Semana de Arte Moderna: A grande vaia, de C. J. Oliveira

04 fevereiro 2022 às 08h28

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E a Semana termina… Mas a arte nunca mais foi a mesma. A verdade perdura até os dias de hoje. Nunca uma semana durou tanto e influenciou tanto
O Jornal Opção vai publicar, com a curadoria do presidente da UBE-Goiás, Ademir Luiz, 22 contos de 22 autores evocando de diferentes formas a Semana de Arte Moderna de 1922 — que completa 100 anos em fevereiro, ou seja, nunca acabou — como inspiração. As mais diferentes possibilidades estilísticas foram exploradas. Contos modernos, contos tradicionais, contos pós-modernos. De homenagens assumidas a severas reflexões críticas; narrativas evocativas, narrativas memorialísticas, narrativas ensaísticas, narrativas desconstrutivas. Algumas com humor, outras com amor, mas também com vaias, aplausos e mesmo com o som do coaxar de sapos antropófagos.
A grande vaia
C. J. Oliveira
O enorme teatro abre as portas para o grande evento da noite.
Ninguém o espera, mas Bardo, escondido, com um disfarce nada convincente, vê tudo por detrás da cortina lateral de um dos corredores. Sentindo-se parte da composição daquele espetáculo, não pode se furtar a comparecer, embora todos pensem que ele não veio, e a História assim diz. A verdadeira causa dessa ausência é uma tuberculose ferrenha que o atacara impreterivelmente nos últimos dias. Como se não bastasse a doença, setores da sociedade cultural reagiram com certa repugnância ao seu livro Carnaval de 1919. Alguns poemas foram mal vistos, outros execrados por antecipação — uma afronta aos parnasianos e simbolistas. E o que mais os espantavam e os aturdiam era o fato de saber que o próprio Bardo tinha toda uma formação simbolista. Portanto, nada mais fazia, senão, cuspir no prato que comera. Tanto assim, que prometeram pegá-lo a tapas, caso comparecesse ao desrespeitoso evento.

Dias antes, a cidade alvoroçada, já não consegue esconder a apatia aos velhos métodos. Os vanguardistas, exultantes, respiram aliviados. Em breve irão se libertar. O botão da flor de uma nova arte irá se abrir, exalando um cheiro que perfumará o mundo. Pelo menos é o que todos esperam ao longo da semana.
No centro da cidade, várias personalidades circulam pelas esquinas das casas paulistanas. Os dias são dias de transição, e excitam as pessoas. Há no ar a indagação no semblante delas, que expande as narinas como se houvesse no ar um leve cheiro de cafezinho fervendo. Aliás, no começo da noite, os cafés e lanchonetes se enchem de gente, gente que conversa, ri, se espanta e indaga perplexa que rumo seguir, que atitude tomar. As divergências são notórias, sugerindo que uma técnica viva em detrimento de outra.
O bondinho que passa pela via em frente lamenta algo através de um ranger de rodas. Os automóveis, idem. O tempo se modifica devagar, mas não há risco de chuva. Um tremendo vento arrasta folhas para a escadaria do prédio. O calor diminui agora na boca da noite, mas fora intenso durante toda a tarde, com o sol escaldante a invadir as ruas, dissipando desejos de retaliação. A cidade está em polvorosa. Há um grave desejo por mudança. E um susto coletivo por saber do novo.
A primeira noite está prestes a começar, e se anuncia como a grande estreia. No palco, as luzes da ribalta projetadas em diagonal embaçam o ar e as mentes confusas, parecem brumas. Os lustres suspensos estão apagados, mas em pouco se acenderão. O público chega e ocupa as galerias em volta. As galerias superiores também se apinham de gente, quase não sobram cadeiras. Todos aguardam.

