Na monocultura do entendimento se acentua a densidade do silêncio que camufla mal a violência, destilada em agrotóxico e usura

Marcos Carvalho Lopes

Começou como MetafísiCA GOiana, mas logo virou Metafísica do Goiás, seja pra destacar a diferença entre a cidade e o Estado, seja pra não deixar rastro (como o do bovino tangido no pasto, na direção do curral).

A metafísica é, ao mesmo tempo, uma sistematização e uma reificação da mitologia do sertão. Para gerar espanto com o hábito, essa cobra enrolada no próprio mito.

Jataí é o centro da Metafísica do Goiás, o que só pode ser reconhecido, quando se afastam as falsas genealogias, que apontam para as abelhas sem ferrão, ou para os pés de Jatobá, e se busca a força do dizer, em que o verbo ser dá lugar ao estar, em um aí específico, como acontecimento; ou seja, Jataí é já-estar-aí. Uma superação ironicamente dialética do Dasein, que acrescenta a “presentificação” do que é, a contextualização do acontecimento, que não é fundador, mas algo que se sustenta em sua efetividade: Jataí já-esta-aí em você, como a possibilidade do sertão em toda parte.

Todos nascemos em duplas, ainda que não reconhecidas (o que é princípio de sabedoria de diversas perspectivas religiosas, nas descrições da completude da esfera, na placenta, como duplo).

Entre o já-estar-aí e o não-estar-aí se encena a tensão na luta por autenticidade, dentro do ser do sertão (que é um estar).

A diferença entre gabiroba e guariroba é amarga.

O ser em sua intensificação, o ser-tão é um estar no espaço-tempo, um já-estar-aí.

Jataí está para Brasília, assim como Jerusalém está para Roma (para o bem e para o mal).

Como certa feita pontuou aquele Rosa: “O senhor vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo”

No início de Goiás, em sua dimensão de embuste fundador, a contingência foi potencializada em dose dupla, com a combinação de água e fogo, na magia da aguardente, como a queda de um demônio que retirou os indígenas de seu idílio.

A aguardente é (um)a arkhé do sertão, que se nega, em sua potência, a prender-se ao mesmo, desestabilizando o ser em sua relação com as palavras, na ontologia do silêncio denso (e de pouca umidade).

A instabilidade da linguagem poetiza o dizer do cotidiano, quando este se faz com o reconhecimento do desafio do lugar, de “já-estar-aí”.

A reificação das palavras em clichês e posturas reacionárias, platonismo e canções sertanejas (de amor eterno ou prazer constante) são sintomas da queda no “não-estar-aí”.

O passado de Goiás é um porvir, o futuro só pode ser pensado como Utopia, como ilha no interior do cerrado (daí, Bras-ilha).

O presente se nega, como soma de todos os tempos, estando fora da história, por se dar como destino agônico, na tensão do sertão.

Existem muitos sertões, cada qual com sua sina e seus silêncios, seus matos e refrigérios, seu ritmo e seu banzo. O de Goiás, pela antiguidade do Cerrado, é a matriz dos demais.

É preciso explicar que o R das poRtas é uma dimensão poética da língua goiana, que insere uma onomatopeia no centro do termo, representando o ranger da mesma quando abre. Obviamente, existem portas e poRtas, poRtões e poRteiras, mas o R retroflexo permanece como memória deste gênio linguístico que faz parte da civilização do Sudoeste goiano.

Se a palavra soa parnasiana ou antiquada, é que por aqui o tempo se dobra por dentro, produzindo densidade e fundura de pensamento. Essa intensificação quebra os relógios, na modorra que deixa os peixes do lago dormindo, os bois e todo gado no pasto sonhando e mastigando o tempo. Essa intensificação é o sertão, em que o verbo se fez vertigem e rememoração de muitas temporalidades. De ultra-passado ao futuro, romper o silêncio é saltar abismo.

O direito de ser arrogante não pode ficar só no litoral… ou com os bandeirantes.

Ironia é uma forma de ser meta-arrogante, debulhando o mito e o interdito da palavra coagulada, que estanca o pensamento.

