Viagem e literatura na Academia Goiana de Letras
15 novembro 2025 às 21h00

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Adalberto de Queiroz
A literatura de viagem é uma das metáforas mais antigas e fecundas da experiência humana. Desde a “Odisseia”, a palavra vem narrando travessias em que o deslocamento exterior se confunde com o percurso interior do herói.
Toda epopeia, dos clássicos gregos, passando por “Beowulf” e chegando a “Os Lusíadas”, celebra não apenas o ato fundador das nações, mas também a conquista do mundo, que exige deslocamento e coragem para sustentar a flexibilidade do pensamento. O traço comum a todas essas obras é o movimento em direção a um destino. O enfrentamento de monstros e desafios que precisam ser superados ao longo da jornada.
Poeta persa do século XIII, Shabestari dizia que o verdadeiro viajante é aquele que viaja por si mesmo, mesmo quando está em casa. Essa afirmação sustenta minha resposta à antiga pergunta sobre quem é, afinal, o verdadeiro viajante: “É aquele que viaja por si mesmo, esteja em casa repousando ou caminhando no deserto… O fundamental, de fato, é para onde sua alma está voltada”.
A ideia do movimento, do deslocamento e da descoberta reaparece em tantas obras quantas civilizações conhecemos: nas obras “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”, de Goethe; em “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett; em “Tristes Trópicos”, de Lévi-Strauss. Em todas, o caminho é o grande desafio da transformação.
“Ah, como teria me apaixonado por Natasha”
Albert Camus, em seu “Diário de Viagem”, ao narrar a travessia da França aos Estados Unidos, descreve o Atlântico com “cor de asa de pombo” e confessa ler “Guerra e Paz” a bordo, “com a cabeça vazia para trabalhar”. Ao final, o narrador se revela sonhador: “Ah, como teria me apaixonado por Natasha!”
A viagem, para o franco-argelino, é silêncio criativo, suspensão do tempo, o espaço onde o pensamento amadurece. Na chegada, encontramos um Camus sensibilizado diante da civilização moderna, que retoma seu olhar crítico ao avistar, do navio, a costa americana: “Ao longe, os arranha-céus de Manhattan, sobre um fundo de bruma. Sinto o coração tranquilo e seco, como quando me vejo diante de espetáculos que não me comovem…”
Isso me motivou a escrever o poema “Passado” (ver trecho), do livro “Destino Palavra”:
(…)
Sobre a costa americana Albert Camus viu
“Les édifices, le pouvoir,
la force de l’argent et de l´Amérique”
(…)
O que toda gente negara ao menino,
Sob a costa americana, eu,
um pobre diabo da vila Jaiara, olhei:
a harmonia da linha do horizonte,
o skyline da vila enorme e sonhei,
como sonham outros em outras luas,
anônimos em suas quitinetes, sonhando
palácios da lua, luando neon multicor.
E continuo amando viajar, mesmo que hoje o verbo “viajar” tenha se tornado sinônimo de voar, com todos os incômodos que isso possa representar. Voar, contudo, parece o contrário de viajar: é desaparecer por instantes do mundo, cruzando distâncias a velocidades supersônicas e rompendo o próprio conceito de espaço e tempo.
Atravessamos uma descontinuidade do espaço, desaparecemos no vazio, aceitamos não estar em lugar nenhum durante um intervalo que forma, ele mesmo, uma espécie de vazio no tempo… e logo reaparecemos em outro ponto, num instante sem relação com o lugar e o momento em que havíamos desaparecido.
Ainda assim, permanecemos viajantes: lemos entre aeroportos, escrevemos entre escalas e talvez nunca tenhamos nos movido tanto em imaginação quanto agora.
“Meus sapatos viajaram muito comigo…”, canta o compositor canadense Félix Leclerc.
E se a jornada física se encurta, cresce o desejo de compreender o que nos move. Como ensinou Proust, “a verdadeira viagem de descoberta não consiste em buscar novas paisagens, mas em ter novos olhos.”
Com tantas viagens realizadas, desde a primeira, do menino órfão que partiu de Garanhuns (PE) para Anápolis, aprendi que o destino nos move, mas que, para alcançá-lo, é preciso, como na canção de Peter Seeger, manter os olhos no objetivo: “Keep your eyes on the prize, hold on” (Mantenha os olhos no prêmio, continue firme).
Seja dirigindo por longas horas ou voando em percursos intermináveis, penso sempre na chegada e no prêmio. Na Itália, ao enfrentar trajetos de trezentos quilômetros por túneis e curvas perigosas, recordo que pensava, a cada trecho vencido, no Prosecco que minha mulher e eu beberíamos juntos no destino.
Uma bibliografia mínima para quem se interessa pelo tema inclui: “As viagens”, de Marco Polo; “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe; “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift; “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett; “As Peregrinações de Wilhelm Meister”, de Goethe; “Tristes Trópicos”, de Claude Lévi-Strauss; “As Vozes de Marrakech”, de Elias Canetti; o já citado “Diário de Viagem”, de Albert Camus; “Viagem à Ásia”, de Henri Michaux; “Viagem ao Redor do Meu Quarto”, de Xavier de Maistre; “A Arte da Peregrinação”, de Phil Cousineau; e “Brasil, País do Futuro”, de Stefan Zweig.
Nas minhas próprias viagens à Itália, em 2017, 2019 e na primavera de 2025, percebi que o itinerário exterior serve apenas de moldura para o que realmente importa: o olhar que se renova a cada encontro. Constatei, depois de várias experiências no exterior, que a viagem muda o viajante — e que cada retorno é um recomeço.
Essa certeza se traduz, com elegância e leveza, na canção de Frank Sinatra (It’s Nice to Go Trav’ling): viajar é bom, sim, mas o melhor é voltar para casa.
No meu livro de crônicas (“Entre Esplendores e Misérias”), dedico alguns textos às viagens que fiz ao Japão e à Coreia, onde, entre uma surpresa e outra, vivi uma epifania diante do fenômeno da lua vermelha.
Sim, pensei, viajar continua sendo o mais humano dos gestos: o de seguir adiante, levando dentro de si todos os lugares por onde se passou, e todos os livros que nos ensinaram a caminhar.
No fundo, é fácil concordar com o escritor francês Marcel Proust: “Le véritable voyage de découverte ne consiste pas à chercher de nouveaux paysages, mais à avoir de nouveaux yeux.” (A verdadeira viagem de descoberta não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos.)
Mais do que descobrir, e se fotografar diante de monumentos, é preciso estar atento às pessoas que encontramos durante a jornada. Isso tem algo de místico e metafísico. Importa viajar quando se tem a mente e os olhos bem abertos.
(Este texto foi extraído da conferência “Literatura e Viagem”, que o poeta Adalberto de Queiroz ministrou na abertura do projeto “Diálogos Acadêmicos”, da Academia Goiana de Letras, com mediação do escritor Ademir Luiz.)
Próximos eventos do projeto Diálogos Acadêmicos
Mesa redonda 3 – 18 de novembro
Ademir Hamú e Ubirajara Galli — a arte de escrever biografias
Mesa redonda 4 – 2 de dezembro
Edival Lourenço e Itami Campos — História e literatura
Mesa redonda 5 — 9 de dezembro
Luiz de Aquino e Miguel Jorge — Prosa e poesia
Local: Casa Altamiro de Moura Pacheco. Avenida Araguaia, esquina com Rua 15, Setor Central, Goiânia. Horário: 19h00
