Os Miseráveis, de Vitor Hugo: a ficção ilumina a história e esta ilumina aquela

02 junho 2024 às 00h01

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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
“Os Miseráveis” é uma obra monumental, uma das grandes expressões da literatura mundial, escrita por Victor Hugo.
Victor-Marie Hugo (1802-1885) foi um dos maiores escritores franceses do século XIX. Nascido nesse conturbado século, teve papel preponderante na literatura e na política francesas. No entanto, sua voz ecoou muito além das fronteiras da França.
Seu pai foi um general das tropas de Napoleão Bonaparte e sua mãe uma monarquista convicta. Com divergências políticas em seu ambiente familiar, e conhecendo cada dia mais a realidade política e social do povo francês, acabou mudando sua opção de monarquista, quando jovem, para a de defensor intransigente da democracia.

“Os Miseráveis” “(Les Misérables”), sua principal obra literária, foi lançada em Paris em maio de 1862. Nessa época ele já havia escrito livros de poesia (três) e o famoso romance “O Corcunda de Notre Dame” (“Notre-Dame de Paris”), publicado em 1831 com enorme sucesso, além de outras obras. Tanto o citado romance como “Les Misérables” foram adaptados para o teatro, televisão e cinema e tornaram-se grandes sucessos de público.
Victor Hugo rapidamente ficou conhecido, não só na França como também em todo o mundo. Suas habilidades literárias foram amplas; foi um polígrafo, tendo se dedicado à poesia, ao teatro, ao romance, ao ensaio e à crítica literária, além de dedicar-se também às artes plásticas.
Sua atuação não se restringiu à literatura e às artes. Foi político, tendo sido deputado e senador, e atraiu as graças do povo, que sempre o aclamou, devido às suas posições em favor da democracia.
Victor Hugo foi, sem dúvida, uma das maiores vozes do Romantismo europeu e mundial. No Brasil suas obras obtiveram grande aceitação e repercussão. Eram seus leitores e admiradores importantes vultos das letras, como Castro Alves (1847-1871), José de Alencar (1829-1877) e Machado de Assis (1839-1908), este, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e seu primeiro presidente.
Teve formação católica, mas bandeou-se ao espiritismo por influência das experiências, muito comuns à época, das “mesas girantes”, que conquistaram boa parte dos intelectuais franceses. Esses fenômenos foram estudados pelo também francês Allan Kardec (1804-1869), pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, codificador da recém-criada doutrina espírita.
Victor Hugo faleceu em 22 de maio de 1885, em Paris. Sua morte causou grande comoção social e levou milhares de franceses a lhe prestarem um último tributo. Seus restos mortais encontram-se no Panthéon de Paris, ao lado de Voltaire, Alexandre Dumas, André Malraux, Jean Jacques Rousseau e de dezenas de grandes nomes da cultura francesa.

Originalmente o livro foi publicado em 7 volumes, passando a 3 volumes e finalmente condensado em apenas um volume. É considerado um dos romances mais extensos da literatura. A edição da editora Martin Claret, de 2007, possui 1510 páginas. Dentre os poucos livros mais extensos do que ele estão “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust (3.000 páginas) e “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói (1.544 páginas).
Foi dividido em cinco o partes e cada parte dividida em “livros”, e estes em capítulos. Apresentação bastante didática e clássica.
O romance está solidamente erigido sobre quatro relevantes pilares: moral, espiritual, humanístico e histórico. Não se trata de uma visão romanticista construída sobre precários estofos de um romantismo água com açúcar embora o romance desenvolva-se em um contexto de relações sociais formais onde os relacionamentos afetivos são enfocados idealisticamente, bem ao gosto do Período Romântico; nem se trata de um olhar cético, onde não se antevê a esperança e a vitória do espírito. Trata-se da ênfase entre o bem e o mal, o certo e o errado, a misericórdia e a impiedade, que emergem dos inícios edênicos da humanidade e de suas construções literárias consubstanciadas em preceitos milenares, do dualismo zoroástrico à Bíblia.
As preocupações de ordem moral, bem presentes na concepção da obra, mostram-se em frases como “…o orgulho, que é em nós como uma fortaleza do mal” e “O olhar do espírito não pode encontrar, em lugar algum, mais deslumbramentos e mais trevas do que no homem”. O romance assemelha-se, sobretudo, a um grito de revolta e de denúncia contra a injustiça social, expressa nos excessos de luxo da nobreza monárquica absolutista, em um extremo, e a profunda miséria do povo, no extremo oposto.

