Matilda quer ler

José Nascimento

Deixe isso aí, mulher, não cabe mais nada, Paulo me disse quando percebeu o livrinho no meio da bagagem. Reparei que o olho cego ficava mais azulado debaixo da luz do lampião, mas o outro, saudável, se fartava de rigidez. Guardei o livrinho, que foi presente de tio Jurandir, comprado na Cosmopolita. Eu sabia que Paulo não gostava de me ver com livros, sempre franzia as sobrancelhas grossas e procurava nos bolsos fumo para mascar. Certo, respondi, e joguei as trouxas na carroça.

Iniciamos a viagem ainda de madrugada. Paulo contou que era bonita a luz elétrica, e imaginar a eletricidade na cidade servia para aliviar ou fingir que aliviava o gosto ruim na boca. Sebastiãozinho seguiu por cerca de duas horas e meia, antes de Paulo encostar a carroça próximo a uma lagoa para o café.

Peguei a farinha e a tripa, Paulo queimou um pouco da lenha. Lagoa bonita, ele comentou, mas me mantive calada. Tá pensando em quê, mulher? Se eu falar, você ri de mim, Paulo. Ele pegou meu pulso com aquelas mãos de quem trabalhou por longos anos na carvoaria antes de tomar conta das cabras de tio Jurandir. Vi Sebastiãozinho por baixo da fumaça do café, na ponta da lagoa, satisfeito com o capim. Besteira, mulher. Se eu disser, você ri de mim, certeza. Fale, é no tal balão com jeito de charuto grande, né? No charuto não, quer dizer, até um pouco, mas pensava na luz elétrica mesmo. Não fique vermelha, Matilda. Luz elétrica só de noite. Vamos botar a carroça de novo em Sebastiãozinho e continuar a viagem, por favor, meu marido.

Por todo o caminho, encontramos carroças e alguns grupos de pessoas a pé. A certa altura, distinguimos o Doutor Bartolomeu com sua malinha inseparável e lhe oferecemos carona. Vocês também querem testemunhar o Zeppelin? Respondemos que sim com a cabeça, e notei que Paulo se incomodava com o paletó velho e manchado ao lado das roupas do Doutor. Hoje deveria ser feriado, por que não? Um dirigível imenso que viaja pelo ar por puro milagre! Escutei que ele carrega passageiros e tripulantes alemães, mas não acredito. E não tive dinheiro para os últimos jornais. Sabe, Paulo, Matilda, um dentista prático não ganha tanto assim.

Eu e Paulo sabíamos que Doutor Bartolomeu era viciado em baralho, capaz de apostar a casa. Doutor, tio Jurandir me traz jornais sempre que visita a criação de cabras. Li que tem gente dentro do charuto, a passeio, acreditar não acreditei, Doutor. Um charuto, cinza, grande. O travo na garganta voltou a me molestar e obrigou Paulo a parar a carroça, então Doutor Bartolomeu me observou com olhos de cobiça enquanto eu descia e nos perguntou uma coisa que não entendi. Não cuspa, tem que vomitar, Matilda, põe o dedo na goela. Será que…

O vômito levou as forças. Acho que é a garrafada, Paulo, cochichei. Paulo me pediu para não falar mais essa palavra, Doutor Bartolomeu poderia escutar. Melhorou, mulher? Passou, a agonia passou, mas o gosto não sai. Desde que abortei o menino por exigência de Paulo e força de garrafada, a vida era intervalos de dor e engulhos. Começava a ler e não ia além de dois ou três poemas. Sonhava à noite com Sebastiãozinho puxando, com os cascos, a areia do meu túmulo. Uma criança me chamando de mãe aos prantos. Paulo desmanchado em lágrimas. Ranger de dentes, que nem pregava o irmão Calebe.

