Eurípedes Leôncio

Cultura é uma somatória de valores, ligando passado e presente, se afirmando de tal sorte que se pode ter a impressão de que tudo estará no mesmo lugar, pronto para o encontro da chamada causalidade, onde o surgimento de um é o início de outro, numa polifonia da criação, que mesmo desviando os conteúdos, a sua consolidação é marca da presença comunicativa do ser, no tempo e no espaço.

O fenômeno da criação dos mundos e do ser que se faz presente para o exercício do Vir a ser é tão claramente citado por Santo Agostinho que vale o registro filosófico, científico, cultural, dialético dessa imprevisibilidade que escapa a compreensão humana, mas está registrado pela inquietação do espírito criatura:

Vejo a aurora e prognostico que o sol vai nascer. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não é o sol que é futuro, porque esse já existe, mas sim o seu nascimento, que ainda se não realizou. Contudo, não o poderia prognosticar sem conceber também, na minha imaginação, o mesmo nascimento, como agora o faço quando isso declaro. (LIVRO XI, O HOMEM E O TEMPO, Os Pensadores, 2000, p. 327).

A ponte reveladora dessa passagem, por diversas vias do conhecimento, moldou de pedra e ouro os caminhos que nos levam ao desafio de unir o homem, seu micro e macro universo e as eternas descobertas e contradições humanas, no campo do signo, da linguagem, da palavra da enunciação e enunciado, como roupagem do pensamento, fazendo reflexo do outro e no outro seu porto seguro e traumático da comunicação.

A história pode não se repetir com o mesmo fato, dentro do mesmo momento, pela dinâmica da vida, mas sem dúvida serve de parâmetro para estudiosos, críticos, contextualizando os conflitos eu-mundo existentes desde a reprodução do ser humano, desde o dia da criação, como bem elucida Terry Eagleton:

O que a cultura estima não é o particular, mas algo muito diferente, o indivíduo. Com efeito, ela vê uma relação direta entre o individual e o universal. O que me faz aquilo que sou é minha essência, que é a espécie à qual pertenço. (EAGLETON, Terry, 2011, p. 84)

É nessa fonte inesgotável de Cultura que o mais completo, sintético e popular de todos os discursos, fez-se presente, o provérbio, tão misterioso quanto o homem, e, ambos enigmáticos, um sendo a voz e a vida do outro e pululando por todos os séculos, subvertendo-se, comunicando-se em todos os idiomas, para todos.

Rompendo a barreira de espaço e do tempo, universalizando-se como a mais completa e bem realizada polifonia humana.

Reportamos, mais uma vez, a Santo Agostinho que com a mesma autoridade que o provérbio guiava a conduta dos homens, ele nos guia ao entendimento desse verdadeiro ato simbiótico:

Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. (AGOSTINHO, Santo. LIVRO XI, O HOMEM E O TEMPO, Os Pensadores, 2000, p. 326).

Verdadeiro reflexo do eu moral, cultural, ideológico, subversivo e ao mesmo tempo conservador, pleno, criativo, moralista, o provérbio sobreviveu, sempre, porque foi com ele que O Criador Expressou ao primeiro homem, numa espécie de ordem que também será para todo ser humano, na posse da terra e da sua sobrevivência num eterno DEVIR:

“Comerás o teu pão com o suor do teu rosto” (Gênesis, 3,21 Bíblia Sagrada)

Historicidade do provérbio

A historicidade, como conceitua Abbagnano é “o modo de ser do mundo histórico ou de qualquer realidade histórica, a existência de fato no passado” (Abbagno, Dicionário de Filosofia, 2012).

Os provérbios remontam aos mais distantes momentos da existência, não se fixando espaço e tempo dos primeiros registros. Perpassa por todas as tradições culturais da época clássica, fortalece na Idade Média e consolida-se nos tempos modernos, sendo utilizado por profetas, filósofos, reis, pensadores, escritores, evangelistas, músicos, com imenso registro na Bíblia Sagrada, com partes até especificamente chamada de “Provérbios”, refletindo uma postura do homem perante o mundo ao elaborar um discurso que é a própria descoberta do outro, para o outro, cooptando-o para as práticas morais, intelectuais, éticas, valores herdados pelos antepassados e incorporados aos exemplos que nortearão a humanidade.

Tanto oral, como escrito, o provérbio consolida-se como o mais utilizado dos discursos e sua evolução dentro da marcha do tempo e das conquistas sócio-político-culturais da sociedade torna-se comunicação poderosa no campo da ideologia, com seus desvios adaptados para o momento que reflete o contexto histórico.

Questionar sua origem e suas andanças pelos séculos, nas vozes, nos escritos é debruçar sobre uma herança sem começo e sem fim, como afirma categoricamente Dominique Maingueneau:

Em certo sentido, o enunciador do provérbio é coresponsável pela assertiva: na medida em que a “sabedoria popular” é, na realidade, a própria comunidade dos locutores de uma língua, cada locutor é indiretamente um dos membros dessa instância. (MAINGUENEAU, Dominique, 2011, p. 170).

Conceituação de provérbio

Na linha de tempo, o provérbio teve sua confirmação como o discurso popular mais bem realizado e a significação sintetiza uma realidade social e moral, como conceitua Houaiss:

Provérbio (s.m)1 – Frase curta, ger. De origem popular, freq. Com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral (p.ex.: Deus ajuda a quem madruga) 2- na Bíblia, pequena frase que visa aconselhar, educar, edificar, exortação, pensamento, máxima (Livro dos Provérbios), (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001)

Linguagem simbólica, curta, familiar, denotando caráter popular ou universal do provérbio, visando instaurar uma verdade prática, tomando um caráter sentencial, um fenômeno do pensamento coletivo, da moralidade, concretizado, às vezes numa única frase, num discurso de unidade completa, conforme ensina Dominique Maingueneau:

‘O provérbio é uma asserção sobre a maneira como funciona as coisas, sobre como funciona o mundo, dizendo o que é verdadeiro” (MAINGUENEAU, Dominique. 2011, p. 171)

“O Livro dos Provérbios”, verdadeira ficção literária é a forma mais sublime, verdadeira, completa, carregada de sabedoria para que o ser humano seja repleto de pureza se submeter a Deus, Misericordioso e Criador, e buscar o outro para uma vida santa e digna, livre da maldade, do pecado, da corrupção, numa polifonia duradoura para atingir a glória, a salvação e a vida eterna:

PROVÉRBIOS de Salomão, filho de Davi, rei de Israel,
2 para conhecer a sabedoria e a instrução,
Para compreender as palavras sensatas
6 para compreender os provérbios, as alegorias,
As máximas dos sábios e seus enigmas.
7 O temor do Senhor é o princípio da sabedoria
Os insensatos desprezam a sabedoria e a instrução. (PROVÉRBIOS, Bíblia Sagrada)

Provérbio com jogo de persuasão

A linguagem pode ser entendida como todo sistema de signos que entram na comunicação entre os indivíduos e por isso mesmo é universal. Um gesto, um sorriso, um olhar comunicam e se interagem em qualquer espaço, língua. Essa relação entre enunciador e enunciatário produz um espetáculo, em se tratando da construção verbal ou oral que gera a palavra, o seu significado e como resultado o confronto, o desvio, a tentativa de um ser ao se comunicar tenta convencer o outro e nele se estabelece, como ensina José Luiz Fiorin:

A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um complexo jogo de manipulação com vistas a fazer o enunciatário crer naquilo que se transmite. Por isso, ele é persuasão. (FIORIN, Luiz José, 2009, p.75).

O provérbio é o discurso da persuasão, onde se cristaliza o sentido de conduzir o outro para uma certeza de fundo moral, social, religioso, daí o confronto, o desvio por não se ter uma verdade pronta para o outro, que com certeza tem sua própria palavra, daí o sentido duplo, metafórico, num mundo de vozes, significados que transbordam o espaço da comunicação entre dois indivíduos, à coletividade e toma caminhos diversos com suas eiras e beiras na terceira margem.

