Série Violência Contra as Mulheres — Conto de Leonardo Teixeira (13)
22 novembro 2025 às 21h00

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A casa engolidora de pássaros
Leonardo Teixeira
Especial para o Jornal Opção
Era uma bela casa num bairro nobre voltada ao lado sul da cidade, onde o metro quadrado valia mais que o quádruplo de outros bairros. Ali na região normalmente se esperaria uma paridade com as outras de classe branca, alinhadas como os dentes de quem pudesse pagar os clareamentos mais tecnológicos dos dentistas de grife (naqueles consultórios que possuem salas de espera com entretenimentos, lanches e o cafezinho fica no “coffee break time”).
A casa era toda branca por fora e avermelhada por dentro. Da rua via-se apenas vislumbres pelas frestas do portão. Muros altos, imponentes, onde gerânios pendiam como cortinas embriagadas. Lá dentro da casa tudo era de um vermelho espesso: o sofá, o aroma, o silêncio, o medo. Como se o ar fosse coalhado de sangue.
Clara morava ali antes mesmo do papel passado em cartório. Claro que, ironias à parte, de claro só havia o nome. Os olhos dela eram dois poços onde uma luz antiga, quase extinta, ainda oscilava titubeante. Caminhava leve, como se pedisse desculpas ao chão. Ninguém sabia muito dela. Sabiam muito dele, com condecorações, placas de homenagens, certificados e títulos de cidadão.
Ele era conhecido por Doutor Arnoldo, com a relevante reverência que só os que confundem medo com respeito são capazes de manter. Terno impecável, sapatos sem meia (por mais estranho que seja, virou modinha e mania tal qual morango do amor), palavras cirúrgicas, mãos que salvavam no hospital e esmagavam em casa. A cidade quase inteira sabia. As mais antigas primas profissionais diziam que com ele os limites entre o prazer e a dor eram difíceis de distinguir. Mas fingir era o que a sociedade melhor fazia. Do mesmo jeito que fazem com políticos, líderes religiosos, e várias outras classes de pessoas rotuladas erroneamente de importantes.
Clara colecionava pequenas dores e mortes. Quando a dor é mutuamente desejada e consentida, ainda se entendia. O problema é que ele buscava romper limites, fundilhos, cordas e sufocamentos. Buscava sempre quebrar o recorde, alargar e ampliar as estruturas e punições. Tudo começou com um silêncio. Depois, um copo quebrado. Um puxão de braço. Uma ausência no jantar com as amigas. Um tapa disfarçado de “foi você quem provocou”. Uma flor comprada no supermercado para disfarçar a culpa. O ciclo sempre foi assim no mundo: tensão, violência e arrependimento. E, as desculpas, sempre bem feitas com pontuação e súplicas perfeitas para enredo e encenação.
No quintal, o adorno de parede era uma gaiola sem porta. Clara cuidava de um canário que não cantava. “Ele deve ser é assim mesmo”, dizia, sorrindo curto e sem graça. O pássaro apenas a olhava, quietinho, como quem carrega um segredo nos ossos. Talvez se reconhecessem como parceiros de asas quebradas.
Certa noite, Clara acordou assustada como se tivesse sido enterrada, com gosto e cheiro de terra úmida. Era só um pesadelo, mas se transformaria em sonho. Não havia chuva na região nem no sonho. Apenas um buraco crescendo dentro dela.
Aos poucos, começou a cavar. Não no quintal, mas na memória. Encontrou escondida nos túmulos a menina de tranças que brincava de boneca, colecionava pedrinhas e acreditava em estrelas e outros mitos. Lembrou-se da moça que queria estudar literatura e viajar para lugares com nomes estrangeiros. Nos escombros encontrou poemas antigos, rabiscados no verso de guardanapos e sacos de pão. A cada página, uma costura se rompia. A cada lembrança, um osso se realinhava. E a escrita se desenvolvia muito além da terapia.
Começou a escrever. No início tudo era guardado em pequenos bilhetes escondidos em lugares improváveis (dentro de uma chaleira de enfeite, sob o fundo falso do armário, entre as páginas de um livro de receitas que nunca usava). “Eu tenho que me lembrar que eu existo… Se eu morrer, apenas a casa saberá primeiro… Hoje ele me apertou o braço com tanta força que senti o osso dialogar com Deus… Ele nunca me olhou nos olhos, agora vai me olhar de costas…” Como se aqueles bilhetes fossem mais que pedidos de socorro, eram sementes que germinariam um dia.
Escreveu um poema “Mulher túnel. Cinto que gira como lua murcha ao redor da carne costelada. Costuro silêncio com linha de vento e agulha de medo, passando uma pomada de vergonha. Cada azulejo do banheiro absorveu os gritos e as preces. Entre cada azulejo uma fissura, no meio dela um verso, e no verso um túnel. Cavo com palavras miúdas escondidas sob o tapete das rotinas. Guardo verbos em frascos entre alvejantes e remédios vencidos. Meu prazo também venceu. A porta sempre foi parede, agora vou sair pelos ossos da casa, deixando vestido pendurado. Vai me procurar nos espelhos e encontrar rachaduras, nas sombras não estarei. Nos quartos ficam fantasmas. Na casa sem ninho, pássaro sem asa, atravessa em túnel. Planto uma semente de pássaro pra germinar uma mulher no outro mundo”.
Depois do poema veio seus melhores textos. Não histórias, mas mapas, planos e instruções para a fuga. Um detalhado planejamento, com rotina que incluísse um novo nome e visual. No início, com medo. Depois, com fúria.
Na tarde em que Clara desapareceu, a casa estava em silêncio. Doutor Arnoldo ligou para: amigos, hospitais, parentes e polícia. Disse que ela simplesmente sumiu, como se fosse um objeto perdido. Procuraram por semanas. Revistaram hotéis, rodoviárias, hospitais, abrigos. Nada.
Mas havia rumores. Uma mulher foi vista em outra cidade, cabelos curtos, olhos firmes. Dizia-se que dava oficinas de escrita para vítimas de violência. Que ensinava mulheres a transformar feridas em palavras, palavras em armas, armas em asas.
Arnoldo continuou na mesma casa, agora mais branca, mais fria. Os gerânios secaram. O canário morreu. E os espelhos, estranhamente, estouravam sozinhos. Taças de vinho e copos de cerveja também se estilhaçavam ao chão.
Alguns juram que, geralmente em noites de lua minguante, você consegue ouvir, ao longe, uma canção aguda vindo do vento. “É a Clara!”, dizem os mais crédulos, ensinando outras a voar.
A casa ficou. Branca por fora, vazia por dentro. Uma carcaça que já não engole pássaros, mas sussurra histórias de fuga pelas frestas.