Retomamos a viagem. Léguas adiante, muitas carroças e alguns automóveis erguiam o pó da estrada. Doutor Bartolomeu reclamou da roupa grossa de poeira, e abrandamos o passo. De que hora o balão em forma de charuto vai ser visto? Não sei, Matilda, isso não tem como saber. Os jornais falam que é de tarde, mas não se sabe a hora. Os prédios de Natal me encantavam, e Sebastiãozinho não parava de zurrar com os automóveis passando pertinho com gente bem trajada dentro. Com espanto, nos juntamos ao populacho reunido. O que os jornais apelidavam de alta sociedade estava protegida por policiais e a salvo do sol por tendas. Vamos ver o bicho, me disse Paulo, com a cara brilhosa de suor, o olho cego mais azulado, mais vazio, a barba suja do fumo mascado. Disfarcei a dor que subia do estômago para o peito, o calor complicava as coisas. Mais ou menos uma braça à frente de nós, dois rapazes discutiam sobre Getúlio Vargas e Júlio Prestes. Um deles roía o cigarro no canto da boca e fazia anotações em um caderno, o outro mexia no chapéu e ajeitava a gravata a cada minuto. Pareciam jornalistas.

O tempo passou devagar, mas várias horas depois, quando as primeiras mãos apontaram para o céu, algumas pessoas correram em busca de casas abertas e troncos largos de árvores. Crianças choravam. Paulo se esforçava em encobrir o medo, enxugava as mãos suadas nas calças. A tensão me endurecia as pernas. Doutor Bartolomeu, o único entre os três que já havia visto aeroplanos, vivia uma espécie de maravilhamento que lhe causava suspiros. Os jornais não mentiram. O charuto cinza, imenso, mais comprido do que muitos prédios, se aproximava lentamente, feito um gavião. É o Zeppelin, é o progresso!, cantarolava um dos jornalistas. Bandeiras do Brasil foram agitadas.

Eu olhava para Paulo, entretido, assustado, e o travo me queimava a boca. Não encontrava vestígios de remorso naquele homem de cegueira comovível. Por que Paulo havia preparado a garrafada e me feito tomar gota por gota sem me perguntar nada? Aquele mesmo homem que no meu colo se queixava da cegueira e chorava.

Sem que Paulo e Doutor Bartolomeu notassem, me misturei aos curiosos e aos vendedores de jumentos e cabras. Eu precisava descobrir um lugar isolado onde eu vomitasse à vontade e ofendesse Paulo em voz alta, ofendesse até faltar fôlego, mas o vômito estourou antes e me sujou de um caldo nojento. Continuei caminhando sem rumo definido. Seria bom me afastar das moças da cidade bem perfumadas e bem trajadas e arranjar água para amenizar a mancha no vestido.

Sentia falta de meus livros. Desde que o irmão Calebe me ensinou a ler e a escrever na minha meninice, eu pedia livros a Tio Jurandir. Deveria ter escondido algum nas trouxas. Mas como enfrentar a zanga de Paulo? Uma cigana que lia a sorte passou por mim, e, ao me virar, me dei conta de que não sabia como voltar para a carroça. Embora a mancha de vômito no vestido me envergonhasse, pelo menos não restava o gosto amargo, era menos difícil lidar com a angústia de estar perdida e avistar somente desconhecidos.

Acompanhei por trás de um juazeiro o adeus do balão e de alguns aeroplanos, mas com apatia. A multidão começou a se dissolver. Eu precisaria me entregar à humilhação de pedir ajuda para achar Sebastiãozinho, pela hora já com Paulo e Doutor Bartolomeu à espera, se tornava a única opção. Não gostaria de perambular e correr o risco de me perder ainda mais.

Uma mão agarrou a minha cintura, de repente. Doutor Bartolomeu, faceiro, dizia estranhar meu deslocamento, estavam preocupados comigo. Pretendi deixar claro que na minha cintura só toca quem eu permito, quis gritar. Mas tive receio. Amuada e em silêncio, segui Doutor Bartolomeu, que me orientaria até Paulo e Sebastiãozinho.

Não fomos em direção à carroça, só que percebi tarde demais. Doutor Bartolomeu me arrastou para um matagal, os gritos e os empurrões de nada serviram. Se aquiete, sua cabrita fogosa, sua cadelinha, ele me disse, verificando se havia alguém por perto. Me segurou firme pelo pescoço e subiu o vestido. Em vão, eu tateava a terra à procura de pedra e sacudia as pernas. Vá pro inferno, gritei, e cuspi em seu rosto. Tanta raiva naquela cuspida. Tentei me levantar, mas ele socou a minha cabeça. Aproveitou a tontura para baixar depressa as calças e me invadir. Eu quis morrer. A tristeza imobilizava muito mais do que a mão apertando meu pescoço. Ele acabou de se servir de meu corpo após minutos vagarosos e saiu de cima de mim sem me olhar. Começava a anoitecer.