COMPARTILHAR

Dois processos de impeachment, após a redemocratização do Brasil, mostraram a força do legislativo, como poder dentro do sistema de freios e contrapesos. O que consiste no controle do poder pelo próprio poder, isto é, cada poder tem autonomia para exercer a função, mas, simultaneamente, sendo controlado pelos outros poderes. Assim, em 2016, seguindo o rito constitucional, o Congresso Nacional, sob mediação do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), afastou do mandato presidencial a então presidente Dilma Rousseff (PT). 24 anos antes, Fernando Collor teve que enfrentar os outros dois poderes, inaugurando o mecanismo de impedimento no País, com a nova Constituição Federal, que na época estava com apenas 4 anos de promulgação.   

Neste ano, diferente dos dois fatos históricos, o poder que esteve em suspeição foi a Justiça, mas especificamente, o STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário, que compete a guarda da Constituição, conforme definido no artigo 102 da Carta Magna da República. Como parte do terceiro poder e responsável pelo processo eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi alvo de desconfiança, com o sistema de votação por meio das urnas elétricas. No entanto, nas conclusões dos trabalhos democráticos se comprovou que o Judiciário é bastante ativo em manter o sistema de contrapesos. Assim, o próprio Supremo se afirmou como força e autonomia.

O historiador Nasr Chaul aponta que as instituições republicanas estão se fortalecendo, desde a Constituição de 1988. “Elas foram altamente postas às provas durante esses últimos três anos e meio. Todos os ataques não republicanos. Todas as ameaças golpistas. Todas as atitudes antidemocráticas, as fakes news, as ameaças de todos os lados serviram para demonstrar o fortalecimento”, afirma. Segundo ele, diante de uma eleição com forte polarização, a Constituição foi mantida acima de qualquer tentativa de golpe de Estado. “Isso foi a prova maior da sustentação republicana e democrática. Os poderes estão de parabéns, principalmente, por não terem apoiado veementemente qualquer tentativa golpista e que a sociedade, uma parte dela, entenda que esse governo tenha servido para abrir as comportas do xenofobismo brasileiro, do homofobismo brasileiro, do racismo brasileiro, tão latente que estava. Isso, na minha opinião, foi positivo, porque demonstrou quem é quem, deu chances desta direita absurda e deste fascismo dissimulado se manifestar. Então, o que reforça mais ainda, no meu entendimento, as instituições democráticas e republicanas brasileiras”, analisa.

“O que importa é que aos trancos e barrancos vamos seguindo em frente e a nossa democracia continua de pé”

Jurista Fernando Tibúrcio

Para o especialista, o país de dimensão continental vive superando crises, sendo que a atual não é inédita. “O Brasil vive, historicamente, superando suas crises. Não foram poucas, desde a primeira república, passando pelo movimento de 30, passamos pelo Estado Novo (Governo Getúlio Vargas), durante 15 anos. Veio o processo de democratização. Veio o governo Juscelino [Kubitschek, o JK, 21º presidente do Brasil entre 1956 e 1961]. Veio a queda do Jango [João Goulart], com golpe de 64 e a Constituinte”, enumera. Chaul relembra a iniciativa dos movimentos populares nos anos 80 até a consolidação da segunda reconstituição democrática, ou seja, o retorno da democracia em 88. “Então, eu vejo que nós não temos sossego não. Nosso processo histórico é de macelas, é de desafios, tem sido de afirmação de democracias, dependendo de cada período. Nós vivemos superando crises políticas. Isso é uma coisa cotidiana na vida nacional”, define.

nasr-chaul
Historiador Nasr Chaul | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

No entanto, além dos desafios internos, o país vive o contexto de crises mundiais. “Vinde a pandemia, por exemplo, vinde às oscilações econômicas do mundo. N0o século passado, as oscilações do petróleo, a crise das bolsas de valores, a quebra dos bancos norte-americanos, por exemplo. As guerras polarizadas pontuais ou não. Eu penso que, isso nos atinge, nós estamos em uma economia globalizada, em que a dependência interpaíses é plena, mas eu acho que a gente tem conseguido, se não, temos a melhor realidade possível, temos a melhor utopia conseguida. Penso que temos mais alguns anos próximos, para a gente ver como sair dessa permanência, não apenas mundial, mas interna, principalmente”, frisa.