À entrada, um pequeno tumulto agita as pessoas: um homem de rua tremendamente sujo entra no meio do povo, e se senta na última fileira para assistir ao espetáculo. Sua presença é repudiada por causa da roupa que traz ao corpo, imprópria ao evento, e ele é convidado a sair como um cão quando adentra o lugar errado. Começa a falar frases soltas, recitando um poema. Pelas frases entrecortadas, vê-se que tem certa erudição. Os motivos que o fazem mendigar é desconhecido, ninguém pode supor. O poema é célebre e de domínio público: “Poema em Linha Reta”, de Álvaro de Campos, irônico, sarcástico, com um enorme significado social. Sobre isso ninguém ousa argumentar. Casa bem com a programação da casa, anunciada para logo mais. Rejeitado pela nata presente, que se vê ofendida com a astuta poesia, é achincalhado ali mesmo passando-se por persona non grata. Alguém dirá que no fundo ele não passa de um ser infiltrado. É o escândalo da noite. Oferecendo resistência se vê colocado pra fora por dois guardas da casa, plantados ali há horas, à espreita. Súbito, a paz volta a reinar no recinto, e tudo volta ao normal como se nada tivesse acontecido. Homens incomodados com aquilo limpam seus ternos de casimira ante o pó desprendido pela roupa do mendigo. Comentários circulam em volta: “Onde já se viu, um mendigo dando uma de poeta! Era só o que faltava!” — Exclama um senhor gordo de sobrecasaca. Pelo porte que ostenta é um homem culto, mas por vezes, o saber não espanta a estupidez e o elitismo. Não parece contemporâneo, entretanto é prosaico; tanto assim, que só diz bobagens. Ao contrário, é mais um conservador programado para vaiar. Essa noite inicial promete derreter mil atitudes, sobretudo, chocar os recalcitrantes.
Quando todos se acomodam, Bardo já está a postos, pondo em prática a estratégia de esconder-se. Atrás da cortina, não pode tossir, com receio de denunciar a doença que o ataca, mas fica indignado ao divisar os guardas do teatro colocarem o mendigo na rua. Porém nada pode fazer, a não ser ficar quieto e esperar o começo do espetáculo. Se há algo que o revolta é a injustiça social. Sentir as dores do outro e não poder fazer nada, soa-lhe como uma impotência cristã, apesar de seu ateísmo nos contrastes da mente.

