Avanço da extrema-direita entre trabalhadores digitais é desafio para Lula

11 dezembro 2022 às 00h00

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Semanas atrás, um amigo fez no Twitter uma postagem entre a anedota e o desabafo, curta e curiosa: “Eu não aguento mais entrar em uber e estar tocando gospel”. Como quase nunca utilizo aplicativo para transporte, fiquei intrigado, tentando entender como alguém presta um serviço de certa forma impondo seu gosto musical ao cliente, ainda que seja utilizando seu próprio veículo.
Pela lógica do bom atendimento, o ideal ao fazer uma corrida como chofer de aluguel seria ou não ter música ou ter uma música neutra (a chamada “música ambiente”), pensei. Mais educado e mais elegante ainda poderia ser se perguntasse a quem está sendo transportado se gostaria de ouvir música (ou noticiário) e de que tipo (ou em que emissora).
O tuíte do meu amigo me levou a duas ações imediatas. Primeiramente, pesquisei pelas palavras “uber” e “evangélico” dentro da própria plataforma da rede social. Foi um tanto surpreendente ver o grande número de referências à mesma situação: gente que notava/revelava/reclamava que o motorista ouvia música religiosa, a despeito do gosto do passageiro. E o que leva trabalhadores de aplicativo a se tornarem tão fervorosos a ponto de deixarem de encarar o próprio trabalho como uma atividade laica? Voltaremos a esse ponto mais à frente.
Antes, a segunda ação. Fui reler um texto que havia acessado no dia anterior, assinado pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, uma das maiores especialistas na interconexão de estudos sobre trabalho precarizado com mundo digital e o avanço da extrema-direita. Titular da Universidade de Dublin, na Irlanda, onde coordena o laboratório WorkPolitics, ela pesquisa formas de despolitização e desmobilização. Também é bastante ativa nas redes sociais e escreve periodicamente para sites e jornais. No caso, li seu texto publicado na Universa, um dos cadernos eletrônicos do portal UOL.
No artigo, a pesquisadora cria um neologismo para nomear o profissional do transporte por aplicativo que se mostra engajado na política: é o “uberminion”. O termo, aliás, consta do título do texto que tinha lido: “Uberminion: como precarização do trabalho recruta membros à extrema direita”.
A premissa básica de Pinheiro-Machado é de que o espaço digital colabora para encaminhar setores do trabalho formado por pessoas que lidam de alguma forma com o meio digital cada vez mais para o reacionarismo radical. “Se nossas hipóteses se confirmarem, parte da economia digital popular tem operado como uma máquina não apenas de desmobilizar, mas também de recrutar novos membros à extrema direita. O trabalhador cai numa rede algorítmica política. Longe de ser uma vítima, trata-se de uma rede que ele mesmo teceu. É um processo simbiótico no qual valores políticos e arquitetura de redes se fortalecem mutuamente”, diz, no artigo.
Em suma, a rede algorítmica reforça – ou elabora – o que já pensa aquele indivíduo. Mais do que isso, ela o encaminha para um nicho no qual se encontrará “em casa”, com gente pensando tal como ele próprio. É o que se chama de “bolha”, no convencional.
Nesse sentido, o “uberminion” é apenas uma das profissões abarcadas por essa rede algorítmica. Como a própria Rosana observa em outro texto, influencers têm alta tendência de se aliar a ideologização de direita – em porcentagem, ela calculou até 88% de bolsonaristas entre eles. Da mesma forma, todos os que de alguma forma trabalhem com venda e investimento.
Por que isso acontece? Há algo de comum entre esse pensamento reacionário e ser dono do próprio nariz, financeiramente falando?
Parece que sim. Na atual conjuntura, especialmente no Brasil, talvez a igreja evangélica seja a maior “associação entre amigos” da sociedade. Os fiéis, sob orientação de um pastor – ou mesmo independentemente disso – se juntam para atividades em conjunto e também formam consórcios em que uns ajudam os demais.
A adoção dos preceitos cristãos une, então, uma perspectiva de melhoria de vida tanto pela fé como pela nova rede de amizade
Dessa forma, para ficar em um exemplo bem simplório: uma mulher evangélica que faça venda direta de perfumes e cosméticos, em tese, tem muito mais condições de formar uma clientela, a partir de uma rede nascida dentro da própria igreja, do que outra que não tem essa base inicial de contatos. O mesmo vale para o vendedor de calçados, o comerciante do bairro, a dona do salão de beleza – e, claro, também o motorista de aplicativos.
A adoção dos preceitos cristãos une, então, uma perspectiva de melhoria de vida tanto pela fé como pela nova rede de amizade. Com uma vantagem: todos ali têm um compromisso moral – o que facilita as relações, já que aumenta o grau de confiança mútua.
Indo além, não é à toa que cada vez mais há políticos evangélicos. Mesmo que eles não nasçam no seio da igreja ou sejam membros dela – muitos, aliás, se “convertem” durante a carreira pública –, acabam, se eleitos por elas, mais comprometidos com pautas de costumes do que com políticas públicas de fato. Isso explica, em grande parte, a razão pela qual as casas legislativas hoje dispendem seu tempo de trabalho com análises de projetos inconstitucionais, como a “escola sem partido”, “ideologia de gênero” e “abolição do comunismo”, entre outros.
Dessa maneira, os novos governos, especialmente o que assume a cadeira no Palácio do Planalto, precisarão entender a nova teia de relações que influi no consumo, na prestação de serviços e, enfim, nas relações de trabalho. Que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não vai pegar o mesmo Brasil de FHC, em 2002, todos sabem; o que ainda precisa ser compreendido, planejado e executado com eficiência, para que o Brasil não caia novamente no perigoso terreno da extrema-direita.
O futuro governante prometeu melhorar a situação dos trabalhadores de aplicativos por meio de uma regulação justa. Não é o que eles querem, ao que parece, pois se consideram menos “trabalhadores” do que “empreendedores”. Empreendedores que detestam regulação. Mas, como escreveu Rosana Pinheiro-Machado, no mesmo texto: “Oferecer alternativas às transformações do mundo do trabalho —precarizado, plataformizado, digital ou empreendedor— é um dos desafios mais cabeludos do próximo governo comandado por Lula.”