Série Violência Contra as Mulheres — Conto de Tainá Corrêa (1)

23 agosto 2025 às 21h00

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Luz fria sobre ventre quente
Tainá Corrêa
Agora
A luz fria da sala cirúrgica é o foco do espetáculo. O anestesista, dois residentes, dois internos, duas enfermeiras, o instrumentador, a pediatra e a estrela da peça, o obstetra, irão chegar a qualquer momento. Por enquanto vejo só o cenário: o corpo da mulher negra que carrega outra pessoa na barriga. A luz fria gela a pele que insiste em existir pra além da camisola verde desbotada. A pele sente. Ela sente. A mulher grávida, sentada na maca, embaixo de um foco de luz, no meio de uma sala cirúrgica, sente. Ela sente. Ela se sente sozinha. Ela sente medo.
Eu, que estava ali para executar mais uma sessão de fotos da estrutura do hospital onde trabalho, paro. Eu também estou sozinha, mas é muito diferente. Aquela mulher é a mulher mais sozinha do mundo. Ela sente medo. E o medo muda tudo.
Eu me aproximo. Me identifico: Oi. Meu nome é Tainá. Eu trabalho aqui no hospital, na comunicação. Entrei aqui pra fotografar as salas, o centro cirúrgico. Você vai ter seu bebê agora?
Sim. Vou.
É seu primeiro bebê?
Não. É meu terceiro. É uma menina.
Ah! Parabéns. Como você se chama?
Eva.
E tem alguém com você? Alguém vai te acompanhar?
Não. Não pode. Meu marido, o pai da menina, está lá fora, esperando. Meus outros filhos estão em casa, com a minha mãe.
Entendi. Eva, né? Eva? Como vai se chamar sua filha?
Elizabeth. Mas eu chamo ela de Lili.
Ela abaixa a cabeça. Eu abaixo a minha também, e por isso, olho a câmera que ainda seguro com as duas mãos.
Ofereço a única coisa que acho que posso, que acho que tenho: quer que eu faça umas fotos do seu parto? Da sua filha nascendo? Eu posso imprimir pra você depois e você vai ter esse registro pra guardar. Você quer?
A luz. Uma luz nos olhos. Sim! Eu quero. Mas eu não posso pagar, moça.
Não precisa. É um presente.
Não era um presente. Era uma tentativa de compensação. Era para mim.
Não é difícil conseguir autorização do obstetra. Meu conhecido de outras reuniões administrativas, ele até gosta da ideia e, por fim, brilha no papel: retira a bebê e a segura pelos pés por uns segundos a mais para que eu possa fazer uma bela foto.

A cesárea é rápida e eu não consigo fazer muitos registros da recém-nascida com a mãe. Um pano verde foi esticado na frente do rosto da mulher e ela nada vê do que acontece em seu corpo. Seus braços estão amarrados na maca, que me parece uma cruz. A enfermeira somente mostra rapidamente a bebê para a mãe, diz que está tudo bem e que ela vai ser examinada e cuidada e que, quando estiverem no quarto, a bebê irá para lá também. A enfermeira leva a bebê embora. Os residentes são autorizados a fechar a paciente. O obstetra sai do palco. Não há mais desculpas para eu ficar ali. Saio também.
Mais tarde descubro o quarto onde Eva está. Passo pela porta do ambulatório e a vejo dormindo, com a bebê Lili ao lado, em um bercinho. Também vejo as outras três mulheres que dividem o quarto com Eva. Uma delas só chora sem parar e descubro depois o motivo. No dia seguinte, levo para Eva algumas fotos ampliadas. Dois dias depois tenho uma reunião com a diretora do hospital. Depois de tudo resolvido, campanha publicitária aprovada, verba autorizada, datas decididas, conto que, quando entrei no centro cirúrgico para fazer as fotos, acompanhei um parto. Pergunto por que não é permitida a entrada de acompanhantes para cesáreas. Porque é oneroso para o hospital, ela me responde. Para ter um acompanhante no centro cirúrgico é preciso higienizar uma vestimenta. Isso é custo desnecessário.
Talvez eu nunca entenda, mas foram essas as palavras que concretizaram a mudança de vida que se iniciou no segundo em que meu olhar cruzou com o de Eva. Desnecessário. A palavra que sempre ecoará, que sempre incomodará. Desnecessário para quem?
Uma semana depois peço demissão e juro, para mim mesma, por mim mesma, nunca mais ser cúmplice do que não acredito. Do desumano, da priorização do espetáculo onde o médico é Deus, do apagamento, do silenciamento.
