Um relatório divulgado pela Agência de Inteligência de Defesa na segunda-feira, 23, sugeriu que o programa nuclear do Irã sofreu um retrocesso alguns meses após os ataques americanos às instalações nucleares de Natanz, Fordow e Esfahan. Contraditoriamente, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump afirmou que “as instalações foram obliteradas”. 

Após 12 dias de ataques, Israel e Irã entraram em acordo de cessar-fogo, e os EUA dizem ter esperanças de retomar as negociações com o Irã para convencê-lo a abandonar seu programa nuclear. Entretanto, especialistas ouvidos pelo Jornal Opção afirmam que os ataques podem criar um clima de instabilidade, que sugere “apenas quem tem armas nucleares é respeitado”, o que levaria Teerã a correr para desenvolver uma arma funcional.

Curiosamente, o programa nuclear iraniano foi estabelecido pelos próprios Estados Unidos, com a doação em 1967 de um reator com função de pesquisa, tipo pool de 5 MW de produção de radioisótopos de molibdênio, iodo e xenônio (MIX). Em 1974, a produção nuclear foi expandida; em 1975, a construção de um reator em Bushehr aumentaria 1293 MWe na produção. Em 1977, em Darkhovin, novos reatores em Bushehr e Saveh elevariam a produção em mais 1300 MWe (as de Saveh foram as primeiras do mundo a usar resfriamento a seco).

Então, veio a Revolução Islâmica de 1979. Diego Magalhães, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutor em Estudos Estratégicos Internacionais, afirma: “Os antecedentes da guerra entre Israel e Irã remetem a um problema comum mais amplo da intervenção de grandes potências para forçar uma mudança de regime político em outros países.”

“No caso, quando o Irã era governado por uma monarquia relativamente secular e liberal, o país tinha boas relações com Israel. Razões econômicas motivaram os EUA e o Reino Unido a apoiarem grupos que contribuíram para a Revolução Iraniana, que instituiu em 1979 o atual regime republicano e teocrático com forte teor antisionista. O resultado daquela intervenção não gerou os benefícios esperados por aquelas grandes potências e criou um poderoso inimigo contra Israel”, diz o pesquisador.

Os impactos do novo regime dos aiatolás foi a mudança de visão do ocidente sobre o programa nuclear iraniano, então amplamente aceito como “de fins pacíficos”. O programa foi requalificado na visão do ocidente como “potencialmente perigoso” a partir dali. Colaborando principalmente com a Rússia, o Irã continuou desenvolvendo novos reatores e ampliando sua capacidade. Em 2022, o total de energia nuclear gerada pelo Irã era de 8.1 Terawatt-hora (2% de toda matriz energética do país).

Em 12 de junho de 2025, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) declarou formalmente o Irã em violação de suas obrigações de não proliferação. No mesmo dia, Israel lançou uma operação militar visando instalações nucleares e militares do Irã.

Fins pacíficos vs. militares

Carlos Barreira Martinez | Foto: Reprodução

Carlos Barreira Martinez, doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp e professor da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), descreve as diferenças entre os usos pacíficos e militares da energia nuclear. Segundo o professor, o urânio para uso militar é muito mais concentrado. “O enriquecimento do material radioativo exige um esforço monumental”. 

O processo diz respeito à separação dos isótopos desejados. Na natureza, 99,3% do urânio encontrado está na forma de dióxido de urânio (UO2), no isótopo 238U — apenas 0,711% do seu peso é representado pelo isótopo 235U, que é mais facilmente fissionado em reatores de usinas e nas bombas atômicas. Separar o urânio pelo peso de seus isótopos exige equipamentos especializados, como super-centrífugas. 

“A teoria é relativamente conhecida, o problema é o equipamento e capacidade industrial”, diz Carlos Martinez. “O processo consome muita energia, gera muito calor, exige segurança elevada para evitar contaminação. À medida que o enriquecimento de urânio é elevado acima do necessário para o uso civil, o risco de acidentes se torna cada vez maior. É uma questão de tecnologia, de equipamento, de investimento. Poucos países conseguem realizar o processo a nível molecular com segurança.”

Antes da guerra, o Irã afirmava ter 2 mil centrífugas operando em Fordow, incluindo IR-6s avançadas, das quais cerca de 350 estavam enriquecendo urânio em até 60% — um nível preocupante porque não há justificativa civil para um nível tão alto de enriquecimento (para a produção de energia, menos de 20% são necessários). Após o bombardeio americano, os relatos são contraditórios: a primeira avaliação dos serviços de informações dos EUA concluiu que o ataque dos EUA não provocou o colapso dos edifícios subterrâneos, apenas bloqueou sua entrada. A Casa Branca diz que a base foi totalmente destruída. 

