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Originalmente publicado em 4 de junho de 2022

Muito antes de Brasília ser construída, o artificial Lago Paranoá já havia sido concebido. As propostas dos traçados urbanísticos para a nova capital foram avaliados em 1956 pelo júri do “Concurso para o Plano Piloto de Brasília”; mas aos participantes foram entregues fotografias aéreas e mapas produzidos pela empresa Donald J. Belcher Associates com o ainda imaginário Lago Paranoá e sua usina hidrelétrica já definidos. 

A história do Lago Paranoá começa em 1896, na segunda Missão Cruls. O engenheiro, botânico e paisagista francês Auguste François Marie Glaziou, observando a hidrografia da região, sugeriu como a área poderia ser represada para a construção de um lago. Em carta sobre a expedição, Glaziou comenta: “Entre dois grandes chapadões na localidade pelos nomes de Gama e Paranoá, existe imensa planície em parte sujeita a ser coberta pelas águas da estação chuvosa”.  

A Missão Cruls foi formada por duas expedições de exploradores com objetivo de avaliar o Planalto Central do Brasil para a construção de uma nova capital. A mudança já havia sido prevista na Constituição Provisória de 1890 e, dois anos depois, o segundo presidente da República, Floriano Peixoto, fez cumprir o artigo que previa a demarcação do território: “Fica pertencendo à União uma zona de 400 léguas quadradas, situada no planalto central da República, a qual será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura capital federal” (emenda Lauro Müller, 1890).

Auguste François Marie Glaziou | Foto: Domínio Público

Em quatro anos, os 21 exploradores liderados pelo belga Luís Cruls cumpriram a tarefa de mapear a área ideal, o Quadrilátero Cruls. Entretanto, os presidentes ocuparam a chefatura da República na primeira metade do século XX desrespeitaram a Constituinte da República. O historiador Jarbas Silva Marques, no artigo “Operação Dom Bosco”, publicado em 2017 pela Universidade Federal de Goiás (UFG), apresenta como o retardamento da transferência da capital ocorreu.

No artigo Operação Dom Bosco, se lê: “Prudente de Morais, o primeiro presidente civil, sabotou orçamentária e administrativamente Luís Cruls, para que ele não concluísse a segunda fase do trabalho. Iniciava-se a Primeira República e a hegemonia do Café com Leite, e nem os políticos de Minas Gerais e de São Paulo queriam a mudança”. Jarbas Silva Marques chama atenção para aqueles que denomina “Mudancistas Goianos”, um grupo heterogêneo formado principalmente por lideranças políticas de Santa Luzia (hoje Luziânia, em Goiás), sob a liderança de Evangelino Meireles. 

Os diversos atores que trabalharam para efetivar a mudança da capital levariam meio século para vencer os interesses políticos e financeiros. Enquanto a luta era travada no Legislativo nacional, estudos para a construção do Lago eram feitos. Os urbanistas Raul Penna Firme, Roberto Lacombe e José de Oliveira Reis produziram em 1946 um relatório em que descreviam o que hoje é conhecida como a barragem do Paranoá: “Projeta-se uma barragem a jusante do rio, que se transforma num lago ornamental.”

No entanto, a criação do Paranoá se torna mais concreta a partir da publicação o edital do concurso que elegeria o projeto arquitetônico e urbanístico da nova capital do país. Em 30 de setembro de 1956, o edital foi publicado no Diário Oficial. Foram contabilizadas 63 inscrições, e na data de entrega, apenas 26 projetos foram conferidos.

Lucio Costa cumpre a exigência de um projeto urbanístico no qual demandava a construção de um lago cujo nível das águas seria de 1000 metros acima do nível do mar e o volume das águas equivalente ao da Baía da Guanabara. A construção da barragem se iniciou em 1957 e foi concluída no dia 12 de setembro de 1959 (dia do aniversário de Juscelino Kubitschek).

A luta para transferir a capital

O grupo dos mudancistas goianos formulou ações políticas para reavivar o movimento pela mudança da capital. Em 1921, o recém eleito deputado federal por Goiás Americano do Brasil apresentou um anteprojeto de lei que determinava a edificação no Planalto Central de um marco onde seria edificada a nova Capital do Brasil. O projeto foi aprovado e, no dia 7 de setembro de 1922, foi inaugurado o marco em Planaltina como comemoração do Centenário da Independência.

Como ações complementares, além da edição de jornais, Gelmires Reis, então intendente municipal de Santa Luzia (atualmente cidade de Luziânia), fez um loteamento denominado Planaltópolis e distribuiu, em escritórios nas principais cidades brasileiras, “lotes para quem quiser morar onde será edificada a futura Capital Federal”.

Após a Revolução de 1930, o movimento mudancista entrou em declínio no parlamento nacional. O grupo de Santa Luzia passou a apoiar a mudança da capital do Estado de Goiás — da cidade de Goiás para a cidade ainda inexistente, que viria a ser Goiânia. O deputado estadual Sebastião Machado, eleito por Santa Luzia, integrou-se no bloco mudancista que apoiava os fundadores da nova capital goiana, Pedro Ludovico e Germano Roriz.

Germano Roriz foi o primeiro funcionário público federal de Goiânia e seu filho Goiany Segismundo Roriz foi a primeira criança a nascer e a ser registrada e batizada na nova capital do Estado de Goiás. Goiânia é, então, colocada pelo grupo de Santa Luzia como alternativa para sediar a capital federal, a cumprir o dispositivo constitucional.

Em 1937, veio a Ditadura do Estado Novo. Da Constituição de 1937 (que recebeu o apelido de “Polaca” por ter sido inspirada no modelo semifascista polonês), foi retirado o artigo que dizia respeito à transferência da Capital e existia desde a Constituição de 1891.

Com a democratização em 1946, o advogado Segismundo de Araújo Mello — do grupo de Santa Luzia, vivendo no Rio de Janeiro – e o deputado goiano Diógenes Magalhães passaram a articular politicamente a reinserção do artigo 3º da Constituição de 1891 na Assembleia Nacional Constituinte.

Segismundo de Araújo Mello articulou desapropriações para a construção do Lago e de Brasília | Foto: Domínio Público

Promulgada a Constituição e eleito o presidente da República, marechal Eurico Gaspar Dutra, cumpriu-se o primado constitucional: foi criada uma comissão presidida pelo general Djalma Polli Coelho para promover os estudos para a escolha do local a ser edificada a nova capital. Iniciou­-se aí a luta entre os goianos – representados, na Comissão Polli Coelho, por Jerônimo Coimbra Bueno, o empreiteiro construtor de Goiânia – e mineiros, capitaneados na comissão por Lucas Lopes e, na Câmara dos Deputados, pelos constituintes mineiros Juscelino Kubitschek de Oliveira e Israel Pinheiro. 

Os mineiros pretendiam localizar a nova capital no Triângulo Mineiro, nas proximidades do Delta do Rio Paranaíba; já Coimbra Bueno, no quadrilátero delimitado por Luís Cruls, em 1892, no Planalto Central. Por um voto de vantagem, a Comissão Polli Coelho deliberou que os estudos de Luís Cruls e seus companheiros eram cientificamente corretos, aconselhando o presidente Eurico Dutra a transferir a capital federal para o Quadrilátero Cruls. Após eleito em 1950, Getúlio Vargas nomeou o chefe do gabinete militar, general Agnaldo Caiado de Castro, para presidir a Comissão de Localização da Nova Capital Federal. 

O general Caiado de Castro contratou, então, a empresa americana Donald Belcher para fazer os mapas do levantamento aerofotogramétrico do Quadrilátero Cruls, realizado pela empresa Cruzeiro do Sul, a fim de que fosse demarcado o local para a edificação da capital federal.

Em agosto de 1954, Getúlio Vargas cometeu suicídio, e Café Filho, seu vice-presidente, ocupou a Presidência da República. Café Filho nomou, para substituir o general Agnaldo Caiado de Castro, o marechal José Pessoa. Este, acompanhado do seu ajudante de ordens, capitão Ernesto Silva, foi ao Planalto Central no dia 5 de fevereiro de 1955 e escolheu o Sítio Castanho como local de fundação definitiva para Brasília. O marechal Pessoa retornou ao Rio de Janeiro e pediu ao presidente Café Filho a edição de um decreto desapropriando as terras e consideradas de utilidade pública para a edificação da nova capital.

Café Filho, que era da União Democrática Nacional (UDN), contrária à transferência, se recusou a “baixar” o decreto (pô-lo em prática). O marechal José Pessoa embarcou em um avião da Força Aérea Brasileira no Rio de Janeiro, no dia 29 de abril de 1955, em direção a Goiânia, para falar com o governador José Ludovico de Almeida (Juca Ludovico) e expor o impasse. José Ludovico recebeu o marechal em audiência, e o capitão Ernesto Silva foi convencido da necessidade de que o Estado de Goiás tomasse a iniciativa — caso contrário, a Constituição não seria cumprida e a capital não seria transferida.

O governador José Ludovico chamou Segismundo de Araújo Mello, Jorge de Morais Jardim e outros assessores, que passam a elaborar o decreto que romperia o impasse. Embora tivesse minoria na Assembleia Legislativa de Goiás, e o decreto tivesse de passar por três votações, José Ludovico conseguiu sua aprovação. A fim de evitar qualquer querela jurídica, o decreto foi assinado no dia 1º de maio de 1955, mas com a data de 30 de abril. Altamiro de Moura Pacheco foi nomeado presidente da Comissão de Cooperação da Mudança da Capital Federal que iria promover as compras e as desapropriações e Segismundo de Araújo Mello, consultor jurídico.

Até novembro de 1956, um quarto das terras do novo Distrito Federal (que pertenceram a 114 fazendeiros, dos quais 55 eram possuidores de mais de uma propriedade) já havia sido desapropriada. A historiadora Darcy Dornelas de Farias, em sua tese de mestrado publicada pela História pela Universidade de Brasília(UnB) em 2006, enumera algumas das maiores propriedades da área.

A Fazenda Barra Alta, tinha 2.950 alqueires e pertencia a José Guimarães Zuzu e irmãos; a Fazenda Bananal com 5.632,7 alqueires e pertencia a Hélio Rodrigues Queiroz, a Deodado Louly e a Salvador Ribeiro de Freitas. Posteriormente, Hélio Rodrigues vendeu a Jorge Pelles e a Jerônimo José da Silva, o seu quinhão, que equivalia a uma área de 4.752,066 alqueires. A Fazenda Vicente Pires era de propriedade de Juventino Rodrigues, Benedito Roriz de Paiva e Otaviano Meirelles, com área de 798.000 alqueires. 

Os goianos, capitaneados por Juca Ludovico, fizeram a história avançar, e passam a preparar as condições objetivas, 26 dias antes de Juscelino Kubitschek ser interpelado por Antônio Soares Neto, conhecido por Toniquinho, no seu primeiro comício de campanha, em Jataí. Juscelino Kubitschek afirmou no palanque que “se cumpriria a Constituição e transferiria a capital para o Planalto”.