Eu nunca tinha visto aquela mulher na minha vida, provavelmente nunca mais a veria. Mas foi Eva, a solidão dela, o abandono que ela sofreu sem reclamar, talvez sem notar, que mudou a minha vida.
Antes | 1955
Minha avó, mãe da minha mãe, conta que abandonou tudo quando se casou e mudou para a capital. Não foi meu avô quem pediu para ela parar de trabalhar, foi ela mesma quem viu que aquela atividade não tinha mais espaço, não tinha mais futuro. A medicina avançava, a capital era diferente da roça, uma aprendiz de parteira já não tinha mais nenhum valor diante dos médicos tão importantes e das enfermeiras tão estudadas.

Minha avó conta sempre do último nascimento que acompanhou. Ela tinha mudado há pouco tempo, mas já tinha uma amiga querida, uma vizinha que estava grávida do primeiro filho. A vizinha confiava nela e pedia para que ela a examinasse, de tempos em tempos, só para ver se o bebê estava bem. E estava, minha avó conta: era um menino, eu já sabia. Eu sabia dessas coisas. Ele virou no tempo certo e se encaixou direitinho. Aconteceu de o marido da minha vizinha estar viajando quando ela começou a sentir as primeiras dores. Como eu, ela vinha do interior e não tinha família aqui. Ela estava sozinha e eu não podia deixar de ajudar. Fui com ela pro hospital. Seu avô nos levou de carro e quando entramos, porque também sabia como as coisas eram, ela foi logo dizendo que eu era enfermeira. Enfermeira dela. Particular. Ninguém me pediu nada, nenhum documento ou prova e acabei ficando, como se fosse mesmo a enfermeira dela.
Foi terrível, Tainá. Eu nunca tinha visto uma coisa daquelas. Graças a Deus nunca mais precisei ver. Eu não quero te assustar. E você já ouviu essa história, não já? Minha filha, o médico subiu na Aninha e com o antebraço começou a empurrar a barriga dela pro bebê nascer logo. O doutor gritava que o bebê precisava nascer rápido, que o parto estava demorando e que a Aninha não estava empurrando direito. Como se tivesse jeito errado de empurrar um filho pra fora. Mas eu não podia falar, minha filha. Você entende? Eu tinha que fingir que sabia que era assim, tinha que obedecer, se não iam me tirar de lá e a Aninha ia ficar sozinha naquele pesadelo. O médico me fez segurar os braços da Aninha, pra ele poder empurrar a barriga dela. Eu lembro direitinho dele falando pra Aninha: você não quer que seu filho morra, quer? Também tive de segurar os braços dela pra ele fazer um corte. É só um pique, um procedimento padrão, ouvi uma enfermeira de verdade dizer. Eles não deram anestesia nela, Tainá. Nem depois pra costurar. Ele disse que ia dar o ponto do marido e que logo ela ia ficar boa e podia fazer mais bebês. Fui eu quem segurei o bebê da Aninha enquanto ela era costurada. Enquanto ela chorava sem gritar a dor que sentia.
Ele chamava João. João alguma coisa, agora não lembro direito. Acho que era João Augusto, o nome do bebê. Isso. João Augusto. Quem escolheu o nome foi o pai. O médico, minha filha, não liberou eles para irem pra casa enquanto os roxos nas costelas da Aninha não melhoraram. O marido nunca viu os hematomas. Ela nunca falou sobre isso. Pra ninguém. Quando foi pra casa estava feliz. O marido mais ainda. Pra agradecer ao médico por ter feito o parto e cuidado da mulher dele e salvado o filho dele, ele deu um presentão. Acho que foi uma caixa de charutos importados ou coisa assim. Lembro que foi coisa cara. A Aninha não teve mais filhos. O marido dela teve, por fora. O casamento deles esfriou. Eles acabaram mudando pra outra casa, pra um lugar longe, e nessa época a Aninha tinha virado uma mulher calada. Eu nem a chamava mais de Aninha. Virou só Ana.

Antes | 1985
Minha mãe conta que era assim que as coisas eram: quem tinha dinheiro, pagava e fazia uma cesárea. Ter um parto normal significava pobreza. Pobre não podia bancar, pobre não podia escolher, só pobre tinha parto normal. Já naquela época ela ouvia, aqui e ali: parto normal devia se chamar anormal, a ciência avançou, não há mais motivo para sofrer, não precisa mais estragar o corpo para ter filho. Sem falar das histórias: ficou sabendo? Fulana ficou tão larga depois do segundo filho que o marido a trocou por uma mais nova.