Para o advogado Fernando Tibúrcio, os últimos acontecimentos, como bloqueios de rodovias, serviram para testar novamente as instituições brasileiras. “Mais do que nos últimos dias, os últimos quatro anos foram o maior teste para a nossa democracia desde o início da Nova República, em 1985. O projeto de Bolsonaro, estou convencido disso, era ir apertando o torniquete e fazer com que o Brasil migrasse, no seu segundo mandato, para um regime autoritário. O que garantiria a sua perpetuação no poder. Mas o brasileiro soube usar a única arma que me parece legítima: o voto”, diz.

O jurista indica que episódios de judicialização da política desencadearam para este momento em que o Brasil enfrenta. “Se há algo que merece ser destacado, é o fato de termos superado o estrago feito pela Lava Jato, que gerou uma crise política sem precedentes, onde a própria política foi criminalizada e o Estado Democrático de Direito se viu ameaçado. Bolsonaro foi mais um efeito colateral dessa operação tão danosa para a nossa democracia. Felizmente, ficou pelo caminho”, comemora. Por outro lado, ele lamenta que o país demonstra não resolver as questões políticas e repetir sempre as mesmas crises. “Não seria exagerado dizer que o Brasil parece viver uma crise política eterna”, afirma. Entretanto, Tibúrcio nota que existe solidez das instituições, contando com marcos regulatórios definidos. “O que importa é que aos trancos e barrancos vamos seguindo em frente e a nossa democracia continua de pé”, emenda.

Especialistas definem a democracia como sistema de riscos, sendo mais robusta em países que conseguem criar um consistente modelo de freios e contrapesos. Para tanto, dependem da manutenção de instituições sólidas e funcionando de maneira harmônica e independente. Assim, poderão ser mais estáveis e contribuir na formação de uma cultura capaz de sustentar a força da democracia. Além disso, há outro elemento essencial para qualquer democracia: cidadãos e lideranças políticas. Esses devem respeitar as regras do jogo, tolerar os adversários e reconhecer o pluralismo. O cientista político Fernando Schüler cita, em entrevista ao Jornal O Globo, que a polarização é o novo normal, porém as regras do jogo sempre precisam ser respeitadas

“As instituições tradicionais de filtro e mediação perderam muito de sua função, e a tecnologia deu poder ao cidadão, que pode se expressar e se organizar diretamente. Houve um aumento da participação dos indivíduos e uma multiplicação de grupos de pressão da sociedade. Isso é muito positivo, pois aumenta a liberdade e a capacidade de intervir na esfera política. Por outro lado, também aumenta a instabilidade, o barulho e a polarização, dá espaço para manifestações de ódio, ataques raivosos e fake news”, observa.

Dilma Rousseff
Dilma Rousseff foi afastado do mandato pelo Congresso Nacional sob mediação do presidente do STF

Professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), ele descreve como ocorreu o processo de corrosão da democracia venezuelana. “Houve uma colonização das instituições: um assalto ao Poder Judiciário, intervenção maciça do Estado no mercado, mudança constante de regras do jogo, populismo eletrônico. E, a partir daí, houve uma degeneração das instituições. O Chavismo, porém, nunca teve compromisso com a democracia no sentido republicano”, elenca.

De acordo com o especialista, o desrespeito à regra republicana e às instituições se repetiram na Turquia e na Polônia. A sanha pelo poder absoluto que costuma partir do detentor do comando executivo, em alguns países, apesar de disputas políticas e de visões ideológicas, as instituições se mostram fortes o suficiente para resistir. Ao contrário, em outros, por serem mais frágeis, se contaminam ou são acuadas. Schüler sinaliza que com todos os defeitos do país, ficou como fato que as instituições são independentes e existe uma democracia robusta no Brasil, que conta com um sistema eleitoral exemplar para o mundo e uma Justiça Eleitoral, embora sob forte ataque, foi forte. “Às vezes sentimos uma baixa autoestima em relação a nossa democracia, mas, apesar de jovem é marcada historicamente por instabilidade e pelo traço autoritário da cultura política brasileira, à direita e à esquerda, as instituições vêm respondendo bem”, concluiu.

