Ovídio, com Metamorfoses, influenciou de Shakespeare a Kafka e James Joyce

30 agosto 2025 às 21h00

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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
“E, por onde o poder de Roma se estende sobre a terra dominada, andarei na boca do povo. E, se algo de verdade existe nos presságios dos poetas, graças a essa fama, hei de viver pelos séculos”. Ovídio
Por mais que contemos os anos e os séculos, e consideremos a história da civilização como um caminho já, de há muito, longamente percorrido e sedimentado com o aporte de novos conhecimentos e conquistas, os gregos e romanos sempre surgem como grandes prenunciadores daquilo que o mundo futuro verá. Sem muitos preâmbulos, entro diretamente no assunto: falo de um livro que é pura poesia, mitologia, teogonia e cosmogonia, um livro-chave e revelador, que é “Metamorfoses”, do poeta romano Ovídio. Não há grandes escritores que não o citem e não se embeberam em seu conteúdo mítico, e não houve época da história em que sua obra não estivesse presente.
“Metamorfoses” (Editora 34, edição bilingue, 909 págs.) tem tradução e notas de Domingos Lucas Dias e apresentação de João Angelo Oliva Neto, ambos de consagrada competência. São eles que abrem as portas do conhecimento ao novel e sequioso leitor. É um poema cosmogônico de quase doze mil versos escritos em hexâmetro datílico, dividido em quinze livros e – importante – onde são descritos mais de duzentos e cinquenta mitos. É a relação mais completa dos mitos gregos. A tradução não considerou as rimas, o que não tirou o brilho do poema.

Publius Ovidius Naso, ou simplesmente Ovídio, nasceu em 43 a.C. na região de Abruzzo, na Itália, e viveu até os anos 17 ou 18 de nossa era. Foi contemporâneo de Virgilio e Horácio, com os quais se emulou, considerados os três maiores poetas latinos. “Ars Amatoria” é, também, seu famoso tratado da arte de amar, que lhe rendeu críticas moralistas, por considerarem-na licenciosa.
A cosmogonia apresentada por Ovídio é completa, constitui-se de relatos sobre a formação do mundo, em todos os seus aspectos: continentes, mares, céu, ar, dia, noite, ventos, mundos animal e vegetal, etc. Mas, como o próprio nome diz, seu objetivo é mostrar a metamorfose de todas as coisas, as transformações e contiguidade de tudo que constitui o mundo. Este é visto por ele pela perspectiva temporal do que era, da mudança e do resultado final. Mas é na mudança que ele centra sua visão. O escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) dedica-lhe atenção especial em seu livro “Por que ler os Clássicos”.

A etiologia das coisas menores, isto é, suas origens, é relatada através de uma imagética sensível e colorida, de lindas imagens, que se transformaram em mitos poderosos. Um dos mais lindos e trágicos é a história do amor proibido entre dois jovens, Píramo e Tisbe, descrita no Livro IV. Contrariando a vontade de seus pais, os jovens resolvem fugir e encontrar-se em um bosque.
Já no local do encontro Tisbe não percebe que seu xale caiu e refugia-se em uma gruta enquanto aguarda o amado. O encontro seria ao pé de uma amoreira de frutos brancos. Uma leoa, que havia acabado de devorar um boi, encontra o xale e o estraçalha, deixando-o vermelho de sangue.
Quando Píramo chega, depara-se com o xale ensanguentado supondo, em desespero, que sua amada fora morta e devorada por uma fera, pois vê as pegadas do animal. Não suportando a ideia da morte de Tisbe, o jovem enterra a espada em suas entranhas, morrendo ali. As amoras brancas tornam-se vermelhas pelo sangue derramado e absorvido pelas raízes.

