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De toda a avifauna brasileira, o corrupião ou sofrê é uma das espécies mais interessantes, tanto pela belíssima plumagem como pelo canto melodioso, mas também pelo comportamento. O pássaro é criado solto e tem fama de genioso

Luciano Alberto de Castro

As três casas chilenas onde viveu Pablo Neruda foram convertidas em casas-museus. Quando estive no Chile, em outubro passado, visitei a mais famosa delas, La Chascona, antiga garçonnière para os primeiros encontros de Pablo e Matilde Urrutia, e, depois, residência do casal em Santiago. As outras duas são La Sebastiana, em Valparaíso, e Casa Museo Isla Negra, ambas na costa do Pacífico. Minha intenção era conhecer as três, mas acabei visitando apenas o refúgio santiaguino de Neruda. E é um refúgio mesmo: La Chascona fica no final de uma ruazinha sem saída no bairro Bellavista, aonde fui dar com os costados numa manhã de sábado.  

Pablo Neruda e o pássaro sofrê

Ao cruzar os umbrais da casa, adentramos o universo mágico de Neruda. A viagem começa no jardim e vai, cômodo a cômodo, desvelando vestígios do poeta em cada canto, cada móvel, cada objeto. Na sala de jantar com teto baixo, nos sentimos num navio. Nela, a porta de um simples armário nos conduz a outro ambiente. É uma casa-labirinto, cheia de encantamento e surpresas. Uma delas tive ao chegar numa das últimas estações. Fixado na parede, havia um mapa-múndi indicando todos os lugares já visitados pelo bardo. Qual não foi o meu espanto ao saber que, no Brasil, as únicas três cidades que Neruda visitou foram São Paulo, Rio e Goiânia.

Eu já imaginava que, sendo diplomata, Neruda conhecera muitíssimas plagas mundo afora, mas ver o nome da minha cidade naquele mosaico de letrinhas me deixou deveras surpreso. Descobri que Neruda veio a Goiânia em 1954, para participar do I Congresso Nacional de Intelectuais — evento raríssimo, por congregar muitos atores da intelectualidade latino-americana e por ter acontecido na jovem capital de Goiás. O vate chileno foi a grande atração do encontro: há registros dele “hablando” com frei Confaloni e lendo poemas num Teatro Goiânia lotado. Homem telúrico e ligado às raízes culturais, suspeito que tenha apreciado a catira e provado frango com gueroba.

Graciliano Ramos, Pablo Neruda, Cândido Portinari e Jorge Amado | Foto: Reprodução

Essa viagem da delegação chilena ao Brasil teve episódios pitorescos, que estão relatados na biografia de Neruda escrita por Volodia Teitelboim. Na parada no Rio, Jorge Amado não lhes dava sossego. Imagino que devem ter saracoteado à larga pela noite carioca, do Copacabana Palace aos inferninhos da Lapa. No voo pra Goiânia, Volodia conta que eles viajaram num avião de carga, dividindo espaço com cavalos, enfrentando tempestades e pousando em cada pequena cidade do trajeto. Após o alívio do pouso, o biógrafo descreveu Goiânia como uma cidade provinciana, com ar colonial e uma sensação de trópico fresco e tranquilo — gostei desse chileno de nome esquisito.

A conexão de Neruda com Goiás seria sacramentada por algo ainda mais forte, um presente vivo e emplumado que recebera de uma escritora goiana: um vistoso corrupião. De toda a avifauna brasileira, o corrupião ou sofrê é uma das espécies mais interessantes, tanto pela belíssima plumagem como pelo canto melodioso, mas também pelo comportamento. O pássaro é criado solto e tem fama de genioso. Rubem Braga tem ótimas histórias de corrupião. Esta aqui é triste, pois, levado a contragosto pro Chile, o bichinho morreu precocemente, de frio ou de saudade. Neruda o sepultou no jardim da sua casa de Isla Negra e o imortalizou no poema intitulado “Oda al pájaro sofré”.

Saí feliz de La Chascona ao saber que Goiânia estava no mapa das cidades visitadas por Neruda, mas um detalhe me deixou contrariado: estava escrito “Goiana”, faltando o “i”. Prontamente, enviei e-mail à Fundação Pablo Neruda solicitando o reparo, que se fazia necessário, inclusive, porque “Goiana” é o nome de outra cidade brasileira, no Estado de Pernambuco. Não obtive resposta. Acho que só vou descobrir se houve a correção na próxima viagem. Dessa vez, quero visitar as outras duas casas de Neruda, especialmente a de Isla Negra, onde agora sei que está sepultado um conterrâneo — a quem quero dedicar uma prece.       

Luciano Alberto de Castro é escritor e professor da Universidade Federal de Goiás.