O grande escritor é dono de um estilo denso e poético, apesar de também prolixo, onde as descrições minuciosas e as constantes metáforas preenchem cada capítulo. Praticou o que poderia ser chamado de “maniqueísmo estilístico” na literatura, um jogo de dualidades, contrapondo palavras opostas, realçando o preto com o branco, o justo com o injusto, o falso com o verdadeiro, o céu com o inferno. A linha do tempo é interrompida no vai e vem da trama, do contemporâneo ao passado e vice-versa, para dar suporte às histórias dos personagens.
É um romance histórico, que une ficção a fatos reais. Há extensos capítulos dedicados às explanações sobre a história política e às descrições pormenorizadas da cidade de Paris. O desenvolver do tema ficcional ocorre dentro da capital, Paris e arredores, no cenário do incendiário e perturbador século XIX, século este que mudou a cena sociopolítica da França. O “fin de siècle” anterior lega ao século XIX todas as consequências da Revolução Francesa (1789), que acabou com o poder absolutista da Casa dos Bourbons.
No entanto, nada foi definitivo. Como percebe-se no extenso romance, vários sistemas de governo sucederam-se após a queda da Bastilha. A influência da Revolução Francesa, produto que foi do Iluminismo, provocou um processo cataclísmico que gerou, por fim, o regime democrático e disseminou-se pelo mundo ocidental, refletindo-se nos destinos políticos dos Estados Unidos da América do Norte e do Brasil.