De cara, os espiões da cultura rejeitam as obras expressionistas de vários pintores brasileiros, colocadas ali nos murais sugerindo uma renovação estética totalmente nova, no mínimo incompreendida, na condição realista e descontraída com que foram pinceladas, com traços fortes e livres, de cores fortes. Entre elas: A Estudante Russa; O Japonês; A Mulher de Cabelos Verdes; O Homem Amarelo — só pra citar algumas de Anita Malfatti. A ousadia é a tônica dessas pinturas. A liberdade, um espanto. O despojamento dessas obras incomodam os experts, que quase têm um ataque coletivo. Tanto que um endinheirado senhor de fraque e brilhantina, ereto no saguão feito um soldado, exclama aborrecido:
— Isso não é obra de arte! É um monte de rabiscos sem a menor ponderação!
Ponderações à parte, muita gente gosta desse novo modo de pintar, que não vem de nenhuma tendência francesa ou italiana, e que foge ao convencional, então em voga.
O grande diplomata entra em ação com um discurso longo incomodante aos presentes: “A Emoção Estética da Arte Moderna” disseca com grandeza as novas criações. Um novo modo de compor a arte muda a arquitetura, a pintura, a música e as letras. Nada foge à influência do modernismo. A grande proposta feita ao publico é transpor, quebrar o gelo, mudar formas e conceitos, descompor o mito. Desfazer as rugas nas caras amarradas das pessoas. Transpor os muros da estética daquilo que se chama Arte. Transpor o intransponível. E, sobretudo, calar os renitentes. Para tanto, a irreverência é a tônica das discussões.
Num dado momento, argumentava assim o discursista, fazendo menção às novas obras apresentadas: “Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros ‘horrores’ vos esperam.” — De fato, horrorizados, os olhos bem abertos, ouviam sem compreender.
Seguido à conferência, uma apresentação musical enche a noite, em meio a vaias e aplausos que se confundem. É o dia 13 de fevereiro de 1922. Começa, então, a Semana de Arte Moderna.
Bardo, naquele dia, vai embora mais cedo com medo de que alguém o reconheça. Passa, inclusive, diante daqueles que o desejam apedrejar, atira para cima deles um olhar furtivo. O bigode de Alberto Caieiro, o óculos e o chapéu disfarçam bem seu rosto redondo com lábios grossos. Fino trato. Camuflagem. Ninguém percebe nada, e na quarta-feira, ele volta ao mesmo lugar, como um padre que volta ao confessionário. Tendo se submetido ao sereno da noite anterior, a terrível doença quase o impede de vir. Mas vencendo-a, num instinto, volta ao teatro, pois não poderia perder a declamação de seu poema, prevista para o segundo dia do evento.
E o segundo dia começa, 15 de fevereiro, uma quarta-feira, e o autor de Juca Mulato apresenta ao público os novos escritores modernos, os novatos que comporão no futuro o grande time de nossa literatura, presa até então às escolas tradicionalistas. O Príncipe dos Poetas Brasileiros (que ainda não fora condecorado com esse título) sobe ao palco, de terno preto, camisa branca e gravata borboleta. Sua apresentação é aguardada com ansiedade. O salão está cheio, e ele olha paciente e altivo para as câmaras das galerias, seguro de si. Sabe do impacto daquelas palavras logo após terminar a apresentação. “Bardo não veio” — pensa, e se prepara, solene. “Se tivesse vindo sentiria muito orgulho” — completa, achando-se agora tão responsável por aqueles versos quanto o amigo que os compusera. Então começa a declamar “Os Sapos”, com autoridade e irreverência, como se olhasse a todos nos olhos, e um arrepio lhe sobe pelo corpo, encorajando-o. A vaia começa, misturada a aplausos, gritarias, xingamentos, constantes ais… Alguém promete matá-lo, a ele, e a Bardo, pois as críticas ferrenhas são direcionadas como flecha ao Parnasianismo. E todos sabem quem afinal está por trás. Os que não sabem, desconfiam. Bardo, oculto, sente o astucioso prazer na declamação daqueles versos, mas evita se expor, mergulhado em si mesmo. Chega a tossir levemente atrás da cortina marrom, mas ninguém é capaz de ouvi-lo, pois o barulho no teatro estronda o recinto. A doença, sendo maior que ele, o faz tossir várias vezes naquela noite, e o mataria definitivamente quatro décadas depois. Múltiplas vozes e sons guturais tentam desordenar a magistral interpretação do poema, que avança rumo à última parte. A grande vaia acontece então, e ecoa pelo teatro feito uma coisa viva, mas o novato poeta vai até o fim, totalmente seguro da nova estética que a todos suplanta.
Do lado de fora, na praça chamada Esplanada do Theatro, os sapos-cururus e os sapos comuns invadem os jardins e as ruas próximas, saindo dos esgotos e coaxando à maneira dos versos que dizem: — “Foi”. — “Não foi”. — “Sei”. — “Não sabe”. — “Sabe”. Os cães também ladram na noite como lobos ferozes; os gatos miam ao longe, numa correria desenfreada; até parece um protesto combinado da fauna urbana. E a ventania espalha papéis e folhas pela imensa praça colorida de plantas, numa reação inesperada. Alguns casais de namorados que não entraram no teatro se dão as mãos felizes e sonhadores, ouvindo o som propagado lá de dentro, na noite encantada que se prolonga.
Do lado de dentro, os cururus humanos, revolucionários, modernistas, esculacham aquilo que se chama arte, e que ninguém mais aceita, por não ser o anseio da grande massa que consome e vive de literatura. Logo após o final daquela apresentação grandiosa, Bardo sai lentamente andando pelos corredores, vestindo um sobretudo escuro e disfarçando a mão direita elevada ao chapéu, que o escondem definitivamente como se fosse um simples vulto na noite. Ninguém sequer cogita de sua estranha presença, tão absortos estão com o panorama do show. Aliás, num teatro cheio como aquele nada ou ninguém é capaz de causar espanto, senão o próprio espetáculo a hipnotizar o público.
No terceiro dia do evento, 17 de fevereiro, sexta-feira, portanto, ele não comparece. Sua ousadia em sair à noite e enfrentar o sereno das ruas foi fulminada com uma crise de hemoptise, que quase o leva ao túmulo. Quando seus amigos de geração sabem da atitude malsã por ele tomada, indo ao teatro com a saúde precária dão-lhe fortes broncas, exasperam-se, mas o mal já está feito. “Eu não poderia deixar de comparecer” — Bardo explica acamado, tossindo mais uma vez. E a Semana de Arte Moderna termina. Mas a arte nunca mais foi a mesma. Termina é modo de dizer, porque na verdade ela perdura até os dias de hoje. Nunca uma semana durou tanto e influenciou tanto. Mormente a nós, sapinhos de lagoa, magros e desnutridos, ainda hoje exclamamos as mesmas frases prontas, que fez de “Os Sapos” um poema mundial: — “Foi”. — “Não foi”. — “Sei”. —“Não sabe”. — “Sabe”.
Cem anos depois do maior evento literário acontecer, Bardo tinha razão: — De nada sei!
Os sapos
Manuel Bandeira
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…”Urra o sapo-boi:
– “Meu pai foi rei!”- “Foi!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– A grande arte é como
Lavor de joalheiro.Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo”.Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
– “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”.Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, éQue soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio…