Série Violência Contra as Mulheres — Conto de Soraya Castro (2)

30 agosto 2025 às 21h00

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Minha pele conhece o silêncio dele
Soraya Castro
Especial para o Jornal Opção
A água escorre quente demais, sempre quente demais, nas minhas mãos que tremem. Não tremem. Ele disse que eu tremo por qualquer coisa, mas não estou tremendo agora, só fazendo café. Café como todos os dias, sábados quando ele está, quando não está.
Hoje não está.
Saiu sem dizer nada, levou a chuteira vermelha, aquela que eu dei no aniversário dele dois anos atrás. Quando ainda ríamos. Mas a gente ainda ri, claro que ainda ri, ontem mesmo ele riu daquele filme. Ou foi anteontem? Não lembro bem se também ri. Os dias se misturam quando ele fica assim, nesse silêncio que pesa mais que palavras.
O café cheira a domingo mas é sábado ainda. Sábado de manhã e ele não me olhou mais ontem depois daquela foto que eu curti. Só curti, um colega do trabalho sorrindo num churrasco, nada demais. Todo mundo adora um churrasco. Todo mundo curte fotos dos colegas.
Mas ele viu. Será que não posso ser todo mundo?
Ele sempre vê tudo mesmo quando não está olhando, tem olhos dentro da minha cabeça que me veem curtindo fotos de pessoas conversando e rindo. Nossa, quando foi a última vez que ri alto? Rir sem calcular se o som está certo.
Faço duas xícaras, é automático, nem penso. Mesmo quando ele não está porque senão fico perdida, como se faltasse algo. A cozinha tem um ritmo, uma coreografia que inclui os dois. Mas hoje a xícara dele fica cheia, esfriando no balcão como uma pergunta sem resposta.
Quando ele volta? Volta, voltará? Não sei, não posso saber. Ele decide essas coisas, sempre decidiu. Quando sair, quando voltar, quando falar, quando silenciar, quando me tocar, quando me ignorar.
Minha pele conhece o silêncio dele, o jeito como ele para de falar, para de olhar, para de existir comigo sem deixar de estar presente. Ocupa todo o espaço da casa mesmo quando não está, como agora que posso ouvir passos no corredor. Mas é só imaginação, só o barulho do vizinho ou do vento ou do meu coração que bate diferente quando ele está chateado.
Não bravo. Chateado.
Ele não fica bravo, não é homem de ficar bravo. Fica decepcionado, e isso é pior, muito pior que grito. Quando ele fica assim meu coração bate como se quisesse se esconder dentro das costelas, cada costela uma proteção insuficiente.

