Vela Apagada Por um Sopro, de Solemar Oliveira: uma analogia entre livro e vinho
04 outubro 2025 às 21h00

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Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
Para o leitor, segue esse texto-degustação: “O menino roubou a taça. Pesada, de cristal vibrante. Equilibrou-se no desejo para não derramar uma gota. Saiu para as árvores, o cachorro em seu encalço. Sorveu o líquido roxo, quase a metade. Depois, sentado, o resto. Adquiriu a sensação da descoberta do fogo. Na casa, um movimento. Os adultos buscavam, com olhos caídos, o criminoso no breu. O jantar na mesa. O cachorro latiu. Avisou que o menino estava a salvo. Em tempo, os dois voltaram à casa, caminhando lado a lado. O menino, aos tropeços, sorria.”
O que livros podem ter em comum com vinhos? Seria possível fazer analogias entre esses dois elementos? Após receber meu exemplar de “Vela Apagada Por um Sopro” (Editora Mondru), de Solemar Oliveira, e de saber que o lançamento do livro seria numa casa dedicada à bebida, a La Vinicolla Vinheria, me dediquei a buscar essas analogias.
Sabemos que para se conhecer e servir um bom vinho é necessário estudo, é preciso aprender a harmonizar sabores, entender de uvas, de safras, de aromas. É, portanto, um trabalho sofisticado. Por mais que algumas pessoas gostem de vinhos adocicados, para um enólogo, um sommelier, isso é um verdadeiro pecado. Vinho bom tende a ser mais seco e complexo ao paladar.
Solemar Oliveira, além de um apreciador dessa bebida, é um tipo de sommelier literário, já que sabe diferenciar o que é um texto adocicado de uma escrita de melhor safra e de maior cuidado na produção.
Desde o primeiro título que lançou, “Rosa de Vênus”, vencedor da extinta bolsa de Publicações João Luiz de Oliveira, percebia-se ali um talento especial. Inquieto, não conformista, se dedicou a estudar literatura e, devido a isso, teve como colheita o amadurecimento de sua escrita, assim como os vinhos se tornam melhores quanto mais velhos ficam.
Por ser mais complexa e densa, com intricado trabalho estilístico, sua literatura é como os vinhos melhores, que não são para quaisquer paladares, exigindo do leitor uma certa experiência com leituras mais exigentes.

O conto “Ficção”, que abre o livro, é uma amostra dessa complexidade. Nele, o autor começa a montar um cenário com frases descritivas aparentemente simples que, unidas, formam um mosaico narrativo que não é de simples montagem. Isso é bom, pois embora o universo literário, assim como uma prateleira de vinhos em um supermercado, seja repleto de diferentes opções capazes de agradar diferentes públicos, é sempre desejável que surja algo que saia do lugar comum.
Para se chegar a um bom vinho é preciso que alguém, no campo, o produza a partir do cuidado da terra, da escolha das uvas certas, da adubação criteriosa e da poda, muitas vezes drástica, das videiras. Além disso, não se pode permitir que ervas daninhas estraguem a plantação. Depois da colheita, vêm mais cuidados, na fermentação e no armazenamento.
Solemar também é um severo produtor de textos. Ele não planta quaisquer palavras, ele cuida do solo e não tem medo de podas drásticas, seguindo uma ordem literária atribuída equivocadamente na internet a Carlos Drummond de Andrade: “escrever é cortar”. Palavras desnecessárias e clichês são as ervas daninhas que o autor extirpa sem dó e parece ser mesmo na síntese que o autor encontrou seu melhor campo de cultivo, como é o caso do ótimo “O espadachim”, um texto enxuto que entrega uma história completa com toques de realismo mágico.
O autor é um escritor produtivo, com vários outros títulos lançados, que incluem também romances. E embora o romance possa ser visto como o primo rico dentro da literatura em prosa, escrever contos não é arte fácil, assim como produzir uvas também não é.

