Tradução inédita de Herbert Spencer revive “Filosofia do estilo”, um clássico esquecido

18 fevereiro 2017 às 09h38

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Com tradução de Irapuan Costa Junior, publicada pela Cânone Editorial em 2016, o público brasileiro tem agora acesso a uma das reflexões mais importantes sobre a linguagem, elaborada pelo filósofo Herbert Spencer

Vera Maria Tietzmann Silva
Especial para o Jornal Opção
É a palavra que alça os humanos acima do reino animal. Sabemos, até pela simples observação de nossos animais domésticos, que também eles, como nós, se comunicam com seus donos e entre si, seja para manifestar necessidades físicas (fome, sede, frio) ou de sobrevivência (marcação de território, rituais de acasalamento), seja para suprir carências afetivas, exigindo atenção e carinho. Nós, humanos, criamos outros usos para a linguagem que ultrapassam esse nível básico. É pela palavra que damos forma ao nosso mundo interior, povoado de desejo e imaginação, mas também de frustração e medo. As infinitas modulações dos sentimentos que abrigamos em nosso íntimo não cabem no leque limitado de expressões com que os animais dão voz às suas necessidades. A palavra humana, portanto, se ergue a um patamar mais alto, o da manifestação estética. Somos todos poetas, então? Evidentemente não, mas todo ser humano é sensível à palavra poética. Mesmo quem não tem o dom literário, sabe reconhecer na palavra do outro um eco de seus próprios sentimentos, de suas próprias emoções. O poeta dá voz aos sentimentos coletivos.
Desde a Antiguidade, as peculiaridades da linguagem estética, que conhecemos como estilo, vêm despertando a atenção dos filósofos. Até hoje são basilares duas obras de Aristóteles, a “Retórica” e a “Poética”. Por isso, não é de estranhar que um filósofo britânico do século XIX, Herbert Spencer (1820-1903), também tenha escrito sobre esse tema.
Spencer, que conheceu grande popularidade e sucesso financeiro em vida – algo bastante incomum para filósofos de qualquer tempo ou país – era o que se poderia denominar de scholar, um intelectual aberto a toda forma de saber. Ele não apenas tomou conhecimento das novas ideias que passaram a circular em seu tempo com as obras de pensadores revolucionários, como, por exemplo, Darwin e Marx, mas abriu-se à sua influência, desfazendo a ideia comum que se tem do filósofo como um ser enclausurado em sua torre de marfim, alheio ao que se passa a seu redor.

De fato, em seus escritos, inclusive nesta breve Filosofia do estilo, podem-se vislumbrar traços do procedimento científico que preside os estudos das ciências naturais, certamente inspirados na leitura de Darwin. No terreno dos estudos literários, pode-se dizer que Spencer antecipa, em procedimento, a vertente formalista que viria algumas décadas depois, abrindo caminho para os estudos estruturais na literatura, que tiraram o foco avaliativo das impressões subjetivas do crítico para centrá-lo no texto em análise. Outro filósofo, William James, assim reconheceu a importância desse olhar novo trazido por Spencer a todos os campos do conhecimento a que se dedicou: “Spencer ampliou a imaginação e libertou a mente especulativa de inúmeros médicos, engenheiros, advogados, físicos, químicos e dos leigos em geral”. Um legado, sem dúvida, precioso.
“Filosofia do estilo” não nasceu como livro, mas como um breve ensaio, acompanhado, em algumas edições, de outro estudo, “Um ensaio sobre estilo”, de autoria de T. H. Wright. Ainda que exista disponível uma edição fac-simile do texto de Spencer de 1898, acompanhado apenas das notas de seu editor, Irapuan Costa Junior optou por traduzir a segunda edição americana de 1917, sem o ensaio de Wright. Nesta edição os parágrafos são numerados, traço mantido na tradução, e as notas do editor foram acrescidas, quando necessário, de outras incluídas pelo tradutor. Spencer ilustra sua argumentação com abundantes exemplos colhidos tanto da fala coloquial, como de textos literários, a maioria deles excertos de poemas ingleses. Nestes, o tradutor manteve as citações originais, fazendo-as acompanhar de sua tradução livre – expediente muito adequado tanto aos leitores que dominam como aos que não dominam o idioma inglês.
Inédito em língua portuguesa, “Filosofia do estilo” é um clássico que ficara esquecido e que hoje é bem-vindo às estantes dos estudiosos brasileiros da língua e da literatura.
Vera Tietzmann é professora aposentada da UFG.
* Nota do editor: Este texto foi publicado como apresentação ao livro “Filosofia do Estilo”, de Herbert Spencer (trad. Irapuan Costa Junior. Goiânia: Cânone Editorial, 2016.). A publicação no Opção Cultural foi autorizada gentilmente pela autora.
TRECHO DA TRADUÇÃO DE IRAPUAN COSTA JUNIOR
“[…] as formas mais elaboradas de linguagem adquirem uma força adicional pelo recurso à associação. Sendo habitualmente ouvidas no dia a dia, em conexão com impressões mentais fortes, e sendo costumeiramente encontradas nos escritos mais difundidos. Essas associações acabam por adquirir por si mesmas uma espécie de força. As emoções que muitas vezes são produzidas por pensamentos vigorosos apresentados sob essas formas são parcialmente despertadas pelas formas mesmas. Elas criam como que uma disposição emocional preparatória, e quando as ideias impactantes que se buscam são alcançadas, elas são percebidas de maneira mais vívida.
O uso contínuo dessas formas de expressão, que são igualmente fortes por si sós quanto o são por suas associações, produz a composição particularmente notável que chamamos poesia. A poesia […] geralmente adota esses símbolos de pensamento e a maneira de usá-los em que instinto e análise concordam em escolher como sendo mais eficientes, e se torna poesia pela capacidade de fazê-lo. […] Metáforas, símiles, hipérboles e personificações são as cores dos poetas, que têm a permissão de usá-las quase ilimitadamente. Consideramos “poética” a prosa que as usa com alguma frequência, e a consideramos como “florida” ou “afetada” bem antes que ela ocorra na proporção admitida em poemas. Além disso, note-se que na brevidade – outro requisito de expressões efetivas que a teoria aponta e que a emoção espontaneamente preenche – a fraseologia poética também difere da fraseologia ordinária. Períodos imperfeitos são frequentes; a elisão é permanente; e muitas das palavras menores, que seriam consideradas essenciais na prosa, são simplesmente dispensadas.” (p. 55-56)