Martin Heidegger | Foto: Reprodução

Comunicar é partilhar com o outro, passar adiante, mesmo para voltar-se pelo mesmo caminho, como observou Heidegger:

O que se anuncia pode ser “passado adiante”. A periferia do que se compartilha entre um e outro numa visão se amplia.(HEIDEGGER, Martin, 2012, p. 217).

Essa passagem de um locutor para outro sofre conflitos de toda ordem, do linguístico ao social, mas sobrevivendo no mundo da criatividade individual e coletiva. Essa descoberta do outro, como ser em comunicação, captando e direcionando o entendimento moral, intelectual em enunciados e aos signatários, deságua numa infinidade de discursos, como nos ensina Bakhtin:

Não há palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que nascem do diálogo com os séculos passados, nunca estarão estabilizados, encerrados. Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento. O problema da grande temporalidade. (BAKHTIN, Mikhail, 1992, p. 414).

Metáfora e provérbio

O ser humano em comunicação, declaração consigo mesmo, na vertical e horizontal, na busca do outro, não se achando se vê, se reproduz em vozes que o rodeiam e interagem em significação contemplativa ou conflituosa, nesse reino da palavra onde ao mesmo tempo é o super-homem e o anti-herói ao se ver sufocado, esmagado, prisioneiro desse quadro de opressão exterior que vai do nada ao ser ou do ser ao nada.

Transferir, eis a questão. Não existe a palavra sem o homem e seu criador, que se fez verbo e é o próprio verbo: “NO PRINCÍPIO era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus”. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.” (Evangelho Segundo São João, PROLÓGO 1, 2;14).

Aristóteles assim define metáfora na Poética: “A metáfora é a transferência do nome de uma espécie para outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, ou por analogia” (Aristóteles, 2000, p. 63) e ainda o grande filósofo exemplifica esclarecedoramente por todos os séculos dos séculos:

Entendo que há metáfora por analogia quando o segundo termo está para o primeiro assim como o quarto para o terceiro; o quarto poderá ser utilizado em lugar do segundo, e o segundo, no lugar do quarto. Além desse modo de usar a metáfora, há outro, o qual consiste em empregar o termo metafórico negando algo que lhe seja próprio, como chamar ao escudo taça sem vinho em lugar de taça de Ares. (Aristóteles, 2000, p. 64).

Nas duas pontas do tempo, o longe e o perto se unem pela metáfora quer no afastar ou no aproximar-se, numa genética pré-concebida, assemelhada como expõe Paul Ricouer:

(…) a metáfora do “distante e do “próximo” apenas dá continuidade à do “transporte”: transportar é aproximar; des-afastar”. (RICOUER, Paul, 2005, p. 298)

A união passado e presente, em Aristóteles e Ricouer, sobre a metáfora e sua “transferência” ou “transporte” deixa claro o fenômeno do desvio da significação, mas também nos remete claramente sobre o fenômeno de enunciações ditas sobre outra enunciação, onde não se toma a palavra do outro, mas o seu desdobramento, impessoalmente, com nova força significativa.

Exemplo mais popular e com desvio metafórico-ideológico temos no provérbio:
“um dia da caça, outro do caçador”.

  • Verdade universal, podendo se ganhar ou perder, tal conteúdo é absorvido pelo povo e a voz é impessoal: “uns dias são dos caçadores e outros são da caça”. A subversão e o desvio estão patentes; provocante e intencional mostram uma contradição, em relação à enunciação original, não se tem um dia para cada coisa, denunciando o quadro político social, a ironia se dá no desvio, na subversão e nisso o provérbio contribuiu e enriqueceu a música, a literatura, os movimentos de vanguarda, de contestação.

Leia a Parte II

Eurípedes Leôncio, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção