Um dia me disseram: “o altruísmo não existe!”
29 outubro 2025 às 21h27

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Rodriana Costa
Especial para o Jornal Opção
“O altruísmo não existe”. Assim, ela finalizou sua palestra, após uma hora de comunicação para uma plateia atenta, sedenta para expor suas percepções quando fosse lhe dada a palavra.
Após as palavras “não existe”, observei olhares indizíveis, cravados na palestrante, como se ela fosse um ser menos humano que todos naquele ambiente. E talvez fosse. Eu a olhei com espanto e curiosidade de quem admira alguém que ousa arrancar uma palavra da boca de muitos, subtraindo-a do dicionário, assim, na cara dura. Imaginei a expressão de Auguste Comte, cunhador do termo filosófico, tão surrado, em nossa contemporaneidade, embasbacada.
Os espantos interpelam por uma resposta urgente. Como ela podia ter feito tal injustiça aos seus ouvintes, pronunciar uma palavra que ainda não havia sido mencionada em nenhum momento até o fechamento de seu discurso?
Alguém, mais ansioso, se apressou em tom de protesto: “Por que você não acredita no altruísmo?”
“Como posso acreditar em algo que acredito não existir?” Devolveu com outra pergunta.
A intenção da palestrante talvez fosse provocar uma discussão filosófica, mas ela agradeceu a presença de todos e abandonou o microfone, em retirada.
O auditório emudeceu por alguns segundos, a se romper em sussurros abafados entre as pessoas, ali presentes, a discutir questões sobre a condição humana. Evidentemente, estavam todos no lugar certo, no momento adequado, mas ficaram no vazio provocativo da palestrante.
Altruísmo era indiscutivelmente certo para mim. No entanto, surgiu uma dúvida sobre onde encontrá-lo. Todos discutem sobre tudo, hoje em dia, para usar uma expressão gasta. Há bolhas para qualquer assunto.
A firme convicção da palestrante diante da pergunta de alguém sedento por uma explicação filosófica, ou uma justificativa bem argumentada que sustentasse sua posição, me fez pensar na busca de compreensão e reflexão.

Então, o altruísmo tornou-se uma questão de existência ou de utopia.
Ecoava em minha mente a voz da palestrante: “o altruísmo não existe” … repetidas vezes. Será? Não seria simplesmente desacreditar em uma palavra por não acreditar. Não fazia sentido eliminar um termo tão antigo. Isso não acontece com muita naturalidade? Questionei-me.
Os léxicos costumam mudar, sumir ou se ressignificar a partir das transformações sociocomunicativas e práticas culturais. Tudo muda quando o meio ou a sociedade adota outros comportamentos ideológicos.
Recorri a Jean Jacques Rousseau, o meio/sociedade corrompe a natureza boa do homem. Ao recorrer ao lema positivista, “Viver para o outro” (Vivre pour autrui), corre-se o risco de se despencar na hipocrisia.
Diante dos preceitos de Rousseau, iniciei a busca por respostas lançando mão do empirismo. Eu queria acreditar que a palestrante moldou tal certeza a partir de suas frustrações com o ser humano.
Evitei os jornais, a fim de não contaminar o meu escopo de pesquisa. Facilmente, nesses veículos de comunicação escancara-se a desumanidade do ser humano, ou a essência do ser humano. Recusava a acreditar que o ser humano fizesse algo para o próximo pensando em uma recompensa para si. Afinal, as pessoas eram boas ou más, ou boas e más? Seria o início de uma reflexão para alçar o altruísmo.
Certo de que poderia encontrar a inocência nas crianças, comecei a observá-las com mais criticidade. Lembrei-me da fase egocêntrica, que evidenciava uma natureza egoísta. Caim matou seu irmão Abel… por um motivo fútil. E tantos outros morrem por motivos frívolos. A história da humanidade é terrivelmente e cheia de horrores, melhor não a ter como referência. Um povo contra outro. Guerra e fome. Ganância por poder. Desigualdade. Estava quase desistindo…
Encontrei uma fagulha: amor materno, incondicional. Entretanto, não valeria… um amor genuíno pelos seus, gerado em suas entranhas, não poderia se configurar amor incondicional ao próximo. Seria amor ligado pelo cordão umbilical. Refutei tal exemplo empírico.
Então, me lembrei dos missionários, pessoas que fazem o bem sem receber nada em troca: por amor ao próximo, unicamente. Isso! Essa é uma questão altruísta. São seres humanos altruístas… sentia essas palavras doces em minha boca, como um achado e um alívio. Amor ao próximo, desconhecido, sem ligação afetuosa!
Estava certo que a palestrante tinha cometido um equívoco.
Então, me senti livre para comentar sobre minhas conclusões com um professor de filosofia. Convicto, com eloquência e uma prova de amor ao próximo, fiz meu discurso bem fundamentado.
O professor me olhava, sem interromper-me, com o ar de quem concordava com cada palavra. Parecia seguir meu raciocínio, reflexivo.
Então, após um silêncio angustiante, dirigiu-se a mim, de maneira despretensiosa:
Decipimur specie recti (Somos enganados pela aparência do bem.), citando a Arte poética, de Horácio”. Será que abdicar de tudo e de todos por uma causa nobre não é uma satisfação para quem os realiza? O que essas pessoas recebem em troca de sua caridade e generosidade?
Respondi, categoricamente: “Nada!”, professor.
“Pode ser que não recebam nada, materialmente falando, talvez, poucos alcancem o reconhecimento por suas ações de caridade, mas há pessoas que vivem para ajudar. Suas missões, indiscutivelmente, são nobres e louváveis, por isso, sentem-se satisfeitos por serem úteis nessa terra, de cumprir um propósito”.
“Seria caridade, o amor ao próximo a fim de alçar a própria paz de espírito, seus ideais, em um mundo desigual?” Perguntei, tentando entender.
O professor respondeu por meio dos preceitos de Rousseau, mesmo, esse, sendo contraditório na natureza do homem:
“Em seu tempo, já havia a tendência à arte de agradar, ‘em nossos costumes uma vil e enganosa uniformidade, e todos os espíritos parecem ter sido lançados numa mesma fôrma: incessantemente a polidez exige, ordena; incessantemente seguem-se os hábitos […] que formam esse rebanho a que se chama sociedade, postos nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas, se motivos mais fortes não os desviarem.’
As palavras do professor reverberaram em minha mente como um som intransponível. Senti uma pontada aguda na fronte. Então, me retirei em silêncio, feito a palestrante de outrora.
