Enquanto o país enfrenta números alarmantes de violência sexual contra meninas, a Câmara dos Deputados voltou suas atenções não para o fortalecimento da rede de proteção infantil, mas para restringir ainda mais os direitos das vítimas de estupro. Nesta quarta-feira, 5, a maioria dos deputados aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/2025 , que anula a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) sobre o atendimento humanizado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual na rede pública de saúde.

A decisão, tomada por 317 votos a favor, representa um grave retrocesso na proteção de meninas estupradas, segundo especialistas e entidades ligadas aos direitos humanos. A resolução do Conanda apenas orientava os profissionais de saúde sobre como garantir o acesso ao aborto legal, já previsto no Código Penal, sem necessidade de boletim de ocorrência ou autorização dos responsáveis ​​— medida essencial nos casos em que o agressor seja o próprio familiar.

O Ministério das Mulheres manifestou preocupação com a decisão, lembrando que entre 2013 e 2023 o Brasil registrou mais de 232 mil nascimentos de mães com até 14 anos , idade inferior à de autorização sexual. Ou seja, são gravidezes decorrentes de violência de violência. Apesar disso, em 2023 apenas 154 meninas conseguiram acessar o aborto legal.

“Suspender a resolução é fechar os olhos para a violência e falhar com as meninas brasileiras”, afirmou o ministério, em nota oficial.

O projeto inclui diversos deputados representantes da bancada evangélica, dentre eles Marco Feliciano, mas quem encabeça o texto é a deputada Chris Tonietto. Os nomes escancaram que a medida é eleitoreira, às vésperas das Eleições 2026, em busca de votos dos evangélicos e da extrema-direita.

Enquanto a Câmara impõe obstáculos às vítimas, nenhum projeto de envergadura semelhante foi aprovado para garantir políticas eficazes de prevenção, acolhimento ou atendimento psicológico e social às crianças e adolescentes vítimas de violência, abandono e exploração sexual. Não há planos estruturados para ampliar o número de abrigos, investir em delegações especializadas ou fortalecer equipes de proteção social nos municípios.

A prioridade, ao que parece, tem sido legislativa sobre o corpo das vítimas — e não sobre a proteção delas.

Histórico de retrocessos

O PDL 3/2025 não é um caso isolado. Em 2024, a Câmara já havia sido palco de forte acontecimento social após a apresentação do Projeto de Lei 1904/2024 , de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros parlamentares, que equiparava o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples , inclusive em casos de estupro.

O texto anterior pena de seis a 20 anos de prisão para médicos e mulheres que realizaram o procedimento — a mesma punição aplicada a homicidas. Na prática, a proposta criminalizava meninas estupradas que, por medo, vergonha ou desconhecimento, só descobririam a gravidez em estágio avançado.

A tentativa de aprovação foi amplamente criticada por juristas, médicos e organizações internacionais, que classificaram a medida como violência institucional e tortura de Estado .

O contraste da omissão

Enquanto avança em projetos que restringem direitos, o Parlamento segue sem propor medidas concretas de proteção às vítimas de abuso sexual. Faltam políticas públicas integradas entre saúde, educação e assistência social; faltam recursos para garantir a continuidade dos abrigos; faltam profissionais especializados para lidar com o trauma dessas meninas.

Ao invés disso, a Câmara dos Deputados aprova iniciativas que agravam o sofrimento de quem mais precisa do amparo do Estado. Em vez de fortalecer o sistema de proteção, legislar contra ele.

Em um país onde uma menina é estuprada a cada hora , o que se esperaria do Congresso era compromisso com a vida, a dignidade e a proteção da infância — não o aprofundamento da dor.

34 mil crianças vivem em união conjugal no Brasil

Dados do Censo 2022 divulgados pelo IBGE revelam que mais de 34 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos viviam em algum tipo de união conjugal no Brasil, apesar de a lei proibir casamentos civis abaixo dos 16 anos, salvo exceções autorizadas pela Justiça. Desse total, 77% são meninas, o que evidencia um padrão de desigualdade de gênero. O levantamento mostra que, embora parte das respostas possa refletir percepções pessoais — e não uniões formalmente reconhecidas —, o fenômeno ainda é expressivo e revela questões culturais e sociais que envolvem vulnerabilidade infantil e falta de proteção adequada.

Em Goiás, o IBGE registrou 1.241 crianças e adolescentes vivendo em união conjugal, o equivalente a 3,6% do total nacional. O estado aparece na 13ª posição do ranking, com números próximos aos de Alagoas e superiores aos de Mato Grosso e Santa Catarina. Os dados indicam que o problema também está presente na região Centro-Oeste e reforçam a necessidade de atuação dos órgãos de proteção à infância, como Conselhos Tutelares e Ministério Público, para investigar situações ilegais e prevenir novas ocorrências.

Leia também: Câmara aprova urgência para projeto que pode restringir aborto legal em casos de estupro infantil