Todas as manhãs, Martin Kaul vai de bicicleta até a redação de um dos mais importantes jornais europeus, o “taz”, onde trabalha. No trajeto, em frente à prefeitura da cidade de Berlim, ele avista de 100 a 200 refugiados ucranianos tentando se registrar – principalmente mulheres e crianças. Com um milhão de imigrantes ucranianos dentro da população total de 11 milhões de estrangeiros na Alemanha, os ucranianos deixaram o vigésimo primeiro lugar na lista de imigrantes mais numerosos e alcançaram o segundo lugar em apenas oito meses (atrás apenas dos turcos). 

Martin Kaul é repórter e editor no Tageszeitung (taz). O jornalista cobre protestos, política, movimentos digitais e sociais, e foi eleito pelo júri do “Medium Magazin” como um dos três jornalistas do ano de 2015 na categoria política. Em entrevista ao Jornal Opção, Kaul afirmou que pode-se perceber os sinais da aproximação do conflito no país em várias áreas. Alemanha e Ucrânia estão separados por 1.500 quilômetros, a mesma entre Goiânia e Porto Alegre, mas os países têm relações comerciais estreitas, com interdependência no setor de alimentos, industrial e principalmente energético.

Refugiados

Kaul cobre a imigração na Alemanha desde 2015, com a crise dos refugiados húngaros. Segundo o jornalista, a situação atual é muito diferente. “Aqueles que chegaram da Hungria receberam atenção internacional por terem sido tratados muito mal dentro de outro país que também faz parte da União Europeia. Houveram represálias por conta daquele momento. Por isso, mesmo que partidos conservadores digam que a capacidade de receber novas pessoas está chegando ao fim, há o acolhimento dos refugiados ucranianos.”

Entretanto, imigrantes de outros países continuam a chegar. “Existem guerras em outros lugares do mundo também; recebemos refugiados da Síria, Afeganistão, diversos países da África. A Alemanha não tem uma lei específica para a imigração, não há caminhos claros para que essas pessoas possam trabalhar, mesmo que exista falta de mão de obra em várias áreas”, disse Kaul. O jornalista afirma que, com o rigoroso inverno europeu se aproximando, e um consenso sobre o assunto distante, podem se repetir as imagens de imigrantes em condições degradantes.

Martin Kaul | Foto: Reprodução

Inverno

A principal fonte de energia para aquecimento das casas alemãs durante o inverno é o gás natural. Antes da guerra, 55% de todo o gás usado no país tinha origem russa, que viajava principalmente pelo gasoduto Nord Stream 1, no Mar Báltico. Após um ato de sabotagem que destruiu o gasoduto Nord Stream 2 e sucessivos cortes no fornecimento do Nord Stream 1 (supostamente devido a manutenções), os estoques de gás natural na Alemanha estão reduzidos. Na última semana, 50 metros do gasoduto ainda operacional também foram destruídos. Investigações estão em curso, mas a explicação mais provável pelos ataques é a represália às sanções econômicas impostas à Rússia pela União Europeia, além de pressão para que se encerre o apoio militar da Alemanha às tropas Ucranianas.

A situação gerou medo na população e simboliza a aproximação concreta da guerra, disse Kaul. “É uma questão ideológica, econômica, ecológica e de soberania. Os ataques a outras instalações de infraestrutura alemãs estão mais próximos (os vazamentos em investigação foram identificados próximos à ilha dinamarquesa de Bornholm, a 130 quilômetros da Alemanha). Eu percebo uma mudança em relação ao tipo de conflito que já era familiar para os alemães: a confrontação está deixando de ser indireta como na Guerra Fria e começando a se tornar mais ‘quente’.”

O corte no suprimento do gás natural também afetou a geração de eletricidade, já que 15% da energia alemã vêm de termelétricas movidas à gás. Somada à crise inflacionária mundial, o aumento na energia fez com que a inflação saltasse de 1,7% por ano em 2020 para 10,4% em 2022. A busca por outras fontes de energia fez com que o país aumentasse seu consumo de combustíveis fósseis, contrariando compromissos internacionais para combate das mudanças climáticas, bem como obrigou a Alemanha a recorrer a fornecedores no Oriente Médio, como o Qatar, o que contraria setores progressistas do Congresso alemão. 

Economia

Amanda Toiansk é goiana, desenvolvedora de softwares e vive em Frankfurt desde 2020. Ela afirmou que, desde que chegou ao país, a principal mudança no cotidiano em função da guerra foi o aumento nos preços, principalmente de comida, gás natural e combustível. Lembrando que vive em uma das cidades com maior custo de vida do país, Toiansk exemplificou: “Um quilo de frango foi de 5 para 12 euros em 3 meses; além disso, a invasão prejudicou a produção agrícola da Ucrânia, de forma que arroz e grãos são difíceis ou impossíveis de se encontrar.”

Outros itens que aumentaram de preço em Frankfurt são o diesel, que foi de menos de 1 euro no início do ano para 2,10 hoje; e o gás natural – “Eu pagava €$80 por mês no início do ano em gás natural e a partir de dezembro vamos para €$250.” Além disso, o aumento na taxa de juros com o propósito de controlar a inflação pode aumentar o endividamento da população. “Juros de financiamento ou crédito sempre foram muito baixos aqui”, disse Toiansk. “No início do ano, meu banco cobrava juros de 2% ao ano no ‘cheque especial’. Essa taxa hoje é de 7%.”