A França passou, no século XIX, inicialmente pela Primeira República (1792-1804), seguida do Primeiro Império, (1804-1814), que teve Napoleão Bonaparte como chefe supremo e aspirante a líder hegemônico da Europa, tentativa que se frustrou nos campos de Waterloo.
O narrador, na terceira pessoa, em vários momentos identifica-se como sendo “o autor do livro.” Ele, Victor Hugo, chega à localidade topográfica onde aconteceu a batalha de Waterloo, e percorre os lugares, a pé, onde se deram os acontecimentos que levaram Napoleão à derrota, naquela que o autor denomina “terra adubada com carne humana”. A bem dizer, não existem diferenças entre as guerras; Waterloo não diferiu da descrição da, hipotética ou não, guerra de Troia, nem das batalhas de qualquer guerra; o horror da violência no campo de combate foi realisticamente descrito pelo grande escritor.
Após a queda de Napoleão iniciou-se a Restauração, período da volta dos Bourbons como monarquia constitucional e não mais absolutista, e que prevaleceu de 1814 até 1830.
Mas os anseios por liberdade, igualdade e fraternidade levaram o povo às revoluções de 1830 e 1832, colocando no trono o duque Luís Felipe, elevado a rei.
Foi dentro desse cenário sociopolítico, de grande agitação social e desejo de mudanças, que o eminente escritor ambientou o romance. Enormes parcelas da população viviam na mais extrema miséria, subjugadas por leis que beneficiavam a burguesia e a nobreza. Para os pobres o rigor, para os ricos o favor, este era o espírito da lei.
O personagem principal é Jean Valjean, que personifica o sofrimento dos miseráveis, vítimas dos rigores das leis com as mais cruéis penalidades, como a do protagonista: ser preso e condenado às galés a 19 anos de prisão, pelo simples fato de ter roubado um pão, para matar a fome da família. A pena inicial foi de 5 anos, a cujo período foram acrescentados 14 anos pelas tentativas de fuga.
Assim é o contexto da obra: uma sequência de sofrimento, resiliência, perseguição e superação.
Nosso protagonista, após tantos anos de tormentos na prisão, adquire a precária liberdade e, sem rumo na vida e sem família que o amparasse, torna-se andarilho. Seu coração endurecido transforma-se ao conhecer o bondoso bispo Myriel, que o acolhe e o orienta. O encontro com o bispo, apesar de rápido, mudará sua vida, abrindo-lhe novos caminhos, iluminados pelo poder dos princípios cristãos.
Por uma fraqueza, rouba uma moeda a um garoto e, a partir deste fato, desaparece e torna-se objeto da perseguição de Javert, feroz e implacável inspetor de polícia.
Tempos mais tarde, assumindo a identidade de senhor Madeleine, Jean Valjean reativa uma antiga indústria de vidrilhos, muito usados nas vestimentas femininas, em Montreuil-sur-Mer, o que propicia enorme prosperidade a toda a população da cidade, e constrói para si uma vultosa fortuna. Por reconhecidos méritos, é nomeado prefeito da pequena cidade de Montreuil-sur-Mer.
Descoberta sua verdadeira identidade e perseguido pelo implacável Javert, ele é novamente preso e condenado à prisão perpétua e mandado para as galés de Toulon, de onde consegue fugir. De coração bondoso, vai em busca da menina Cosette, filha de uma pobre mulher, Fantine, a quem prometeu encontrar a filha.
Com a mãe já morta, ele resgata a criança e a cria como filha. Novamente, mas agora em Paris, assume a identidade falsa de senhor Fauchelevent, sempre fugindo do inspetor Javert. A perseguição sem tréguas leva Jean Valjeant a uma vida na obscuridade, com a qual aprendeu a conviver e a escapar do risco de ser preso. Cosette torna-se uma linda e meiga jovem e apaixona-se por Marius, jovem idealista e que luta em favor da República.
Os fatos vão-se sucedendo e Jean Valjeant salva a vida de Marius, ferido na revolta de 1832, carregando-o, ferido e desacordado, pelos esgotos de Paris. A grande rede de esgotos é denominada por Victor Hugo de “O intestino de Leviatã”.
A perseguição sofrida pelo nosso herói foi de duas naturezas: pelo obstinado inspetor Javert, cumpridor exemplar dos códigos policiais, sem mancha alguma em seu currículo e de coração empedernido, e pelo facínora, bandido desqualificado chamado Thénardier, que o via como vítima fácil de chantagens.
Jean Valjean viveu com coragem e resignação, sem nunca ter se desviado do caminho da bondade e da humildade, fazendo de sua vida um reflexo dos ensinamentos do magnânimo bispo Myriel.
Neste conciso e rápido esboço do imenso e epopeico romance hugoano, obra-prima de seu autor, estão as linhas gerais do inesgotável romance. Os destinos dos marcantes personagens ficam à deriva da curiosidade de quem ler o livro. Victor Hugo foi um escritor coerente com seus ideais, e sua escrita, apesar da prolixidade, deixa o leitor totalmente fascinado.
Quando o romance foi lançado o sucesso entre o povo foi imediato, mas sofreu muitas críticas de escritores famosos que viviam na França, e que não lhe deram muito valor.
Hoje, “Os Miseráveis” tem lugar cativo em todas as listas de livros canônicos e está presente nas estantes de pessoas que amam a boa literatura universal. É “consensus publicus”, abonado pelo público em geral e pela intelectualidade global, que lhe conferem as devidas reverências e o colocam no panteão da literatura mundial.
Marina Teixeira da Silva Canedo, historiadora, cronista e poeta, é colaboradora do Jornal Opção.