A verdade calada, que é parte da paisagem, tem seu ritmo e textura de autoridade. É o “não” de tudo, contra qualquer “por que”. E o conhecimento é tomar ciência do que a boca fala, pra não ter atrevimento de desdizer o que não é dito: falar demais não é saber muito.

Se desvia os olhos e abaixa a cabeça, mantendo o sorriso, num dizer que não possui pilheria, não é de se concluir que se trata de pessoa psicopata. É que no interior, na paisagem mais caipira, resistir é algo feito de viés, esgueirando a seriedade e a timidez, de espreita para que o raciocínio desconcerte (mas, não ofenda).

O método para a Metafísica do Goiás é combinar analogia e ironia, sobrepondo imagens e criando exageros, que secam quando quarados ao sol, e, quando ficam, é na forma de mote para o cultivo de um pequeno sorriso tragicômico.

Tropear os pensamentos é uma educação do adensamento, uma aprendizagem da travessia (fazer verbo e viver essa tensão).

Um tropeiro de pensamentos que quer atravessar o rio do senso comum, deve deixar algumas ideias escaparem, como teste do que pode dizer. Essas ideias são “bois de piranha” da inteligência/ignorância, medida crítica que pode enganar o que não tem o macete de enfrentar o lugar.

É usual tomarem os “bois de piranha” como o principal conteúdo. Aí o meio-sorriso tem seu lugar, junto com o olhar de esguelha: levar o pensamento por lugar inseguro, enfrentar a profecia do silêncio grosso que entorta as plantas e seca o ar, pode ser uma escolha de solidão, e é no mais das vezes. Mas aqui, não: é saber se camuflar no comum pra contrabandear diferenças.

Delírio e excomunhão, fantasmas rondam esse lugar! E aí, cada um tem seu jeito de lidar com o quebranto, as assombrações do passado e as maldições do futuro. Negar o problema também é um caminho, que não engambela o que é destino, ou melhor dizendo, deixa a trama do Mesmo seguir, dessa prosa dobrada de quem quer manter a vantagem em tudo. O esperto não precisa ficar se mostrando, de gabola, tem que cuidar do silêncio, do tempo certo do dizer e do esconder. O mais esperto, nem fala, nem cala, dissimula a simulação.

O que se amoita no pilar do país não é o discurso do litoral e sua emulação doutros lugares, mas aceitação da lógica do sertão e seus poderes e ganancias de mando e usura, seus donatários e famílias de bem (sempre olhando a quem).

Quando os bandeirantes da descolonização chegarem não se aperrei com o desatino. Dê guarida e acolha seus melindres. Ofereça rede, doces, quitutes. Mais que tudo: deixe-os falar e guarde o espanto, com gesto de deferência. Só pergunte se entendeu bem o dizer, sem questionar. Resuma, repetindo se possível com as mesmas palavras. Se a réplica vier suspensa em reticências, desdizendo o dito para manter o mito e o poder do interdito, agradeça a boa nova na possibilidade de conversão. Espragueje o lugar, sua gente e deixe o bandeirante contente. Logo ele vai embora com seu blábláblá; a água volta a correr no leito do rio. Resistir é se esgueirar (e depois você pode até os citar/visitar).

Quando os bandeirantes da descolonização chegarem com novas cruzes, lista de pecados e salvação; diga “sim sim”, pra dizer “não”. A redundância é um segredo para reduzir o novidadeiro em conversa lerda.

O saber não tem lugar e ninguém nasce sabendo. O lugar tem seu saber, viver é fácil, assim como, difícil é saber viver.

Boi sonso é que dá chifrada, arromba curral (ou porteiras).

Dizem que esse sertão não é mais o verdadeiro. É um sertão de soja e girassol de pensamento alheio. Enganam-se: na monocultura do entendimento se acentua a densidade do silêncio que camufla mal a violência, destilada em agrotóxico e usura. O vazio só se multiplicou, mas continua destino. Como certa feita pontuou aquele Rosa: “O senhor vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo”.

Marcos Carvalho Lopes é professor universitário.