No dia 20 de fevereiro, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a sensação de risco foi maior do que nunca, disse Toiansk. Naquele momento, as pessoas pensavam que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) mobilizaria tropas e a Alemanha decretaria lei marcial. Entretanto, desde então, as pessoas podem ter se acostumado com a situação, segundo Toiansk, pois a ideia de uma guerra mundial parece ter sido descartada. 

“No momento, o maior medo é de não ter gás ou eletricidade o suficiente no inverno. O órgão ‘Operador Nacional do Sistema’, que controla a distribuição de energia elétrica, anunciou que poderá ser feito um rodízio de eletricidade”, afirmou Toiansk. O governo alemão também solicitou aos habitantes que racionais o consumo de gás. No momento em que concedeu a entrevista, Martin Kaul afirmou: “Nesta época do ano o aquecedor ficava ligado o tempo todo. Neste momento, está desligado – troquei por casaco e cobertores.” 

Amanda Toiansk | Foto: Acervo Pessoal

Para combater a crise financeira provocada pela inflação, pelo corte de suprimento de energia e pela chegada dos refugiados, o governo alemão adotou diversas medidas. Tickets de trem válidos para todo país de junho a agosto de 2022 foram vendidos pelo valor de 9 euros (o valor padrão em Frankfurt é de 90 euros). O governo reajustou a tabela de imposto de renda. Em setembro, cada pessoa empregada na Alemanha recebeu 300 euros para custear as despesas com gás. Impostos sobre gás e combustível foram cortados e, em dezembro, a conta de gás será integralmente custeada pelo governo. Setores críticos às medidas apontam o fato de que preços não caíram e que o custeamento das despesas com gás em dezembro podem desestimular o racionamento. 

Guerra

Amanda Toiansk relatou a forma como jornalistas alemães reportam o desenrolar da guerra e a forma como a população percebe o conflito. “Desde a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha tem uma política de investimento mínimo em suas forças armadas, mas no atual cenário, isso tem sido questionado até mesmo pelos partidos mais pacifistas”, afirmou. Segundo ela, o debate ainda não resultou em investimentos concretos, pois há uma expectativa de que as sanções econômicas sejam suficientes. 

Segundo Toiansk, a mídia alemã tem reportado a invasão da Rússia ao território ucraniano como uma guerra de expansão territorial. Isso diverge do pretexto russo de que a guerra (chamada de “operação militar especial”) teria o propósito de libertar as populações russas sob ataque ucraniano. “Isso é visto como apenas um pretexto”, disse. “Casos como a explosão do Nord Stream 2 foram noticiados como um ataque de sabotagem, e há preocupação com novos ataques a outras infraestruturas alemãs”. 

Antônio Caiado é um goiano que vive nos Estados Unidos e se uniu ainda jovem ao exército americano. Já foi enviado duas vezes ao Afeganistão e atualmente trabalha lotado na 36ª divisão de infantaria como senior advisor na proteção de forças americanas em solo estrangeiro. O sargento de primeira classe tem a função analisar a situação de tropas e produzir relatórios com intenção de proteger tropas alocadas em todo o mundo, inclusive na europa.

O oficial do US Army estimou o risco de o conflito em solo ucraniano escalar de forma que países da União Europeia sejam envolvidos. “Eu imagino que estamos chegando a um ponto em que o conflito começará a tomar formas diferentes, pois os atores serão forçados a tomar algumas atitudes. A Europa vai enfrentar o inverno – com maior ou menor dificuldade, esse momento chegar e passar – e aí então a Rússia perderá seu poder de barganha; sem a ameaça de redução no suprimento de gás, ficarão sem a alternativa da chantagem econômica.” 

Antônio Caiado | Foto: Acervo Pessoal

Sem essa ferramenta, o exército russo foi obrigado a recorrer à ameaça nuclear, analisou Antônio Caiado. “O receio do Departamento de Defesa e do mundo é que, mesmo armas nucleares táticas (pequenas, de uso localizado) podem espalhar radiação a depender da direção do vento e distância das fronteiras. Com países da Otan tão próximos à região do conflito, nós diariamente usamos ferramentas como o Joint Effects Model (JEM) para modelar e simular matematicamente os efeitos de ataques. Essa é uma preocupação concreta.”

“Mas, da perspectiva ucraniana, as coisas também parecem estar mudando”, comentou Antônio Caiado. Com a recente retomada de territórios pela Ucrânia (6.000 km² já foram reconquistados) e com a resistência ucraniano se provando difícil de ser vencida, atentados como o da Ponte de Kerch e aquele que vitimou Daria Dugina apontam para a alteração de uma guerra direta para uma de insurgência, disse Antônio Caiado. “Quando se adiciona o elementos ideológico, nacionalista e patriótico, começam a surgir insurgentes. Isso torna tudo muito imprevisível, porque insurgentes não seguem uma liderança centralizada e podem vir de dentro da própria Rússia.”