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Trinta e três anos essa noite

Maristela França

Especial para o Jornal Opção

Passaram-se trinta e três anos da terrível noite em que perdi uma irmã e ganhei um filho.

Minha irmã era uma mulher doce e carinhosa que, um dia, resolveu dar fim às humilhações que lhe eram impingidas de todas as formas pelo marido, um homem rude e medíocre que só conseguia se expressar por sinais de violência. Eram constantes ofensas verbais, físicas, psicológicas, traições.

Tão tolo e cego que era que não percebeu quando a gota d’água chegou. Ela disse basta e foi viver sozinha com o filho pequeno. Durante mais de um ano recebeu ameaças e promessas ocas do ex-companheiro, que tentava inutilmente uma reaproximação. Na verdade, queria recuperar sua propriedade perdida, para voltar a trancá-la em seu mundo pequeno e sem brilho.

Esse homem rude e medíocre fez nosso mundo desmoronar.

A noite começou comum. Eu estava em casa com minha família, meu marido, minha filha, meus filhos. Por volta de 20 horas recebi uma ligação de mamãe dizendo que estava indo à casa de minha irmã porque o “infeliz” estava lá fazendo ameaças. Os vizinhos avisaram.

Juntamente com meu marido, apanhamos mamãe em sua casa e partimos para o local. Ao chegarmos lá, ela, aos prantos, estava saindo acompanhada por policiais. O já quase assassino vinha logo atrás, aos berros. O que ele faria já estava no ar, apodrecendo a noite. Porém, infelizmente, ninguém acreditou que sua rudeza e mediocridade o fariam chegar tão longe. A maioria das pessoas de boa-fé pensa dessa forma, o que é um grande equívoco. Nunca estamos preparados para o pior, mesmo sabendo que o pior grita a nossa volta. 

Entramos no carro e partimos, deixando os gritos para trás, cada vez mais abafados pela distância. Logo saberíamos que não conseguimos ir longe o suficiente. De lá, fomos até uma delegacia e fizemos um registro da ocorrência. Algo que minha irmã nunca fizera antes. Era uma propriedade obediente e discreta, certamente assim pensava o sujeito.

Homem agride mulher 1

Após sairmos da delegacia, dirigimo-nos à casa de mamãe. Descemos do carro: Mamãe, eu com o filho de minha irmã no colo e ela logo atrás de mim. De repente, o monstro saiu detrás da casa atirando nela… um, dois… cinco tiros! Corri para dentro da casa, que já fora aberta por minha mãe, segurando nos braços o meu querido sobrinho, tão pequeninho. Ainda pude ouvir ela dizendo: “Não me mate, não me mate”! Não morreu naquele momento.

O assassino passou pelo meu marido, que ficara encostado no carro, e desapareceu. Acorreram os vizinhos e levaram-na a um hospital, onde se constatou que nada poderia ser feito e que ela deveria ser levada para a capital, onde havia mais recursos médico-hospitalares. Já era quase meia-noite. Partiu-se à busca frenética por um avião que fizesse o traslado. O pouso aconteceu no aeroporto às 4h30. Uma multidão aguardava o embarque, pois, a ida da ambulância fora acompanhada, madrugada adentro, por uma fila enorme de veículos. Minha irmã era muito querida, o que certamente irritava seu “dono”.

Eu que, inicialmente, ficara tomando conta de meu sobrinho, e até aquele momento não chegara perto de minha irmã, também fui ao aeroporto para a despedida. Fui chamada por ela. Quase não suportei a visão. Ela, que já era bem branquinha, estava muito pálida e com os lábios e orelhas roxos, desfigurada pela violência. Sussurrou-me baixinho: “Mana, cuide de meu filhinho por mim…”. Em prantos, eu prometi que o faria.

O avião decolou. Não era mais uma máquina voadora de ferro. Foram as asas que levarem minha irmã para outra vida.

Enquanto o avião desaparecia no horizonte, olhei nos olhos de meu sobrinho, agora meu filho, repeti, repeti e repeti a promessa. Daria para ele todo carinho e apoio de uma mãe dedicada. 

Meses depois, em meu coração e em minha alma, ficou gravado o dia em que ele, pela primeira vez, chamou-me de “mamãe”, de forma espontânea. Respondi: “Sim, sou sua mamãe”, e a alegria estampou-se em seu rostinho.

Foram-se trinta e três anos. Mas ante a lembrança, a dor teima em voltar e choro feito criança. Meu consolo que é a promessa continua sendo repetida todos os dias. Mas agora a criança de minha irmã, nossa criança, me responde, em atos e palavras, dando-me todo carinho e apoio de um filho dedicado.