Julio Cortázar, mestre do gênero, o definiu como uma “síntese implacável de uma certa condição humana” e deu a outros escritores uma importante lição em forma de metáfora: “enquanto o romance vence o leitor por pontos, os contos devem vencê-lo por “nocaute”.
Há textos em “Vela Apagada Por um Sopro” que são socos no estômago e podem ser colocados entre aqueles das melhores safras.
Tais contos, assim como vinhos, precisam de uma bela embalagem. É importante a escolha até mesmo do rótulo que, se for bonito, mais atrativo será ao consumidor.
Solemar Oliveira prima pela embalagem de seus livros. “Vela Apagada Por um Sopro” possui uma bela capa e um bonito e original trabalho de design, vindo do entendimento de que uma capa chamativa, num universo quase infinito de títulos disponíveis nas livrarias, pode fazer a diferença entre a escolha do leitor ou o abandono da compra.
Normalmente, produtores de vinho trazem seus conhecimentos das gerações ancestrais. Quem quer produzir um bom vinho não pode ignorar as lições daqueles que vieram antes, mas, por outro lado, se alguém pretende fazer um vinho diferente, tem que também ousar.
Nesta obra encontramos referências e reverências a autores como Henry Miller, Philip K. Dick e Albert Camus, talvez seu preferido, já homenageado em outros livros.
Solemar demonstra assim entender a importância da leitura de grandes obras enquanto busca seu próprio caminho, sua marca autoral, como em “Os androides sonham com borboletas mecânicas”, cujo título e conteúdo dialogam com a obra de Philip K. Dick que deu origem ao clássico filme de ficção científica “Blade Runner”.
Uma garrafa de vinho, mesmo aquela que contém o líquido mais caro, pode acabar em poucos minutos. Mas é considerado um erro beber uma garrafa inteira sem que antes sejam realizados alguns rituais bem conhecidos por seus apreciadores. É preciso sentir o aroma, prová-lo com cuidado, acostumar o paladar a ele e deixá-lo respirar um pouco para que o sabor se torne tudo aquilo que é. Se isso não for feito, corre-se o risco de perder a verdadeira essência do produto.
A mesma coisa acontece com “Vela Apagada Por um Sopro”. Seus contos, mesmo os mais curtos, devem ser apreciados sem pressa, devem ser degustados e talvez seja melhor até uma segunda leitura, para não se perder nem a beleza dos textos, nem sua essência profunda.
Em “Judas”, um de meus contos preferidos, temos um inusitado encontro de um bêbado contumaz com uma procissão de Corpus Christi que levará o narrador a uma conclusão triste e verdadeira.
Uma outra similaridade diz respeito aos efeitos do vinho e ao dos contos. O vinho tem o potencial de embebedar, de alterar os sentidos, mas necessariamente não o faz se tomado com elegância. Nos textos desse livro há um quê de elegância que esconde, muitas vezes, uma grande dose de absurdo, herdada do realismo mágico latino-americano, nosso melhor exemplo de deliciosa embriaguez literária. Como exemplo, eu citaria o conto “Mãe”.
Quando se reúnem para beber vinho, as pessoas normalmente não estão interessadas em conversar sobre problemas, nem dos cotidianos nem dos mundiais. Elas querem simplesmente usufruir aquele momento, numa espécie de evasão.
Uma característica marcante na literatura de Solemar Oliveira é que ele escreve somente para contar histórias e, às vezes, nem histórias completas como as conhecemos, com princípio, meio e fim. Isso se dá porque o autor é antes de tudo um estilista das palavras, e sua escrita não quer fazer críticas sociais ou levantar bandeiras.
Mas, assim como na mesa de vinhos vez ou outra possa surgir a discussão de um problema, há no belo conto “Todos nós” o tema do abandono dos pais pelos filhos e em “Evolução” uma crítica inteligente, baseada na questão linguística, aos caminhos que a humanidade está trilhando.
E assim como a degustação de um vinho pode revelar segredos pós-embriaguez, nos contos de “Vela Apagada Por um Sopro” há histórias das quais o leitor só tem acesso a fragmentos. São segredos, textos fora do texto que atiçam a curiosidade do leitor. Como exemplos, podemos citar a história que se desenrola além do conto que dá título ao livro: percebemos que há dor nos personagens, mas de onde ela vem?
A vela apagada simboliza o fim de uma jovem vida? E o que causou essa perda? Cabe ao leitor tentar desvencilhar-se do hábito de ter tudo explicado ao terminar uma leitura e deixar-se levar pela cadência das histórias.
Essas leituras possíveis, além do que está escrito no texto, tornam o próprio texto muito mais interessante. Uma das qualidades desejáveis da literatura é justamente a de oferecer ao leitor outros temas no subtexto, instigá-lo a ver outras possibilidades, como se um livro fosse um portal para formas diferentes de se ver o mundo.
Assim como um vinho bom marca a memória e atiça certas partes do binômio razão-emoção, um bom livro também é aquele do qual vamos nos lembrar muito tempo depois da leitura e do qual podemos tirar várias interpretações.
Por último, há que se pensar nos efeitos que vinhos e textos podem causar em quem os consome. No caso da bebida, há pessoas que se embriagam e ficam violentas, outras ficam depressivas, ou carentes, ternas. Em “Vela Apagada Por um Sopro” o leitor se deparará com textos que lhe causarão estranhamento, nos quais há um misto de violência, como em “Cinema”, um quê de melancolia, como em “Orgulho”, ou até de ternura, em “Coisa de criança”, que me lembrou um episódio de minha própria infância, quando fui apresentada ao único vinho que conhecíamos, o doce e muito ruim “Sangue de boi” e exagerei na dose.
Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.