Ao chegar ao local e ver morto seu amado, Tisbe resolve se matar. Antes, porém, declama belíssimos versos dirigidos à amoreira: “E tu, árvore, que com teus ramos cobres agora o infeliz corpo de um e a seguir cobrirás os corpos dos dois, conserva os sinais da morte e mantém sempre negros os frutos….”.
Como nota-se à primeira vista, foi nesta linda e trágica história de amor malsucedido que William Shakespeare encontrou inspiração para compor sua tragédia mais conhecida, “Romeu e Julieta”, ambientada em seu tempo, mas cujo desenlace remete à história de Ovídio.
Ainda desvendando a etiologia no reino vegetal, o poeta romano relata a gênese do loureiro, a partir de, também, um amor que não se consumou.
Cupido desperta em Apolo (Febo) o amor por Dafne, belíssima ninfa, filha de Peneu, e nela o desejo de manter-se virgem eternamente. Para tanto, ela pede ao pai que tire de si toda beleza e, gradativamente, vai sendo transformada em um loureiro: os pés em raízes, os braços em galhos e os cabelos em densa ramagem.

Mas o amor de Apolo é eterno, e homenageia sua amada cingindo para sempre sua cabeça com uma coroa de louros que, daí em diante, será usada como insígnia maior dos vencedores nos jogos e na política. Hoje as pessoas “laureadas” são aquelas que, hipoteticamente, receberam os “lauréis” da vitória, prêmios e homenagens. No grego antigo a palavra “dáphne” significava o pé de louro.
A explicação para o hermafroditismo, na mitologia clássica, surge do mito de Hermafrodito, filho do deus Hermes e da deusa Afrodite. Ele é vítima da ninfa Sálmacis, que o agarra e pede aos deuses que os transformem em uma única pessoa. Ele passa a ter características do pai e da mãe, não só no nome, mas também no corpo.
De metamorfose em metamorfose, Ovídio monta uma enorme e complexa estrutura cosmogônica através da qual o mundo era visto e compreendido. Ele costura relatos de vários autores e tenta dar à obra uma unicidade. Conforme relata João Angelo de Oliva Neto, Franz Kafka, conhecedor de latim e da literatura clássica, inspirou-se em Ovídio para nomear seu mais famoso conto, e James Joyce também bebeu em sua fonte quando criou seu personagem Stephen Dedalus, do romance “Ulisses”.

A arte escultórica é testemunho vivo das metamorfoses de Ovídio. Bernini (1598-1680), famoso escultor italiano, reproduziu várias delas, que permanecem irradiando e perpetuando o pensamento mítico. Outro fato interessante é o conjunto de obras inacabadas de Michelangelo que, dessa maneira, criou na pedra a própria metamorfose. São figuras em processo de transformação, ficando, por isso, inacabadas.
O mundo racional desmitificou as visões cosmogônicas dos povos antigos, trazendo luz ao conhecimento, mas não conseguiu apagar o esplendor criativo e fantástico da cultura antiga, que tentava, de todas as maneiras, dar significado ao mundo.
Mas a mitologia greco-romana, tão surpreendente em suas metamorfoses, antecedeu, se assim se pode conceber, em quase dois mil anos as novas descobertas das ciências biológicas, que pressupõem a evolução das espécies.
Os pressupostos da rigidez da imutabilidade da criação foram colocados em xeque, não por obra de deuses furiosos e vingativos, mas pela Deusa Natureza, através da ciência.
As metamorfoses da mitologia grega e latina desafiaram, metafórica e fantasiosamente, algumas crenças que pareciam inabaláveis. Não há indícios de que pessoas possam ser transformadas em árvores ou em animais, mas, com a devida distância da fantasia e em uma correlação aparentemente frágil, pode-se afirmar que a natureza é dinâmica e que mutações acontecem.
Existe uma ponte entre o mundo aqueu e o nosso, que metamorfoseia resquícios de fantasia em realidade. O resto nós já sabemos: nascemos e crescemos no berço esplêndido da portentosa cultura helênica. E ela se perpetua através da literatura, da arte e da filosofia, para deleite dos sequiosos do saber clássico, e permanece ad perpetuam.
Marina Teixeira da Silva Canedo, poeta, cronista e crítica literária, é membro do Instituto Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado (Icebe) e colaboradora do Jornal Opção.