Série Violência Contra as Mulheres — Conto de Chris Resplande (8)
18 outubro 2025 às 21h00

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Amortecido
Chris Resplande
— Eu tinha medo dele. Muito medo. E sei que terei novamente se um dia o encontrar. Medo dele ou de mim; do que poderei fazer, pois é um filme repetido e sei bem o final: ele aparece sofrido, doce, arrependido e então passo a pensar que não há ninguém perfeito, que não era tão ruim assim. E a merda está feita.
— O seu medo é de não resistir? Você ainda tem este medo, Ana, depois de todo esse tempo?
— Tenho, pois já aconteceu outras vezes. Tenho medo do gatilho e das consequências. De sorrir e dizer: Oi, como você está? quando o mínimo aceitável é um profundo desprezo ou um grito de raiva. E tenho um descompasso entre fala e pensamento. Me embaralho, não sei reagir instantaneamente e pareço burra. Não quero mais ser burra diante dele.
— Você é muito inteligente, Ana. E está mais preparada agora.
— Sei que sou, mas o medo paralisa. E em todos aqueles anos consegui manter minha sanidade e fingir tranquilidade e alegria. Fingia como fingem os poetas a dor que sentem. Nada original, ao que parece.
— Não existe ideia original, menina. Fazemos ligações insólitas. E nisto você é ótima. Uma filósofa. Quer um café?
— Quero, um pingado dessa vez, por favor. Não sou filósofa, Paulo, o filósofo aqui é você.
— Engana-se. Desde o dia que conversamos pela primeira vez soube de imediato: muitas perguntas, dúvidas e um indisfarçável desassossego. Mas também um humor refinado, embora o seu olhar quase otimista pela vida me fizesse duvidar deste adjetivo.
— É que te perguntei se existem filósofos otimistas e batemos boca quando discordei que viver é apenas uma ocupação. Achei tão triste! Mas rimos muito.
— Mas sabe, Ana, jamais esqueci o quanto senti em você uma angústia funda. Eu não fazia ideia…
— Hoje você faz. Hoje sabe que não era angústia, era tristeza. Uma dor tão grande! E medo, puro e profundo medo…
— E agora você me assusta por ainda ter medo de não resistir. Muitas vezes refleti e busquei respostas sobre o que leva uma mulher a viver com um homem que a maltrata. Seus telefonemas de desabafo, seu sofrimento e minha total incapacidade de socorro me perturbavam muito.
— Sinto muito, Paulo. Fiz as pessoas que me amam sofrerem. Minha mãe, meu pai, minhas filhas, alguns amigos… como sofreram comigo! Isto é algo que demorei me perdoar.
— Que bom que se perdoou e de algo que não era sua culpa. Até nisso ele a fez acreditar, meu Deus! Como eu quis entender que vínculo forte a fazia se submeter. Relevar, perdoar, ficar… e, pior, justificar aquele traste! Sentia uma impotência tão grande e uma pena de ver uma mulher como você passar por aquilo tudo.

— Depois de todos esses anos, ainda tenho pesadelos.
— Sim, foram muitos anos. Como homens tão imbecis tem esse poder? Mas, vamos mudar de assunto, Ana? você veio me contar da viagem e nem sei mais como entramos neste papo dolorido. Quer mais um café?
— Quero é uma água, por favor. Eu que comecei o papo e às vezes me pergunto se ainda preciso lembrar de tudo para que não aconteça outra vez. Lembro do meu desespero, minha necessidade de provar que não era culpada de acusações sem o menor fundamento… e de como me rendia, ao final. Sem forças, sem vida, um fiapo de mulher. Mas não dói mais, isso é bom. Demorou, mas chegou o dia que entendi que era uma escolha entre vida ou morte, literalmente. Foi a gota d’água de um pote amargo que bebi por anos a fio.
— Ana, não precisa repetir, por favor. Você já está chorando.
— A voz, o hálito pesado na minha cara, a mão levantada, a ameaça, a gola de minha blusa puxada, a falta de ar. Juro que não, não é verdade, é um colega de faculdade, fizemos um trabalho, não, não é verdade, me perdoe. Sim, errei, não farei mais, você está certo, eu sou uma puta, sem você não sou nada, sim eu juro, me perdoa, eu te amo. O terror que senti, seus olhos de ódio, a baba, a boca espumando, o tapa…
— Oh Ana, minha querida!
— Esta cena não se apaga, Paulo. Guardei a blusa por muito tempo. Pode ser doentio, mas é como se eu precisasse de algo concreto, uma prova que aquela noite foi real. A mente da gente é louca, com o tempo acreditamos mais nas versões e nas desculpas que nos fatos, você me entende?
— Entendo perfeitamente.
— Mas, a partir daquele dia, tomei coragem. Somei todas as grosserias, ofensas, as palavras pesadas sobre minha família e meus amigos Que ódio! Muitas vezes eu concordei. Eu concordei, Paulo! como isso me doeu!
— Era o que te restava ou poderia ser ainda pior. Será que você fez bem em parar a terapia? Você me descreve isso com tanta mágoa!
— É que a ferida nunca vai sarar completamente, Paulo. Sempre terei um medo latente, é uma cicatriz. Mas preciso saber lidar com isso. Ao menos aprendi que medos a gente enfrenta e há muita vida para além deles. Aos poucos estou voltando a fazer o que gosto, a cuidar mais de mim. Esta viagem mesmo foi um sonho realizado.
— Você voltar a estudar foi bom demais, fiquei tão feliz.
— Você diz que a finalidade do homem é pensar. Então vamos colocar a cabeça para funcionar.
— Sim, o homem se constrói pelo pensamento. O primeiro pensamento veio numa tarde na entrada da caverna depois de ter comido um mamute. Com a barriga cheia, o homem e a mulher se perguntaram: o que estamos fazendo aqui?
— Mas isso continuamos a nos perguntar; então os homens são os mesmos?
— Considerando que as principais perguntas ainda não têm respostas, sim, somos os mesmos. E tenho provas, pois anos depois, neste nosso encontro que seria para matar as saudades e me contar sua viagem, você me fala novamente dele e de seu medo. É tudo muito louco. E perigoso. Viver é muito perigoso, o Rosa tem razão.
— É. E a minha vitória é recordar sem doer. Mas prefiro acreditar que a finalidade é amar. Amar e esquecer, amar e malamar, como diria Drummond… Acho que quero um pedaço de torta, me serve por favor?