Minha mãe agendou a primeira consulta do pré-natal com um médico super recomendado por uma amiga, mãe de duas crianças. O médico, que a recebia sempre pontualmente, sempre todo vestido de branco, dizia, sorridente, que tudo daria certo, que ela não precisava se preocupar com nada, que montasse o enxoval, contratasse logo a babá, que ele entregaria uma criança saudável nos braços dela em poucos minutos. Dia 25 de março, parece uma boa data, não acha? Dá numa quarta. É bom porque vocês estarão em casa no fim de semana. Se organize para fazermos seu parto logo cedo, às 9h00 para você não ter de ficar muito tempo de jejum, ele disse.
Minha mãe nunca soube, nunca saberá, mas o médico simpático e seguro, que fez exatamente o que prometeu, era João Augusto. Dr. João Augusto, um dia, foi o bebê que minha avó apalpou ainda no ventre e depois segurou no colo enquanto a mãe, a Aninha rasgada e cortada, era costurada em Ana.
Eu nunca soube, nunca saberei, mas o Dr. João Augusto, o obstetra que me tirou do útero de minha mãe, no dia e na hora que ele marcou, já era, na época, o pai de Eva. A Eva que agora vejo, que agora é a mulher mais sozinha do mundo.
Minha avó nunca soube, nunca saberá que o bebê João Augusto iria repetir o pai. Aquele pai que, sabe-se lá por que, estava viajando quando ele nasceu. João Augusto manteve uma amante, uma vida inteira e o caso acabou se tornando uma segunda família. Com Maria, a empregada da casa de sua mãe, João Augusto teve uma filha, Eva. Eva que agora é a mulher mais sozinha do mundo.

Ninguém nunca saberá quão escondidas ou secretas esta amante e esta filha realmente foram. Só é possível saber que foi dessas coisas que acontecem em toda família, em tudo quanto é lugar, que são abafadas, jogadas para debaixo do tapete, mas que definem tudo, para muito além do que contamos.
Dr. João Augusto, depois de me exibir para minha mãe e fechar o corpo dela, fez mais quatro cesáreas e foi almoçar na casa de Maria, a amante. Ele gostava mais da comida dela do que a da sua mulher. Dr. João Augusto nunca soube que minha mãe não conseguiu me amamentar. E nem se importaria. Quem amamentava, naquela época, era pobre. Pobre não tinha dinheiro para comprar as modernas fórmulas que nutriam adequadamente. Dr. João Augusto nunca soube que minha mãe teve depressão pós-parto. Na verdade, nem minha mãe soube o que teve. Ela só sentia uma tristeza infinita e profunda que escondia de todo mundo. Ela não sabia como ser mãe, se sentia incapaz, impotente, insuficiente, esvaziada e, ninguém nunca soube, mas ela não sentia amor pela bebê que precisava cuidar.
Mas meus pais, os dois, adoraram o Dr. João Augusto. Saíram comigo da maternidade felizes e gratos. Tão gratos que indicaram o simpático Dr. João Augusto para todos os amigos. Tão felizes que foi o Dr. João Augusto que eles procuraram depois para fazer o parto das três outras filhas que vieram depois de mim. Minha mãe teve quatro cesáreas. Uma das minhas irmãs não sobreviveu, mesmo tendo ficado na UTI por um bom tempo. Não falamos sobre isso, eu não poderia saber, e ninguém nunca ousou dizer todas as palavras necessárias para contar para meus pais, mas minha irmã era prematura. A cesárea foi feita antes da hora.
Agora | 2005
Agora eu vejo Eva, a mulher mais sozinha do mundo, e a tradução de seu abandono se torna clara para mim no instante em que nossos olhares nos atravessam. Ela sente medo. Ela está sendo violentada, aqui na minha frente. E sequer percebe.
Depois | 2015
Um dia eu vou ter um filho. Eu vou desejar e sonhar. Vou me preparar, me informar, planejar, porque sou dessas. Vou gestar com cuidado, me preocupando com todas as decisões que precisarei tomar para que, desde sempre, eu ofereça o melhor para meu filho. E isso me guiará e me modificará. Eu me tornarei outra.