Chancela das instituições

Um dia após a realização do segundo turno das eleições deste ano, o Institute for Democracy and Electoral Assistance (Idea Internacional) divulgou um comunicado acerca da participação da instituição no processo de votação. O Idea destacou que, mesmo com o contexto adverso, devido a um ambiente político turbulento, com preocupações democráticas e múltiplas tensões, as eleições têm sido um trunfo fundamental para fortalecer os alicerces da democracia brasileira. “O dia da votação foi calmo, com respeito entre os eleitores, e os postos de votação funcionaram corretamente, de forma ordenada e fluida”, cita trecho da nota. O informe frisou que a participação dos eleitores foi alta, com um aumento em comparação com o primeiro turno.

“O TSE conduziu o processo com imparcialidade em relação às diferentes forças políticas; demonstrou solvência técnica e logística, refletida nos diferentes componentes do dia de votação; ampliou o registro biométrico dos eleitores; adotou ações inovadoras contra o fluxo de notícias falsas; ampliou os mecanismos de verificação das urnas eletrônicas em atitude proativa de transparência; incentivou a participação promovendo o transporte gratuito aos eleitores; e ampliou as instalações para observação eleitoral, tanto local quanto internacional”, destacou o texto.

Segundo o instituto, houve segurança e rapidez no processamento dos resultados do sistema eletrônico de votação brasileiro. No documento é mencionado que a atuação do TSE superou o desafio de lidar com o maior registro eleitoral da América Latina, com mais de 156 milhões de eleitores”. A delegação do Idea no Brasil foi liderada pelos ex-presidentes da Bolívia Carlos Mesa e da Costa Rica Carlos Alvarado; e composta pela ex-senadora do Uruguai Monica Xavier; o ex-senador do Paraguai Diego Abente; o ex-senador do Chile Sergio Bitar; o diretor do Idea para a América Latina e o Caribe, Daniel Zovatto; o diretor da instituição para o Paraguai, Salvador Romero Ballivián; e Maurício Barbosa, assistente.

Cabe ressaltar, que apesar de denúncias de compra de votos e utilização da máquina da administração pública, a campanha eleitoral foi realizada tradicionalmente. Nesse sentido, foram promovidos debates televisivos, com a participação, com raras exceções, dos dois principais então candidatos Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O que comprovou a força da imprensa, que já foi chamada de quarto poder.

Lula e Bolsonaro
Então candidatos, Lula e Bolsonaro participaram do jogo democrático

Com o fim do resultado, representando as instituições republicanas, os chefes dos poderes chancelaram a vitória de Lula. A confirmação de que havia sido eleito o novo presidente pelas urnas saiu às 19h57 do domingo, com 98,81% das urnas apuradas. Imediatamente, às 20 horas, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), fez um pronunciamento oficial reconhecendo a eleição e afirmando que “a vontade da maioria jamais deverá ser contestada e seguiremos em frente na construção de um País soberano”.

Na sequência, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se manifestou depois da proclamação dos resultados, por volta das 22 horas. “Expresso reconhecimento do resultado das eleições no Brasil, de forma plena, absoluta e insuscetível de quaisquer questionamentos. Eu saúdo todos os candidatos que disputaram as eleições de primeiro e de segundo turno. Todos eles vitoriosos ou derrotados contribuíram para a construção democrática”, discursou.

Logo em seguida, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, com 100% das urnas apuradas. Ele defendeu o processo eleitoral e as urnas eletrônicas, informando que havia que ligar para o presidente eleito, Lula, e para o candidato derrotado, Bolsonaro. “Urnas eletrônicas são patrimônio nacional e espero que, a partir dessa eleição, finalmente cessem as agressões ao sistema eleitoral, cessem os discursos fantasiosos, as notícias fraudulentas, as notícias criminosas contra as urnas eletrônicas, porque quem novamente atesta a credibilidade das urnas eletrônicas foi o povo brasileiro”, resumiu. Assim, ao desenrolar dos fatos ficou evidente que Bolsonaro não contava com apoios relevantes dentre aliados políticos, se resolvesse seguir com a narrativa de fraudes.