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O silêncio que grita

Letícia Carvalho

Especial para o Jornal Opção

Clara acordou no meio da noite, o corpo imerso numa inquietação que os olhos ainda fechados não conseguiam conter. Um suor frio corria pela sua testa, e o quarto parecia maior e mais escuro do que nunca, preenchido por sombras que pareciam se multiplicar. Mas não eram as trevas ao seu redor que a assustavam — era o universo acinzentado que ela carregava dentro de si, um universo de medo, humilhação e dor que vinha crescendo a cada dia.

Tudo começou como um conto de fadas moderno. Ela lembrava quando Lucas bateu à sua porta pela primeira vez, um sorriso sincero iluminado pela luz da manhã. Era gentil, engraçado, cheio de atenção, aquele tipo de homem que Clara nunca imaginou que pudesse se aproximar dela, uma mulher simples, cheia de sonhos, mas marcada por desilusões do passado. Seus colegas diziam que Clara merecia alguém melhor, e ela acreditou.

Nos meses seguintes, o cenário mudou lentamente. As pequenas palavras carregadas de desprezo começaram a invadir seus dias, disfarçadas de brincadeiras, conselhos ou ciúmes. “Você está gorda”, “Por que precisa sair com essas amigas? Você não precisa delas”, “Essa roupa não te valoriza”. No começo, Clara desconversava e sorria para esconder os machucados invisíveis que essas palavras deixavam em seu coração.

Depois vieram os olhares severos e a voz alta. O primeiro grito — abafado, talvez até irônico — ecoou na cozinha numa noite qualquer. Lucas reclamava de um prato fora do lugar. “Você não sabe nem arrumar uma casa!” A frase cortou Clara como uma lâmina afiada. Ela se encolheu, mas não disse nada. Aprendera a silêncio, a esperar tempestades e se proteger da chuva que não cessava.

Violência contra a mulher 5666

As agressões físicas chegaram lentamente, quase imperceptíveis, como se fossem parte natural daquele relacionamento doentio. Um empurrão, um tapa disfarçado de “castigo”, um puxão no braço para que ela obedecesse. Clara passou a andar na ponta dos pés dentro de casa, olhava para os cômodos repletos de memórias que já não tinham mais cor, procurando um refúgio que não existia.

Naquela noite em particular, havia algo diferente — algo que fez Clara despertar de um torpor que vinha a dominando há tempo demais. Lucas estava mais agressivo, seus olhos brilhavam com um misto de raiva e possessividade que fez Clara encolher sob o cobertor. Aquele som abafado, que antes podia ser confundido com carícias, transformou-se num pedido desesperado para que ela não reagisse, para que tudo permanecesse escondido.

Mas o que ela sentiu não foi silêncio — foi um grito preso na garganta, um grito que clamava por liberdade, por vida. No banheiro, quando olhou para o espelho, não viu mais a mulher de outrora. Viu cicatrizes, olheiras que contavam histórias não ditas, lábios trêmulos e um corpo que parecia cada vez mais distante da alma que ainda lutava para respirar.

Foi ali, naquele instante, que Clara percebeu: o silêncio que defendera até então não a protegia, ele a aprisionava. Não era o medo que deveria comandar sua vida, mas a coragem que insistia em nascer entre os cacos de seu coração.

Na manhã seguinte, com as mãos trêmulas e o peito apertado, Clara pegou o telefone. Cada número discado era uma batalha: amiga querida, centro de apoio, polícia. Ela falava pouco, chorava muito, mas falava. As palavras saíram como um rio que rompeu a barragem do medo.

A jornada que se seguiu não foi fácil. Clara enfrentou olhares desconfiados, perguntas dolorosas, o peso do julgamento social. Os relatos fizeram sua voz ficar rouca, mas deram vida ao seu grito. Ela descobriu que não estava sozinha — outras mulheres, tantas outras mulheres, viviam suas próprias tormentas em silêncio. E juntas, elas começaram a se erguer.

Nos encontros de apoio, Clara encontrou força nas histórias alheias, inspiração em cada mulher que escolhia reescrever seu destino. Passo a passo, ela construiu um caminho de coragem e esperança. Os dias difíceis vieram, mas vieram também as manhãs claras, os sorrisos genuínos, as pequenas vitórias.

Quando Clara saiu daquela casa pela última vez, levou consigo uma mala cheia de coisas simples: roupas, documentos, algumas fotos, mas, acima de tudo, o desejo imenso de ser livre. A liberdade que antes lhe parecia um sonho distante agora era seu horizonte, claro e firme.

Entendeu que a violência contra a mulher pode tentar roubar a vida, o amor-próprio, a dignidade, mas nunca conseguirá calar o desejo de viver plenamente. O silêncio que antes a aprisionava agora se transformava no grito que liberta, que inspira, que conecta.

E Clara gritou — não mais presa na escuridão, mas iluminada pela força do seu próprio renascimento.