Quando chegar o momento, vou descobrir que fazer nascer um filho é muito mais complexo do que eu podia imaginar. Que as escolhas para o nascer são muito mais importantes do que eu pensava. Grávida, vou entender que vivemos em uma bolha dentro de uma bolha. E que nesse nosso mundinho, as informações são manipuladas, camufladas, desviadas, distorcidas. Mas escolherei o médico certo, farei aulas, me juntarei h grupos e lerei. Eu irei parir.
Minha bolsa vai romper às 23h00 de uma quinta-feira, em um restaurante, no meio do jantar. O médico vai atender a ligação que eu farei à meia-noite, quando as contrações começarem a se intensificar rapidamente. Vou chegar na maternidade depois de 1h00, quase junto do médico, que vai me examinar e dizer que tenho nove centímetros de dilatação, mas a cabeça do bebê ainda está alta. Você precisa fazer força a cada contração, ele dirá. Eu farei. E ficarei exausta. Vou sentir que não tenho mais forças ao mesmo tempo em que seguirei vivendo a dor impossível das contrações, sem trégua, sem tempo para descanso. Eu vou urrar de dor, vou sentir que estou morrendo. Então uma enfermeira, uma das que entram e saem da sala sem que eu consiga olhar de fato para elas, me dirá: se você estivesse usando a energia que usa pra gritar, pra fazer força, seu bebê já tinha nascido. E se ele não nascer logo, vai ter problemas. Eu não vou ver, nunca vou saber, mas a enfermeira que me dirá isso será a Eva. Que também não irá me reconhecer no estado bicho em que estarei. Ela também não saberá que irá mudar minha vida mais uma vez. Dessa vez com palavras.
Depois | 2025
Um dia eu me tornarei uma doula. Eu sempre saberei que foi a violência das palavras daquela enfermeira, da Eva, no parto do meu filho que me fizeram mudar de rumo, de profissão, de missão. Eu me transformarei no processo de preparação e estudo e, por fim, estarei ao lado das pessoas que lutam por um nascer digno, humano e gentil. Estarei no lado oposto da violência.
Um dia uma gestante irá me procurar e me contratar. Lili terá 25 anos e estará no fim da residência em cardiologia. Lili terá engravidado do namorado e me contará que é órfã de mãe. Ela tem dois irmãos mais velhos que moram longe, não se dá bem com o pai, não tem uma boa relação com a família da mãe. Sou neta da amante, ela me dirá, e meu avô é um médico cesarista. Você certamente já ouviu falar no Dr. João Augusto. Talvez pelos processos, talvez tenha visto na TV, Lili falará com olhos de vingança, completando: sou médica como meu avô, mas nunca serei como ele. Eu vou cuidar do que ele não cuidou, do coração.
Eu verei e ouvirei a solidão de Lili. Solidão herdada, isso eu nunca saberei. Também não saberei que será a segunda vez e não a primeira, que terei um desejo de acolher essa mulher, de colocá-la no colo e cuidar. As coisas são como têm de ser e, afinal, a gente só fica sabendo do que precisa saber.
Um dia Lili entrará em trabalho de parto e apesar de lento, tudo correrá bem. Após muitas horas de contrações doloridas, ela chegará em dez centímetros de dilatação e então, apesar de todos os indícios de que tudo está bem, que seu bebê nascerá em breve e com saúde, ela decidirá que chegou ao seu limite e que quer uma cesárea.
Ela primeiro dirá à sua médica. A médica, reconhecida por ser uma obstetra humanizada, defensora radical do nascer natural e do parto com acolhimento, não dará ouvidos à mulher-bicho que pare na banheira adornada com cordões de suaves luzes amarelas. Lili gritará uma, duas, três vezes, dizendo que não quer mais aquilo e sua voz se sobressairá à música de conforto que ela mesma terá escolhido com cuidado por muitos meses, seguindo minha orientação. A médica olhará para a gestante como quem olha uma criança que não sabe o que diz. A médica engambelará Lili, dizendo que sim, claro, que vai preparar tudo, chamar o anestesista. Lili perceberá a manobra. Ela fará uma última desesperada tentativa de ser ouvida. Ela agarrará minha mão com a força que vem de seu ventre, de antes dela, de tudo o que germinou e cresceu por ter sido reduzido, ignorado e deixado guardado, às sombras, ela olhará dentro de mim e além e antes, e dirá com a voz de todas as mulheres, principalmente as sozinhas, as que tiveram medo:
Eu não quero mais isso. Eu quero uma cesárea agora.
[Minha gratidão à Fernanda, Maria Paula e Dayanne, que são luz para mim e madrinhas deste conto.]