Eurípedes Leôncio

Continuação de “Polifonia, provérbio e desvio – Parte I”

O desvio é uma nova enunciação, resgatada de um provérbio original, donde se constrói outra enunciação, podendo ocorrer de modos diferentes, posto que o contexto histórico, social, são fatores determinantes, trata-se, verdadeiramente de uma troca implícita ou explícita, no que se pode chamar de polifonia, dialogismo. Os discursos proferidos por Jesus Cristo são recheados, para muitos estudiosos, de subversão, desvio em relação à máxima ou provérbio original, mostrando, sempre, uma contradição entre o sentido veiculado pela enunciação original:

“Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderá odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazem bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem” (Evangelho Segundo Mateus, Bíblia Sagrada, 5, 43-44).

“(…) mestre agora mesmo esta mulher foi apanhada em adultério”. Moisés mandou-nos na lei que apedrejássemos tais mulheres. Que dizes tu a isso? Perguntaram-lhe isso, a fim de pô-lo à prova e poderem acusá-lo. Jesus, porém, se inclinou para frente e escrevia com o dedo na terra. Como eles insistissem, ergueu-se e disse-lhes: “quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra” (Evangelho Segundo São João, Bíblia Sagrada, 8, 3-7)

Exemplo claro de polifonia, dialogismo, no desvio do provérbio original, feita por Jesus, trata-se de uma alteração contextualizada, rica em metalinguagem, intertextualização, interdiscursiva, onde contesta o discurso do outro, quebrando uma norma, um preceito de ordem sentencial herdado pelos hebreus e acrescentando nova estratégia de convencimento, persuasão, demonstrando autoridade ao transmitir o discurso que se tornou “voz do povo, onde o diagolismo e a polifonia estão presentes”.

Na travessia do tempo, esse desvio se faz presente na música, na literatura, nos discursos políticos e intelectuais, nos textos publicitários, como na música brasileira, “Atire a primeira pedra”, de Ataulfo Alves:

“Atire a primeira pedra, ai, ai, ai! Aquele que não sofreu por amor”.

A enunciação proverbial é polifônica, como esclarece Dominique Maingueneau: A enunciação proverbial é fundamentalmente polifônica: o enunciador apresenta sua enunciação como uma retomada de inumeráveis enunciações anterior, as de todos os locutores que já proferiram aquele provérbio. (MAINGUENEAU, Dominique, 2011, p. 169-170)

Provérbio é polifônico

Um foi feito para o outro, o ser humano e a linguagem, ambos não foram concluídos, acabados, mas em multiplicidade mutativa. Essa experiência e verdade se manifestam nunca no íntimo de cada pessoa, mas numa magia interativa de vozes e cenários que se aproximam e se repelem num universo heterogêneo, mas que se junta e revela na fala. O mundo foi projetado, o verbo, também. Essa presença da condição humana o faz sujeito e assujeitado, onde o espírito do homem revela e explica o próprio homem, assim como o discurso não se relaciona com a coisa, mas com o discurso do outro, como nos ensina o criador da polifonia, Mikhail Bakhtin, estudado por tantos outros teóricos:

O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) criou uma das categorias mais atraentes da Teoria Literária das últimas décadas do século 20: polifonia. Tomando a palavra de empréstimo da arte musical, isto é, o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas independentes, mas harmonicamente relacionadas. (TEZZA, Cristovão, apud BRAIT, Beth. 2010. p. 14)

O provérbio é discurso polifônico. É a fonte, o nascedouro da comprovação de que o discurso não se origina no sujeito, mas como produto da oralidade, embora enunciado por ele, não lhe pertence, posto que a enunciação não é dele, mas produto de “vozes”, do dialogismo. Repare-se o que fora dito e às vezes subvertendo-o, com sua marca momentânea no ato da comunicação. Não seria exagero afirmar que o sujeito não está na origem de seu discurso, mas produto de um desdobramento de enunciados, produto da chamada “falação cotidiana”. Confirmando tal raciocínio, Dominique Maingueneau com clareza ensina que o importante do enunciado é conseguir maneiras que garantam sua preservação:

Existem efetivamente gêneros de discursos orais (máximas, ditados, aforismos, lemas, canções, fórmulas religiosas, etc.) nos quais os enunciados, embora orais, cristalizam-se por se destinarem a ser indefinidamente repetidos. (MAINGUENEAU, Dominique, 2011, pg. 74)

Retomamos, ainda, as informações preciosas acercas do fenômeno e da problemática da polifonia ressaltadas pelo notável professor de Linguística da Universidade de Paris:

Foi M. Bakhtin, linguista russo, que introduziu essa noção para o estudo da literatura romanesca; a partir de então, ela vem sendo utilizada pela linguística para analisar os enunciados nos quais várias “vozes” são percebidas simultaneamente. (MAINGUENEAU, Dominique, 2011, pg. 138)

Provérbio, ironia, captação e subversão

Importante distinguir Provérbio de Ironia, de Captação e Subversão, visto que o provérbio mantém-se sólido, estável na sua temporalidade, mas a criatividade do ser humano o faz senhor da comunicação, em determinados momentos, e consegue persuadir, imitar, copiar, deformar, subverter, embora tal comportamento que enriquece a língua mostra a força da individualidade criadora que se transborda em enunciados repetidos, gerados, recriados por outros, numa infinidade polifônica para o dialogismo que não explica a fonte desse enunciado, mais uma vez o excelente professor citado nos elucida quanto às quatro distinções enumeradas:

Captar um texto significa imitá-lo, tomando a mesma direção que ele. É o caso, por exemplo, de um slogan que imita um provérbio: o primeiro esforça-se para, em benefício próprio, apropriar-se do valor pragmático do segundo. Por outro lado, há subversão quando o texto que imita visa desqualificar o texto imitado. Nesse caso a estratégia adotada é a da paródia.
(…)

Existem semelhanças e diferenças entre o provérbio e a ironia. Ambos implicam um enunciador que deixa perceber na própria voz, por meio de uma entonação característica, a voz de um outro, ao qual se atribui a responsabilidade pelo enunciado. Com relação ao provérbio, porém, “o outro” é uma instância valorizada e reivindicada indiretamente pelo enunciador, enquanto na ironia o outro é desqualificado. Enfim, o provérbio se apresenta pelo que ele é, sem equívocos, ao passo que a ironia é por essência ambígua, pois se mantém na fronteira entre o que é assumido e o que é rejeitado.” ((MAINGUENEAU, Dominique, 2011, p. 173; 175)

Provérbio, o discurso relatado

O provérbio como enunciado curto, completo, não se trata do discurso do outro, mas recupera as palavras e todos os outros discursos, onde o enunciador ao abandonar sua própria voz se se tornando signatário da palavra de outro, não sendo, portanto, senhor da fala, da língua, linguagem, da comunicação que existe sem ele e que lhe escapa o domínio e a significação, como alerta o filósofo Martin Heidegger: “Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O impessoal, que responde à pergunta quem da presença cotidiana, é ninguém, a quem a presença já se entregou na convivência de um com o outro”. (HEIDEGGER, Martin, 2012, p. 185).

O reino da impessoalidade existe, eis o fenômeno proverbial, onde a maravilhosa fusão de vozes se misturam, como o “eco do outro”, para repetir ao extraordinário achado de Exupérry: “Que planeta engraçado pensou então. É todo seco, pontudo e salgado. E os homens não têm imaginação. Repetem o que a gente diz (…)” (Exupérry. Antoine de Saint Exupérry, 2000, p. 34), ou ainda Heidegger, com lucidez contundente:

O impessoal possui, ele mesmo, modos próprios de ser. A tendência do ser-com que denominamos de afastamento funda-se em que a convivência, o ser e estar um com o outro, como tal, promove a medianidade. Toda primazia é silenciosamente esmagada. Tudo que é originário se vê, da noite para o dia, nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita luta torna-se banal. Todo segredo perde sua força. (HEIDEGGER, Martin, 2012, p. 184)

O provérbio como feixe de comunicação permeia as manifestações humanas, revelando o outro, onde a palavra, roupagem tísica do pensamento envereda pelos caminhos em desvios significativos, desde o pecado original, numa cadeia de enunciados dialogicamente polifônicos. O que, antes era obscuro, aparece com lampejos de clarividência na maravilhosa interação entre os seres buscando a sua afirmação de decifrador do outro e de seus enigmas, como afirma categoricamente David Hume:

O caminho da vida, o mais agradável e o mais inofensivo, passa pelas avenidas da ciência e do saber: e, quem quer que possa remover quaisquer obstáculos desta via ou abrir uma nova perspectiva, deve ser considerado um bem feitor da humanidade. (Hume, David. 2000, p. 29-30)

O saber, essa busca inquietante, corporifica na linguagem como resultado dessa plurivalência da língua, enriquece as gerações e se afirma e confirma a inteligência que não se perde, mas arquiva no outro. A fala, a palavra como poder, toma contornos que provocam rebeliões, guerras, subversões, mas sem a forma original como primeiro passo, os sinais se perderiam e não seriamos os mesmos, envolvidos pelos provérbios, recheados da sabedoria popular, de vida.

Por fim, encerraremos este artigo com o início da famosa obra “A Ordem do Discurso”, do notável pensador francês Michel Foucault: Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo. (Foucault, Michel, 2011, p. 5-6)

Eurípedes Leôncio, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção

Referências

ABBAGNANO. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes. 6 ed. 2012.
Agostinho, Santo. LIVRO XI. OS PENSADORES São Paulo: Editora Nova Cultural. 2000.
ARISTÓTELES. Poética. OS PENSADORES. São Paulo. Editora Nova Cultural. 2000.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo. Martins Fontes. 1992.
EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo. Editora UNESP. 2 ed. 2011.
EXUPÉRRY. Antoine de Saint. O PEQUENO PRÍNCIPE. Rio de Janeiro. Ed. Abril, 2000.
FIORIN, Luiz José. Elementos de análise do discurso. São Paulo. Editora Contexto. 14 ed. 2009.
FOUCAULT, Michel. A ORDEM DO DISCURSO. São Paulo. Edições Loyola. 21 ed. 2011.
HEIDEGGER, Martin. SER E TEMPO. São Paulo. Editora Vozes. 6 ed, 2012.
HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro. Objetiva. 2001
HUME, David. OS PENSADORES. São Paulo: Editora Nova Cultural. 2000.
MAINGUENEAU, Dominique. ANÁLISE DE TEXTOS DE COMUNICAÇÃO – do provérbio à ironia: polifonia, captação e subversão. São Paulo. CORTEZ EDITORA. 6 ed. 2011.
RICOUEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo. Edições Loyola. 2 ed. 2005.
TEZZA, Cristovão. A polifonia como categoria ética. São Paulo. 2006 in BRAIT, Beth. Org. BAKHTIN OUTROS CONCEITOS – CHAVES. São Paulo. Editora Contexto. 2010.