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O Programa Nacional de Imunização (PNI) já foi tido como um modelo de sucesso para o mundo, mas a população brasileira hoje bate recordes de abandono das vacinas. Essa plataforma do Sistema Único de Saúde (SUS) manteve o Brasil protegido contra 17 doenças infecciosas graves por quase cinco décadas – sendo que por mais de vinte anos, o índice de cobertura vacinal média se manteve dentro do recomendado pelas autoridades de saúde. Desde 2015, entretanto, a cobertura vem caindo e nove entre 15 vacinas que deveriam ser administradas até o quarto ano de vida estão abaixo da meta. 

As vacinas são oferecidas gratuitamente pelo SUS e a rotina de imunização com 19 vacinas se inicia ainda nos recém-nascidos e pode se estender por toda a vida. Entretanto, a análise dos dados do sistema de informação SI-PNI/DataSUS revela que a faixa etária que mais tem falhado na prevenção de doenças infecciosas é a das crianças. A redução de até 65% em alguns estados tem assustado profissionais da saúde pela ameaça de retorno de doenças como a poliomielite, erradicada em 1994. 

Imunizantes aplicados nos recém-nascidos, como a BCG, que protege contra tuberculose e é aplicada ainda na maternidade, foi a vacina que sofreu maior queda em pontos percentuais: em 2014 foi aplicada em 107% do público alvo; em 2021, em apenas 68%. A vacina dTpa para gestantes, que protege o bebê contra difteria, tétano e coqueluche, atingiu apenas 43% em 2021. Para as vacinas que necessitam de mais de uma dose, a taxa de abandono (ou seja, de responsáveis que deixaram de levar crianças para tomar a dose de reforço) atingiu no ano passado a marca de 19,6%.

Profissionais afirmam que diversos fatores contribuem para esse fato. A erradicação de doenças como sarampo e poliomielite cria a falsa sensação de que vacinas não são mais necessárias, enquanto os 26.827 casos da doença entre 1968 e sua erradicação em 1989 formavam um quadro assustador de crianças com dificuldade de locomoção que incentivava pais imunizarem seus filhos. A vacina contra sarampo (tríplice viral, que também protege crianças da rubéola e da caxumba) tinha 112% de cobertura vacinal em 2014 e apenas 73% em 2021.

Embora 90% da população reconheça a importância das vacinas, segundo pesquisa do Ibope Inteligência de agosto de 2020, três em cada dez crianças brasileiras não foram imunizadas contra doenças potencialmente fatais. O alerta, emitido em abril, é do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). De acordo com a organização, desde 2015 ocorre uma queda da cobertura vacinal entre menores de 5 anos.

Com a pandemia do novo coronavírus a situação se agravou. Até mesmo a vacinação contra Covid-19, tão esperada para as crianças, está aquém das expectativas. Segundo informações da Agência Senado, 60% das crianças entre 5 e 11 anos tomaram a primeira dose e apenas 30% tinham o esquema vacinal completo em maio.

Por não conviver mais com vítimas da pólio, população tem falsa sensação de segurança | Foto: Reprodução

Doenças que podem retornar

A Poliomielite é uma doença que ensaia um retorno ao Brasil, caso as taxas de vacinação não sejam ampliadas. Para Paulo Almeida, diretor-executivo e coordenador do Observatório de Políticas Científicas do Instituto Questão de Ciência (IQC), o que explica em parte tal hesitação vacinal da população brasileira (indecisão sobre levar os filhos para tomar vacina) é a falta de memória ou de convivência com a agressividade de doenças que foram prevenidas ao longo da história pela adesão em massa às imunizações, como é o caso da poliomielite paralítica. 

“Ao longo das últimas décadas, houve uma queda da cobertura vacinal no mundo todo, em parte porque as vacinas sofrem o efeito do próprio sucesso. Elas são muito efetivas em conter a proliferação de doenças que têm um impacto muito grande na sociedade e gerações mais novas não viram coisas muito agressivas. Não viram varíola ou não tem um parente com pólio”, exemplifica Paulo Almeida. 

“Então parte disso (hesitação vacinal) encontra respaldo simplesmente porque é uma geração que não tinha visto, até a covid, um problema muito sério que exigisse vacinação em massa porque a gente já tinha uma população suficientemente coberta”, afirma. “O Brasil sempre teve um histórico muito bom de vacinação porque isso tinha se tornado um fator cultural da população. Vacinar era um hábito. Não havia muito questionamento em torno disso.”

Mais vetores de transmissão e novas variantes

O número de casos de doenças já presentes pode aumentar. É o caso do papilomavírus humano (HPV), causador do câncer de colo do útero. Segundo a Unicef, apenas 13% das meninas de todo o mundo estão protegidas contra a condição – a vacina está disponível no PNI para meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos. Graças a esse imunizante, o câncer cervical pode ser o primeiro tipo a ser completamente eliminado, e a vacinação é essencial para isso. De acordo com a OMS, isso é possível se 90% das meninas e das jovens de todo o mundo forem vacinadas contra o HPV, se 70% das mulheres fizerem exames regulares e se 90% das pacientes com alguma doença cervical tiverem acesso a tratamento. 

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Surtos de meningite são registradas em São Paulo e Pernambuco; Pará tem suspeita de paralisia infantil | Foto: Reprodução

Outro exemplo é a meningite, que, apesar de nunca ter sido erradicada, é uma doença considerada controlada no Brasil, com número de casos e óbitos esperados. No passado, milhares de pessoas morreram pela doença, mas o surgimento de vacinas colaborou para diminuir os estragos. Contudo, uma alta prevalência de casos em diversos estados e a queda da cobertura vacinal para a doença fez soar um alarme para o cenário epidemiológico.

Uma das afetadas foi a cidade de São Paulo. Com 58 casos e 10 óbitos, o município agiu para impedir que o surto localizado em dois bairros se espalhasse por outras áreas. Entretanto, o número de casos está dentro do esperado para a região, que em 2019, no período pré-pandemia, teve 196 casos e 32 óbitos da doença meningocócica.

“O cenário epidemiológico da meningite na cidade de São Paulo e no país em geral não tem apresentado mudanças, com tendências ou evolução no caso clínico das doenças. As meningites são doenças bastante conhecidas e a medicina consegue trabalhar muito bem com ela, tanto nos quadros clínicos quanto no diagnóstico. O que preocupa é a gravidade da doença”, observa Luiz Artur Vieira Caldeira, coordenador de Vigilância em Saúde da Cidade de São Paulo.

Atualmente, os casos encontrados são referentes à meningite meningocócica do tipo C, causado por bactérias. De acordo com Caldeira, apesar da incidência desse subtipo ser menor até então, a sua letalidade é uma das principais preocupações, em torno de 20% dos casos. Ou seja: a cada 100 pessoas que são infectadas, 20 podem vir a óbito. No entanto, ela era uma doença controlada, e a mudança do tipo mais prevalente é o que tem despertado a atenção.

“É uma doença grave mas imunoprevenível. O que preocupa neste momento o cenário das meningites no país e no mundo são as baixas coberturas vacinais. Mesmo que os casos sejam em menor quantidade, o risco de encontrar pessoas muito mais suscetíveis, sem estarem com a vacina em dia e evoluírem para um quadro mais grave, é maior”, alerta o coordenador. No país, a taxa de cobertura vacinal é de 47,17% para a doença, de acordo o Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Em 2019, era 87,41%.

Como protocolo de controle, o município adotou um bloqueio vacinal. Em um raio de 3 quilômetros do foco do surto localizado, 30 mil pessoas foram vacinadas com doses de reforço entre 17 de setembro e 10 de outubro, para reduzir o risco de se disseminar a outros bairros. O procedimento é o mesmo que deve ser adotado caso haja um caso de poliomielite no país, e o município de São Paulo conta com um estoque de vacinas para esse tipo de caso.

Luiz explica que para caracterizar um surto, é preciso que haja 3 casos ou mais do mesmo sorotipo da meningite, em período menor que 90 dias e em pessoas sem vínculos. A partir daí, as vigilâncias epidemiológicas municipal, estadual e do Ministério da Saúde se reúnem para discutir a gravidade e as medidas que devem ser adotadas. No caso atual, essa reunião ocorreu no mesmo dia.