A cozinha de repente parece pequena demais, o ar denso demais. Vou para o quarto, preciso me deitar.
Nosso quarto que é mais dele que meu. A cama feita do jeito certinho, fronhas alinhadas, lençol esticado sem rugas. Ele gosta de ordem, eu também gosto. Gostava antes dele? Não lembro mais o que era antes, o que veio depois.
O quarto do lado poderia ser de criança, mas não é. Três anos de casamento e nada. Ele diz que ainda não é hora, que precisa de estabilidade. Mas por que sempre ele quem decide? Às vezes imagino uma criança aqui e penso como seria bom ter alguém que me amasse sem condições, sem silêncios. Mas depois penso que um filho seria nosso para sempre, um fio que nunca se cortaria mesmo se eu quisesse cortar todos os outros. Talvez seja por isso que eu também queira esperar. Ou talvez esteja pensando besteira de novo.
Deito na cama do lado direito. Meu lado, foi ele quem disse que era meu lado? Ou escolhi sozinha? Ele é maior, precisa de mais espaço. Faz sentido. Tudo faz sentido quando ele explica.
Hoje eu poderia deitar no meio. Ele não está, não vai saber. Mas meu corpo não sabe como se mover para além dessa linha invisível que divide a cama. É como se existisse um muro que só eu sinto.
Tento esticar a perna esquerda pro lado dele.
Meu músculo repuxa, se contrai sozinho. Quanto tempo faz que não ocupo espaço sem pedir? Mas não preciso pedir, isso é bobagem. Ele que pergunta as coisas antes, é cuidado.
Ou é medo?
Ele nunca me fez mal, nunca levantou a mão. Só segurou meu braço algumas vezes quando eu estava sendo teimosa. Segurou com força? Talvez. Homens não sabem a própria força.
Na segunda-feira tinha uma marca roxa pequena, mas eu tenho a pele sensível.
Suas mãos são grandes. Quando ele gesticula eu me afasto, é reflexo. Como bicho pequeno que se encolhe antes mesmo de ver o perigo.
Por que eu tenho esse reflexo?
O teto tem uma mancha de umidade que parece um mapa marrom-escuro, continentes de mofo que desenham um lugar distante onde as mulheres talvez deitem no meio da cama, esticadas como estrelas. Pensamento absurdo. Eu que estou sendo estranha, pensando besteira.
Sozinha demais a gente não cria problema onde não tem. Por isso ele não gosta que eu saia muito, que tenha muitos amigos. Do trabalho para casa. Me conhece melhor que eu mesma. Espero.
Quando conheci ele, tinha tantos amigos. Onde estão? É normal, as pessoas se afastam quando você casa. Não foi ele que me afastou, foi a vida.
Minha prima veio aqui mês passado. Perguntou se eu estava bem, se estava feliz. Perguntou por que eu tinha emagrecido, por que não saía mais, por que parecia cansada. Eu disse que estava tudo bem, que casamento é assim mesmo, que a gente muda.
Ela ficou me olhando com aquela cara que eu conhecia desde criança, cara de quem não acredita.
“Se precisar de alguma coisa”, ela disse antes de ir embora. “Qualquer coisa, qualquer hora.”
Na época achei dramático, exagero dela. Mas hoje, neste silêncio em que fui colocada, suas palavras voltaram.
Qualquer coisa, qualquer hora. Qualquer hora.
Será que ela quis dizer qualquer coisa mesmo? Será que incluía isso que estou sentindo agora, essa coisa que não sei nomear mas que aperta o peito, que faz meu corpo recuar sozinho, que me ensinou a pedir desculpa por existir?
Levanto, volto pra cozinha. A xícara dele esfriou, jogo fora, faço café novo. Caso ele volte pra almoçar, caso queira, caso não esteja bravo demais. Bravo sim. Ele não fica chateado.
A cozinha me acalma, aqui sei o que fazer. Tenho função, propósito. Posso preparar comida, organizar, limpar. Posso ser útil. Na cozinha sou competente, melhor que no trabalho, sou boa esposa. Boa esposa? Já era boa esposa antes de conhecê-lo?
Mas no quarto, sozinha, começam as perguntas. Por que as perguntas só chegam no quarto? Porque lá não posso fingir que estou ocupada, lá não tenho como escapar de mim mesma.
Volto pro quarto, desta vez estico o braço esquerdo pro lado dele da cama. Meu ombro protesta como se estivesse violando uma lei. Mas insisto, mantenho o braço ali.
É minha cama também. Minha casa também. Minha vida também.
Minha. A vida.
Quando foi a última vez que tomei uma decisão sobre minha vida? Não qual sapato usar, uma decisão real. Sobre meu futuro, meus sonhos.
Quando parei de sonhar?
A mancha no teto aumentou de tamanho. Parece o mapa de um lugar onde eu poderia ir. Não vou, claro, não posso. Não sozinha. Mas pela primeira vez em muito tempo, imagino como seria.
Minha mão pega o telefone sem que eu ordene, como se soubesse o que fazer antes de eu mesma saber. Os dedos tremem, deslizam pela tela, procuram o nome dela na lista. Está lá ainda, depois de tanto tempo. Por que será que não apaguei seu contato?
Prima.
Ela falava alto, ria alto, ocupava todo espaço. Ele achava vulgar, mal-educada. Mulheres não podem ser assim. E eu concordava, ou fingia que concordava. Fingia. Ela sempre foi o máximo.
Hesito. O dedo paira sobre o número. Se eu apertar, se ela atender, o que vou dizer? Como explicar essa coisa que não sei explicar?
Respiro fundo. Aperto o número.
O telefone chama uma vez, duas vezes. Meu coração bate no compasso das chamadas.
“Alô?”
Minha voz sai diferente quando respondo, mais inteira:
“Sou eu. Você disse qualquer coisa, qualquer hora.”