O fato é que não foi detectado vazamento de radiação da usina de Furdow. Especialistas afirmaram à Reuters que o Irã provavelmente transferiu o estoque de urânio altamente enriquecido, quase em grau suficiente para produzir armas, para fora do complexo de Fordow antes dos ataques, e escondeu o material radioativo. Eles observaram imagens de satélite da Maxar Technologies mostrando “atividade incomum” em Fordow nos dias anteriores ao ataque, com uma longa fila de veículos aguardando do lado de fora da entrada da instalação. O Financial Times, citando avaliações de inteligência europeias, informou que o estoque de urânio altamente enriquecido do Irã permanece praticamente intacto, uma vez que não estava concentrado em Fordow. 

Sendo este o caso, Carlos Barreira Martinez avalia que o maior risco de um ataque à uma usina nuclear foi evitado: “O perigo é espalhar o material radioativo para a atmosfera”. É possível armazenar e transportar o urânio enriquecido em relativa segurança, afirma ele: “O Brasil, com grande controle, consegue armazenar, transportar e descartar pastilhas de urânio utilizadas na Usina Nuclear de Angra, por exemplo — embora neste caso o uso e a concentração não sejam de fins militares”. 

O recado é terrível

O ataque de Israel e dos EUA foi uma ação militar preventiva com objetivos e sucesso desconhecidos, mas com consequências ominosas, diz Carlos Barreira Martinez. “Só se realiza uma ação dessas com propósitos muito bem definidos. Se a base não foi destruída e o programa nuclear iraniano não foi encerrado, qual era o real objetivo? O que fica é um recado terrível: ninguém ataca a Coreia do Norte, Paquistão ou Rússia porque esses países têm armas nucleares. O recado é: quem não conseguiu desenvolver armas nucleares, como Síria, Iraque e Ucrânia, não é respeitado.”

Diego Magalhães concorda com a avaliação de que o resultado da ação pode ser uma escalada nas hostilidades. “Efetuar um ataque surpresa, em vez de declarar guerra, tem sido uma prática recorrente no século XXI”, diz o professor de Relações Internacionais. “A principal razão para isso é a vantagem tática de um ataque não anunciado previamente. Consequentemente, reforçam-se dinâmicas hobbesianas de prevalência da força em um ‘estado guerra de todos contra todos’, que gera cada vez mais crises humanitárias, ignorando o Direito Internacional e as instituições internacionais que oferecem meios pacíficos de solução de controvérsias.” 

O momento político é de armamento: na última quarta-feira, 25, os líderes da Otan confirmaram o seu compromisso de mais do que duplicar as despesas com a defesa até 2035, utilizando palavras como “crucial”, “importante” e “salto quântico” para descrever o compromisso de gastar 5% do PIB na defesa. 

“A Polônia, por exemplo, pode decidir que não quer ser invadida pela Rússia e que para isso precisará de bombas. A Ucrânia não tinha armas nucleares e foi invadida”, diz Carlos Barreira Martinez. 

Diego Magalhães RI UFG foto Arquivo
Diego Magalhães, professor de Relações Internacionais da UFG | Foto: Acervo Pessoal

O freio da era nuclear 

O número de bombas nucleares atingiu o pico em 1985, com 63.632 ogivas. Desde então, um esforço ativo do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo fortalecimento do Tratado de não proliferação de armas nucleares (TNP) reduziu o número de ogivas para 13,4 mil em 2020. Desde então, entretanto, o ritmo de queda diminuiu — hoje, existem 12,1 mil ogivas. 

Carlos Martinez discorda que o TNP foi efetivo em reduzir a ameaça da Destruição Mútua Assegurada (DMA):  “Desde o final da Guerra Fria, dois países entraram no clube nuclear —  Coreia do Norte e Paquistão. A corrida nuclear nunca acabou. Se o número de ogivas e a ameaça reduziu, foi em função do comércio exterior e das cadeias de produção internacionais.”

Em um mundo onde cada bem industrializado é produzido e comercializado em etapas ao redor do mundo, a chance de guerra diminui, avalia o professor. A dependência do petróleo iraniano e da passagem de mercadorias pelo Estreito de Ormuz teriam sido fatores cruciais para explicar a brevidade da ação militar no Irã, no lugar da escalada de uma guerra de proporções maiores. Por isso, o momento de isolacionismo global, com guerras tarifárias, desintegração de blocos comerciais e ruptura de acordos causa preocupações que vão além das questões econômicas.