessoas que necessitam de oportunidades e direcionamento”, destaca.

“Atualmente, no Complexo Prisional Feminino Daniela Cruvinel, que possui a maior concentração de mulheres privadas de liberdade em Goiás, cerca de 50% delas têm acesso a oportunidades de trabalho e estudo. Essa média supera a registrada entre a população carcerária masculina, evidenciando a relevância atribuída pela administração penitenciária de Goiás aos esforços de ressocialização das mulheres em situação de cárcere”, complementa.

Lina Rezende explica que na prática, as mulheres em Goiás ficam privadas de liberdade, em média, entre cinco e oito anos, especialmente, quando condenadas por tráfico de drogas. “Em minha pesquisa, identifiquei que algumas já estavam encarceradas há mais de sete anos, aguardando progressão de regime ou enfrentando barreiras burocráticas no acesso a benefícios previstos em lei. Essa morosidade e dificuldade de acompanhamento jurídico, reforça que o sistema prisional funciona perfeitamente para os exatos objetivos pelos quais foi criado: exclusão, criminalização da pobreza e controle das classes subalternas por meio da marginalização” finaliza.

Amparando Filhos

O programa foi agraciado com o Prêmio Amaerj de Boas Práticas | Foto: Divulgação (TJGO)

 O lema do “Programa Amparando Filhos Transformando Realidades com a Comunidade Solidária” é de que nenhuma criança deve herdar a pena da mãe. É uma questão de justiça e responsabilidade social tentar romper com um ciclo ruim e semear um futuro melhor. A iniciativa existe há 10 anos e foi idealizada pelo juiz Fernando Augusto Chacha de Rezende, do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO).

O Amparando Filhos consiste em uma série de medidas e articulações interinstitucionais para proteger e apoiar crianças e adolescentes, filhos de mulheres presas. O intuito é desenvolver habilidades individuais, interpessoais, psicológicas e sociais. Tudo isso, par a superação dos traumas relacionados ao encarceramento das genitoras, evitando-se a repetição do crime na história familiar.

“A partir da necessidade de aproximação do poder judiciário com situações latentes de incertezas relacionadas aos filhos de mães presas é que surge o programa”, explica o idealizador e juiz Fernando Chacha.

“Onde, como e com quem ficam após a repentina ruptura dos laços mães/filhos, em função do cumprimento de penas restritivas de liberdade”, foram perguntas, que norteiam o programa.  Ele é uma articulação das redes de proteção, em parceria com o Ministério Público e a sociedade civil organizada.

Selo Unicef

Em 2021, o programa foi agraciado com o Prêmio Amaerj de Boas Práticas. No mesmo ano, recebeu, do Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Selo Unicef, que visa reconhecer, incentivar e disseminar mundialmente as políticas públicas em prol da garantia dos direitos de crianças e adolescentes.