Série Violência Contra as Mulheres — Conto de Ana Cristina Fernandes (5)
20 setembro 2025 às 21h00

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A hora de ir além
Ana Cristina Fernandes
Especial para o Jornal Opção
Ela desligou o ferro de passar, logo após apoiá-lo no suporte da tábua. Dobrou com zelo a última calça e a encaixou cuidadosamente no cabide. De um lado, a pilha de roupas impecavelmente passadas e dobradas, ainda exalava calor ao toque. De outro, a janela do alto do oitavo andar — era de um dos dez apartamentos onde trabalhava, uma vez por semana.
Nesse apartamento, ela especialmente se encantava com a vista. Era muito próximo ao aeroporto, e de lá podia ver os aviões deslizando: ora indo, ora vindo, como seus pensamentos. Iam longe. Decolavam de São Paulo, de onde nunca havia saído, e voavam para terras distantes. Com menos ou mais barulho, com mais ou menos gente. Mas sempre uma cultura diferente. Nicinha sonhava acordada com as cenas e estórias que via nas novelas, nos filmes, nas notícias. Imaginava-se pisando nas areias branquinhas e macias das praias do Nordeste, ao lembrar de Tieta, de Gabriela, Mulheres de Areia. Inspirava-se na liberdade das mulheres livres que via na televisão. Viajar, para ela, não se tratava apenas de liberdade física ou de turismo, como alguns interpretam de forma limitada. Viajar era uma liberdade da alma. A liberdade de sair da prisão emocional que já vivera. Em grande parte da sua vida, sentiu-se presa. Esteve presa. Mas agora, não. A porta da gaiola estava levemente entreaberta, bastava um empurrãozinho e ela voaria.

Até então, para sua tristeza, a viagem era sempre a mesma. O mesmo longo e exaustivo trajeto de metrô ou de ônibus, dentro da cidade mesmo. Mas sonhar podia, então o fazia com gosto. Principalmente ali, em meio àquela dança de aviões que via no céu. Nicinha, com 16 anos descobriu-se grávida e o pai, inconformado, a expulsou de casa. Disse que não criou filha desonrada para ser vagabunda e que se isso aconteceu, a partir daquele dia, não tinha mais filha. Ela foi morar com o pai da criança, dez anos mais velho, mas com muito menos juízo que ela. Ele começou a beber e parou de trabalhar. Ele começou a bater, ela começou a apanhar. Não era exceção, era rotina. Triste sina.
Nicinha não tinha reação. Num dia era um olho roxo, no outro o nariz que sangrava. Mas, em certo dia, foi bem mais que isso, como já era esperado. Raimundo a empurrou com tanta força contra a parede, fazendo com que sua cabeça batesse muito forte. Um corte na testa sangrava. Ela ficou desacordada, desmaiada no chão do quarto. A filha, com quatro ou cinco anos, pequena testemunha do crime, chorava assustada ao lado da mãe sem compreender nada. O vizinho, morador da casa geminada, dessa vez chamou a polícia. O covarde fugiu, com medo.
Entre viatura, ambulância, choro e burburinho de curiosos assustados, Nicinha foi encaminhada para o hospital, ainda inconsciente. Não tinha família. Depois que seu pai a rejeitou, perdeu o contato com os irmãos e outros parentes. A filha ficou com a vizinha. Dias depois, Nicinha recobrou os sentidos — em todos os sentidos. Lembrou-se de tudo e decidiu mais uma vez seguir em frente. Não ficaria mais naquela casa. Não viveria mais sob o mesmo teto com aquele traste.

Ela voltou no barracão, pegou suas roupas, sua filha com a vizinha, a quem agradeceu e apenas disse que ainda não sabia para onde iria. Não queria deixar rastros. Na selva urbana que era São Paulo, isso não seria um problema. Foi acolhida na casa de uma família onde já trabalhava, dois dias por semana. Perguntou se podiam contratá-la para trabalhar diariamente e dormir no serviço, ainda que temporariamente. Sensibilizaram-se com a situação da moça. Sabiam que era honesta e que precisaria de apoio. Assim prosseguiu. Pouco mais de um ano depois, ela conseguiu alugar um cantinho e foi refazendo a vida.
Passaram-se mais de duas décadas desde aquela noite de terror. Mas aquele empurrão a sacudira, definitivamente. Depois de quase ir para “o além”, ela decidira “ir além”. Descobriu uma força que nem imaginava ter. Trabalhou sempre honestamente. Em casas de famílias exigentes, aprendeu a ser responsável, com a lição mais rápida e a professora mais eficiente — a necessidade.
Hoje, vinte e cinco anos depois, conseguiu formar a filha e tinha sua desejada casinha. Humilde, mas um luxo de paz. Agora ela abrira a nova temporada de realização: iria viajar. Já podia planejar a primeira, iria conhecer a Bahia, terra de sua família materna, que não chegou a conhecer. Apenas ouvia dizer. Sua avó, diziam que era filha de escravos, muito forte e bondosa. Mas Nicinha não pisaria na Bahia como escrava. Comprou e pagou por sua própria alforria. Determinada a viver seu merecido descanso e deleite. Conhecer o mar de Salvador, sentir como era o sabor da água salgada. Ouvir sons que nunca ouvira. Sentir na pele a brisa que desconhecia. A Bahia, seria apenas o começo — decidira.
Nicinha não era poeta. Mal sabia escrever e muito menos sabia o que era uma poesia. Mas o essencial ela tinha: o sentimento. Naquele dia, ela ouvia da sala um programa que a patroa assistia na TV, e a apresentadora dizia:
— Acorda Menina! — e em seguida, recitava uma pequena reflexão:
“Para um encontro com a vida
Ela compraria passagem
Mas somente de ida
Só ainda não sabia
Se de ônibus, avião, navio ou trem
Sentiu medo
Mas pensou, decidida:
Não, não tem mais volta.
Sim…sim…porque é para a frente que se anda.
Movimento pode até dar vertigem.
Mas ficar parado não convém.
É só andando, voando ou navegando
Que se pode chegar além.”
Ela, sorriu e pensou: que bom que, depois de quase “ir para o além”, decidiu “ir além”.
